Para além do discurso utilitarista ou racional das novas tecnologias (eficiência, redução de custos e tempo, eficácia etc.), a motivação mística ou gnóstica aparece como um subtexto: como a possibilidade de uma experiência de superação dos limites corpóreos, habitar o tempo, transcender ao ciberespaço e abandonar a imobilidade do espaço e da carne. As novas tecnologias possibilitariam a experiência da gnose, porém, sem ascese, disciplina ou reforma íntima. A tecnologia é o atalho puro, o mais rápido para ansiedade atávica da espécie em escapar desse cosmos físico. Em postagens anterioras (ver abaixo as postagens relacionadas) discutimos que esse gnosticismo está imbuído de princípios cabalísticos no sentido de desprezar o mundo material per si, sem redimi-lo, encarando a carne e a própria materialidade como um golem, caos, disformidade, algo queadeve ser simplesmente descartado.
Mas outra espécie de tecnologia surge no horizonte da cultura: as tecnologias (e a sua aplicação prática, a engenharia) do espírito. Sua origem está na área de auto-ajuda e autoconhecimento, formas secularizadas de uma teologia positiva, isto é, formas de auto-divinização: a partir de técnicas análogas às tecnologias computacionais (interação, simulação, rede, recursividade etc.), o ser humano se auto-conheceria (na verdade se auto-reprogramaria) para libertar-se das limitações corpóreas e existenciais, tornando-se motivado, positivo e vencedor. Adaptar-se ao mundo corporativo e dos negócios é mais do que ganhar dinheiro. É uma jornada espiritual de autoconhecimento.
Temos aqui outro “atalho para Satori”: a partir de livros esquemáticos e muitos cursos à base de apostilas em Power Point (a simplificação da simplificação) alcançamos a gnose de forma rápida e sem perda de tempo. De novo o princípio cabalístico: nada temos a aprender com a memória da carne (a dor, traumas, sofrimentos etc.). Devem ser descartadas (ou melhor, deletadas) como se apertasse um botão em um teclado de computador.
Associa-se a essa área a última novidade na engenharia espiritual: a Ad-Gnose. Ao explorar o vasto repertório arquetípico do inconsciente coletivo da espécie, a Publicidade vai oferecer o atalho da concretizção imediata dos anseios e desejos do inconsciente coletivo, por meio de produtos e da materialidade das imagens. O que era simbólico agora é material: mais do que comprar o produto, o fato de desejá-lo seria já uma experiência espiritual.
Há muito tempo a Publicidade deixou de ser orientada pelo princípio comportamental do “aqui está o produto. Agora compre-o!”. Desde o início a Publicidade esteve envolvida com um aspecto mágico e fetichista. Karl Marx, na obra máxima “O Capital”, já apresentava o capitalismo como uma fantasmagoria religiosa com a noção de fetichismo da mercadoria (ao invés de Deus, o homem passa a idolatrar e ser dominado pelo dinheiro, capital e mercadoria, entidades criadas pelo próprio homem). Toda a tradição da chamada “Teoria Crítica da Sociedade” vai identificar esse fenômeno na Indústria Cultural e na “Estética da Mercadoria” na publicidade (velha e nova geração da Escola de Frankfurt – Adorno, Horkheimer, Prokop e Haug). Aqui, ainda temos essa dimensão “mágica” ou “mística” ainda confinada na materialidade do produto. É como se o produto tivesse vida própria ao ser incorporado nele qualidades humanas ou mágicas de transformação. Se o homem quer essas qualidades de volta, deve adquirir o produto. Se o homem não consumir, ele estaria vazio e sem propósito.
Ao longo do século XX a Publicidade empregou diversas táticas da engenharia espiritual: técnicas comportamentais (behaviorismo e táticas subliminares), psicológicas (motivação, gratificação, cognição, necessidades psicológicas etc.) e psicanalíticas (compulsão e dependência oral, narcisismo, voyeurismo, erotismo etc.). Mas ainda temos o psiquismo ou subconsciente atrelados à existência do produto.
Numa economia cartelizada e caracterizada pela alta concentração das empresas em poucos grupos transnacionais, os produtos tornam-se cada vez mais idênticos, em tecnologia, imagem, função e utilização. As estratégias de diferenciação tornam-se cada vez mais superficiais, levando o produto às raias do supérfluo e da frivolidade. Por exemplo, pastas de dentes tornam-se idênticas na sua composição e função. Como diferenciá-las para “aquecer” o mercado e simular uma competição? Através da marca-fantasia e características hiperbólicas (“flúor garde”, “pró-menta”, “clean mint”, “mentol”,”Colgate total 12”, e assim por diante). Mas as figuras de retórica, embora numerosas, são finitas e se esgotam.
A Publicidade deve dar um novo salto qualitativo: paradoxalmente fazer o produto desaparecer no anúncio, transformando-o muito menos em algo a ser adquirido do que a ser experimentado como evento, jornada, descoberta ou renovação pessoal.
Assim como no passado onde o início da publicidade moderna originou-se no esforço em desconectar o motivo da compra do produto da sua utilidade (obliterar o valor de uso, fazendo o consumidor comprar o produto pela sua inutilidade), agora a Publicidade deve dar um novo salto qualitativo: paradoxalmente fazer o produto desaparecer no anúncio, transformando-o muito menos em algo a ser adquirido do que a ser experimentado como evento, jornada, descoberta ou renovação pessoal.
O primeiro movimento para esse salto foi o surgimento da técnica de segmentação VALS (Values, Advertising e Life Style) idealizada pelo futurólogo norte-americano Arnold Mitchell nos anos 70 e aprimorada nos anos 90. Além da tipologia psicológica, sua grande inovação foi a expansão do conceito de consumo: consumir não é apenas comprar mas, sobretudo, desejar. Desejar valores e estilos de vida inalcançáveis pela maioria da população, porém agregando valor às marcas. Explicando melhor, o desejo frustrado da maioria faz apenas agregar valor a marcas e estilos de vida consumidos efetivamente por uma minoria.
Marcas produzem eventos (maratonas, concursos, passeios de bicicletas etc.) com milhares de participantes que apenas desejam, mas não têm poder aquisitivo para consumir os produtos. Mas vivenciam seus desejos, agregando valor a produtos restritos a poucos. A separação entre o desejo e a aquisição imediata do produto foi o primeiro passo dessa engenharia do espírito.
Na Ad-Gnose temos a imaterialidade plena do produto. Para além dos valores e estilos de vida, algo mais profundo, no espírito, deve ser mobilizado: os arquétipos . Como símbolos do inconsciente coletivo aglutinadores de anseios, dúvidas e esperanças mais profundas da espécie humana, do ponto de vista gnóstico seriam a manifestação visível das partículas de Luz presente em cada um. Essa energia espiritual ou partícula de Luz em cada um de nós manifesta-se no cotidiano por meio da espontaneidade, inocência, boa-fé, bondade, compaixão, alegria, entrega e integridade de propósitos. Os arquétipos traduziriam esse élan em temas, tipologias, narrativas ou símbolos que, tal como a linguagem dos sonhos, canalizariam esse magma espiritual (Freud chamaria de Id), “materializando-o”. A compreensão e vivência do arquétipo potencialmente propiciaria a gnose e a possibilidade de transcendência e, como conseqüência, o confronto com esse cosmos material.
Mas a Ad-Gnose não é transcendência, mas imanência, não compreende ou vivencia o arquétipo, mas instrumentaliza-o. Toda a indústria do entretenimento necessita dessa energia pra dar vida às formas vazias e inertes que estruturam seus produtos.
Um exemplo é o filme publicitário “Gêmeos” da operadora “Oi”. Aplicando a caracteriologia arquetítipica de Carol Pearson, o filme aborda o arquétipo “O Nomal” (The Regular Guy) com o personagem do “Ligador” (veja foto acima). Pela descrição dada por essa pesquisadora, o Normal é aquele que quer estar em conexão com os outros, ser amado, querido ou, na tradução publicitária, ser popular. Como o próprio Freud já observou sobre a psicologia de massas e o mal estar da civilização, mais que a morte o que o homem mais teme é não ser amado, ficar solitário. Esse temor criaria uma armadilha que será a base da psicologia de massas: o medo da solidão conduz ao espírito gregário, querer fazer parte da maioria, anular a individualidade e o pensamento crítico.
O que seria a Sombra do arquétipo, o filme publicitário traduz como aspecto positivo. Confina o momento de verdade do arquétipo (amor e interesse pelo outro, compaixão e solidariedade) na bajulação e conformismo. A energia do arquétipo é instrumentalizada para o objetivo mais óbvio da operadora: façam bastantes ligações para termos mais lucros.
O subtexto na Ad-Gnose é esse: mais do que consumir um produto ou serviço, o consumo é a possibilidade de renovação ou enriquecimento espiritual. É um evento, jornada, experiência. O produto “desaparece” ou é deslocado para segundo plano para prometer ao consumidor um atalho para o enriquecimento espiritual: a gnose.