O retrofuturismo da nova empreitada artístico-decorativa do designer Hans Donner aponta para duas evidências: primeiro, a arquitetura e decoração cada vez mais se transformam em cenografia e, segundo, a decadência da própria TV Globo que ficou velha e kitsch com os seus cenários ao estilo naves espaciais como a bancada do Jornal Nacional ou as aberturas das telenovelas.
O excelente texto da revista "Piauí" (58, julho) intitulado “Futuro do Pretérito – Os brasileiros, enfim, podem morar num cenário da Globo” apresenta uma faceta menos conhecida do designer gráfico Hans Donner, responsável pela identidade visual da TV Globo: designer de móveis. Essa empreitada artístico-decorativa teve como cenário o SPA do Vinho Caudalie, um hotel luxuoso na cidade gaúcha de Bento Gonçalves. Lá expôs suas mesas e cadeiras “retro-futuristas” (esferas, cones e pirâmides de fibra de vidro com cores metálicas) e, dessa vez, parece ter sido bem sucedido.
Após frustrantes experiências na década de 80, Donner afirmou que “agora fui plenamente compreendido”. A cobertura midiática das suas criações foi maior, o dono do hotel comprou quinze peças e Xuxa Meneghel e Fausto Silva teriam manifestado interesse pela sua criação mobiliária mais famosa: a “Poltrona Brasil” (em que até o ex-presidente FHC sentou e posou para fotos numa feira em Hanôver).
Para Donner, no passado era tudo muito futurístico, mas “a aceitação mostra como o Brasil mudou”. O texto da “Piaui” acerta na mosca: “os móveis de Donner seguem seu estilo inequívoco: o do futuro do pretérito. Eles concretizam aspirações defuntas, ruínas de um futuro que não existirá nunca. Não obstante, seus objetos são reais e existem no presente”.
Em outras palavras, temos nesse insólito desejo de Donner de ver os brasileiros viverem numa cenografia da TV Globo um sintoma daquilo que discutíamos em postagens anterioras como “hiper-realidade” ou “disneyficação da realidade” (veja links no final da postagem).
Esse retro-futurismo das peças de Hans Donner parece apontar para dois fatos: primeiro, na medida em que o hiper-realismo domina o real (ou, pelo menos, percepção daquilo que entendemos como “realidade”) a arquitetura e a decoração cada vez mais se convertem em efeitos cenográficos de tal ordem que as diferenças entre o design de cenários nos estúdios globais de Jacarepaguá no Rio e a construção de fechadas e decoração de interiores é uma só: pelo menos as cenografias em que vivemos são tridimensionais.
E segundo, esse retro-futurismo de Donner que expressa o imaginário em ruínas de um futurismo “sci fi” ou das primeiras animações geométricas e monótonas em computadores, somente pode apontar para uma coisa: a decadência da própria TV Globo que ficou velha e kitsch com os seus cenários tipo naves espaciais como os da bancada do Jornal Nacional ou das aberturas das telenovelas.
Do futurismo ao Hiper-realismo
Nos anos 70 e 80 o então “futurismo” do design de Hans Donner teve um papel histórico: a inserção dos produtos da TV Globo no mercado internacional e a criação uma estética moderna para a cultura brasileira. Se o conteúdo dos produtos oferecidos pela emissora como imagem brasileira para o mercado externo continuava o mesmo (mulheres e natureza), sua estética devia superar os velhos clichês criados à época da chamada “política de boa-vizinhança” do presidente Roosevelt: Carmen Miranda, bananas, baianas e carnaval.
Agora tudo isso era colocado em movimento por computadores sobre esferas, pirâmides e cones, criando atmosferas futuristas e New Age. Tudo isso encarnava a utopia do “Brasil Grande” do milagre econômico brasileiro dos governos militares e o surgimento de uma nova classe média identificada com a “modernidade” trazida pelos “enlatados” (pacotes com minisséries, filmes e desenhos animados principalmente norte-americanos) exibidos pela TV Globo.
Mas tudo isso acabou: a hiperinflação da década de 80 pulverizou esse sonho e proletarizou a evanescente classe média que, traída e sem opções de lazer, só restava ficar diante da TV observando as vinhetas “high tech” de Donner sobre um imaginário que cada vez mais não correspondia à realidade.
Como já apontou autores como Jean Baudrillard sobre a tendência à hiper-realização da cultura pós-moderna, quando práticas simbólicas (isto é, símbolos criados pela cultura, pela práxis social) desaparecem elas são substituídas pelos signos, sistema de consumo sem qualquer transitividade com o real. Em outras palavras, o “tempo forte” histórico é substituído por simulacros de épocas que já se foram, de projetos, sonhos ou utopias que não vingaram. Porém, esses simulacros são cada vez mais tecnologizados e, por isso, fascinantes.
É o momento do hiper-real ou “disneyficação da realidade” (para usar um conceito irônico de Baudrillard): os simulacros querem invadir a realidade, liquidar a miragem do referente e, ele próprio, tornar-se o real.
Esferas, pirâmides e cones: mulher e natureza modernizados para o mercado externo e milagre econômico dos governos militares |
Fascínio pelas imagens
Na medida em que o imaginário da identidade visual da TV Globo perdia o vínculo simbólico com a realidade, cada vez mais aumentava o fascínio pelo simulacro tecnológico das imagens. Os anos 90 apresentaram o início desse fascínio e a aspiração pelo hiper-real. Por exemplo, em uma reportagem sobre programas televisivos de auditório como Topa Tudo por Dinheiro e Olimpíadas do Faustão ("Com direito à glória". In: Veja (26) 15, 14 abr.93.), perguntava‑se porque aquelas pessoas arriscavam o pescoço em jogos malucos e se humilhavam publicamente nas provas de habilidade manual e intelectual propostas pelas gincanas. Segundo enquete feita pela reportagem, os participantes afirmaram que não era por dinheiro, mas pela notoriedade conseguida com a participação nestes programas: ficavam conhecidos no bairro em que moravam, nem que fosse por alguns dias.
Outro exemplo: o pesquisador Muniz Sodré faz o relato de uma pesquisa realizada na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, sobre a recepção dos conteúdos de TV (Muniz SODRÉ, A Maquina de Narciso. São Paulo, Cortez. 1989). A pesquisa consistia numa pergunta simples: "O que você quer ver na TV?". Os pesquisadores imaginavam dois tipos de padrão de respostas: iriam convergir para a preferência pela cultura popular do morro ou, então, para a cultura norte‑americana dos filmes. A resposta conseguida não poderia ser mais surpreendente, nem uma coisa nem outra: "quero ver eu na TV”.
Ao desejo de ver a si mesmo como imagem (o sonho secreto por trás de cada cirurgia estética ou na “bomba” comprada em academias de musculação) ou de transformar-se em imagem para alcançar a fama efêmera, hoje se acrescenta mais uma tendência à hiper-realidade: arquitetura e interiores assumindo ares cenográficos, como estúdios de cinema e TV nos quais podemos eternamente habitar como artistas anônimos.
Do modismo arquitetônico dos prédios neoclássicos “fakes” a ambiências que remontam eras passadas (botecos chiques que estilizam bares dos anos 50 e 60 ou ambiências temáticas) parece que cada vez mais habitamos cenários em ruínas, signos de épocas que perderam a força histórica e hoje são convertidos em simulacros.
O retro-futurismo de Hans Donner e da identidade visual da Globo se associam aos simulacros tecnológico da sociedade de consumo |
As ruínas globais
Portanto, para os inimigos do monopólio da TV Globo o sucesso da empreitada artístico-decorativa da Hans Donner deve se visto como uma boa notícia. Ela representa muito mais do que as ambições de um designer gráfico. Se a hipótese da hiper-realidade for correta, significa o enfraquecimento simbólico de um estilo de uma época. Hoje, se converte em estilo retro-futurista.
Aos Botecos chiques, pinguins sobre geladeiras, design retros de aparelhos de som e neoclássicos fakes, se associa mais um signo: a identidade visual da TV Globo, agora disponível como ambiência.
Como afirma Donner, de fato o Brasil mudou. As mudanças estéticas e editoriais recentes empreendidas pela TV Globo para cativar a classe C em ascensão com o aquecimento econômico (desde as alterações visuais da bancada do Jornal Nacional onde Donner apenas supervisionou até as pautas jornalísticas mais “populares”) apontam para essa percepção de que sua identidade está desgastada.
Quando a identidade visual da TV Globo se transforma em simulacro para, depois, converter-se em mobília e ambiência, estamos, portanto, diante do sintoma de que o Brasil mudou e a TV Globo envelheceu. Ela agora vai ser mais um signo das ruínas hiper-reais da sociedade de consumo.
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