quarta-feira, julho 02, 2014

"Agnosia" revela formas alternativas da mente no cinema

O filme espanhol “Agnosia” de Eugenio Mira e “A Origem” de Christopher Nolan foram lançados no mesmo ano de 2010. São dois filmes com versões diferentes para o mesmo tema: um thriller de espionagem industrial que envolve a invasão da mente de alguém para extraírem um segredo que envolve interesses corporativos. Um exercício de análise comparativa entre os dois filmes revela diferentes formas de representar a mente humana: se na Europa a Psicanálise e a psicologia da percepção possuem prestígio no meio artístico e intelectual, nos EUA a mente não é pensada como uma máquina desejante, mas informática onde dados são deletados ou inseridos. Enquanto “Agnosia” é um conto gótico inspirado em psicanálise, “A Origem” é o inconsciente traduzido pelas neurociências.

A análise comparada em cinema (o exercício de analisar diferentes visões de filmes e diretores sobre um mesmo tema) sempre dá surpreendentes resultados ao revelar as diferenças ideológicas e culturais de países ou de polos de produção cinematográfica.

Um exemplo evidente é o filme espanhol Agnosia (2010) do diretor Eugenio Mira e escrito por Antonio Trashorras. Assistindo ao filme, é impossível não comprarmos com o filme de Christopher Nolan A Origem (Inception, 2010), produção norte-americana lançada no mesmo ano da produção espanhola. Ambos exploram o tema da espionagem industrial: há um segredo de grande interesse industrial que está na mente de uma pessoa e que deve ser extraído.


Como já analisamos em postagem anterior, o filme de Nolan focava abordava a mente pelo ponto de vista das neurociências ao refletir a atual agenda tecnocientífica em fazer uma cartografia e topografia da mente com objetivos de manipulação e controle. Em A Origem não há inconsciente, simbolismo ou mundos oníricos. Há apenas a representação da mente como níveis, porões e regiões que poderiam ser topograficamente localizadas – sobre esse tema clique aqui.

Em Agnosia há também interesses corporativos de uma indústria de armamentos que objetiva extrair uma fórmula secreta da mente de um protagonista. Mas a abordagem é indireta e simbólica em um misto de psicologia a percepção e psicanálise. Nolan é pragmático como num thriller de espionagem, enquanto Eugenio Mira dirigiu um conto gótico e romântico onde a mente não é invadida, mas seduzida pelo amor e erotismo.

O filme


Agnosia é ambientado na Barcelona do século XIX e narra a história de Joana Prats (Bárbara Goenaga), uma jovem que sofre de uma disfunção neuropsicológica chamada agnosia que afeta a sua percepção. Ainda que a visão e audição estejam em perfeitas condições, sua mente não consegue interpretar os estímulos que recebe, tendo dificuldade em reconhecer pessoas e objetos e até a si mesma no espelho.

Mas Joana tem em algum lugar da sua mente um segredo: a fórmula da fabricação de lentes catadiópticas, poderoso acessório telescópico para armas de fogo por possibilitar miras precisas a distâncias muito superiores das armas convencionais. Seria uma revolução na indústria de armamentos.

A principal concorrente da indústria dos Prats trama um sinistro complô para extrair a valiosa informação aproveitando-se da confusão sensorial de Joana no momento em que um psiquiatra propõe uma revolucionária terapia envolvendo hipnose e a construção de uma “crisálida” – encerrar Joana em uma sala totalmente isolada dos estímulos do mundo exterior por três dias para tentar fazer regredir a agnosia.

O plano é “contaminar” a terapia envolvendo os criados da mansão, um sósia do noivo (Vincent – Félix Gomes – um jovem impulsivo que cresceu na mansão dos Prats) braço direito do pai de Joana na indústria de armamentos da família e os doutores responsáveis pelo tratamento. Penetrar naquela crisálida seria o equivalente a invadir a mente de Joana e, de alguma forma, seduzi-la e convencê-la a revelar o segredo industrial.

O Gótico e o Romântico


O filme demonstra o fascínio do autor do roteiro pelo início de uma literatura popular já perdida no tempo: a literatura gótica e os folhetins do século XIX em forma de seriados com tom misterioso e mórbido, intrincadas peripécias que giram em si mesmas, a perpétua busca do assombro e do maravilhoso.

Todos os componentes da literatura romântica estão em Agnosia, desde o pai íntegro, o padecimento da heroína enferma, as contradições dos seus desejos com a moralidade da época, fabulações sinistras e personagens decadentes e perversos.

A direção de arte é perfeita, mas o filme acaba se ressentido pelo excesso de estilização e maneirismo (no final há até uma sequência inteira fazendo um misto de alusões à cena da escadaria do filme Encouraçado Potenkin de Eisenstein e a escadaria da estação de trem do filme de Brian de Palma Os Intocáveis). Mas mesmo assim Agnosia vale à pena pelas representações da mente e inconsciente que a produção espanhola faz, significativamente diferentes daquelas feitas por A Origem.

Apesar de toda estilização e do pastiche (uma mistura de conto gótico, romântico, thriller de espionagem com um toque de ficção científica retro), o roteiro de Transhorras é bem fiel ao espírito da época e a sensibilidade do período para a questão da mente humana.

A mente do século XIX


As primeiras metrópoles europeias, o trem, a luz elétrica, a máquina a vapor e a industrialização começam a acelerar a vida urbana. Associada ao desenvolvimento da imprensa, a fotografia, cinema e meios de comunicação como telefone e telégrafo, nunca até então a percepção humana tinha sido bombardeada com tantos estímulos. Por isso tempo, memória e percepção do instante passaram a serem temas recorrentes na arte, literatura, filosofia e psicologia.

O impressionismo na pintura buscava registrar o flagrante do instante através dos efeitos da cor e da luz sobre os objetos; o filósofo Henri Bergson que via a percepção e a mente humana como uma câmera de cinema e a memória como um frame isolado; a hipnose e a descoberta do inconsciente e dos mecanismos da neurose de um psiquismo ao mesmo tempo reprimido pela moralidade vitoriano e superexcitado pela nova vida urbana.

A virtude de Agnosia é colocar a representação da mente humana em perspectiva ao espírito de época do final do século XIX, enquanto A Origem expressa a sensibilidade pragmática atual que vê a mente como um objeto a ser mapeado para manipulações, extrações e inserção de informações.

A protagonista Joana sofre de agnosia que, como descrito em uma linha de diálogo do filme, é como se o paciente tivesse perdido o filtro através do qual retém e seleciona os estímulos exteriores, permitindo à mente à organização da experiência como objetos, sons, pessoas, formas etc.

Como sugere o pesquisador francês Paul Virilio em livros como Guerra e Cinema e Estética do Desaparecimento, as disfunções neuropsicológicas como a afasia seriam a extensão na vida civil dos estados de afásicos dos soldados nas guerras modernas marcadas pela tecnologização e aceleração da percepção – Walter Benjamin falava dos soldados que retornavam da I Guerra Mundial em estado de choque e sem memórias. Para Virilio, a aceleração tecnológica da comunicação e informação militar (a Guerra do Golfo em 1990, por exemplo, transformou-se em um videogame para os pilotos norte-americanos) chegaria á vida civil, trazendo disfunções neurológicas pelo bombardeio perceptivo.

A “crisálida”


O ponto central do filme é a “crisálida”, o toque de ficção científica na narrativa: o psiquiatra manda construir na mansão uma sala negra totalmente isolada do mundo exterior para isolar Joana por três dias para reconstituir o seu filtro mental. A estratégia para extrair de Joana o segredo da sua memória é bem freudiana, ao contrário de A Origem, calcada nas neurociências que veem a mente não como uma máquina desejante, mas uma máquina informática com informações que podem ser deletadas ou inseridas.

Na sua agnosia, Joana consegue apenas ver as estrelas do céu tão perfeitamente como as pessoas normais. As estrelas se tornam para ela o símbolo de um mundo “que está lá fora”, o desejo da cura e liberdade de uma vida contida e reprimida por uma moralidade vitoriana e de um casamento já planejado com o sócio do seu pai. O complô que envolve o segredo de Joana envolve exatamente seduzi-la pelo seu desejo sexualmente reprimido. E por isso decoram o mundo interior da crisálida com estrelas projetadas nas paredes e teto a partir de um abajur.

Ao contrário, embora em A Origem o Nolan faça seus personagens entrarem no inconsciente, eles não encontram desejos, mas apenas culpas e ressentimentos que devem ser deletados para facilitar o resgate da informação vital para os interesses corporativos dos seus chefes.


Talvez o principal fator que determina as diferenças entre Agnosia e A Origem seja a nacionalidade: enquanto na Espanha a Psicanálise e a filosofia da percepção possuem prestígio entre os meios artísticos e intelectuais, nos EUA a Psicanálise não goza de credibilidade científica por se acreditar que noções como inconsciente e psiquismo não tenham comprovação empírica. Percepção se torna input de dados e a mente uma máquina de processamento e programação.

E a principal diferenças entre os dois filmes é a visão gnóstica da realidade. Enquanto em A Origem a realidade (os interesses corporativos) é um dado inquestionável com o qual o protagonista deve trabalhar, em Agnosia a realidade é o resultado de como Joana vê ou ouve os dados da percepção - um demiurgo (o psiquiatra) prende Joana em uma "crisálida" e manipula os seus sentidos para arrancar dela um segredo. Cria um microcosmo, inclusive com estrelas projetadas ao redor dela. Nada mais gnóstico: nossos sentidos podem nos enganar em um cosmos que é um constructo assim como a redoma do gigantesco reality show que é a vida no filme Show de Truman.

Ficha Técnica


Título: Agnosia
Direção: Eugenio Mira
Roteiro: Antonio Trashorras
Elenco: Eduardo Noriega, Bárbara Goenaga, Félix Gomez, Luíz Homar,Matina Gedeck
Produção: Roxbury Pictures, telecinco Cinema
Distribuição: Primer Plano Film Group
Ano: 2010
País: Espanha



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