Cada época tem o seu vampiro que merece: a entidade das trevas que melhor está sintonizado com o espírito do seu tempo. O cânone vampiresco de Bram Stoker refletia o racionalismo da Revolução Industrial e o fundamentalismo religioso. Mas no século XXI o vampiro torna-se moralmente neutro e vira um ser “vivo” que evolui adaptando-se ao ambiente, como mais um predador na cadeia alimentar. O filme ‘Abigail’ (2024) é um terror mashup e exploitation que reproduz essa mudança na mitologia do vampiro. Um thriller de humor negro sobre um grupo de sequestradores que mordem mais do que podem mastigar quando involuntariamente sequestram uma bailarina vampira do tamanho de uma criança.
Bram Stoker reelaborou a mitologia do vampiro, compilada do folclore e lendas do Leste europeu, segundo a ideologia da Era Vitoriana, dominada pelo amálgama do racionalismo triunfante da revolução industrial e o fundamentalismo religioso. Poderíamos dizer que Drácula era um vampiro-terrorista cujo irracionalismo que vinha diretamente de um Leste europeu atrasado e feudal queria ocultar com suas sombras a luzes da Ciência do Ocidente.
Por isso, o cânone dos vampiros criado por Stoker enquadrou esse ser das trevas como a própria encarnação do Mal ou pela culpa (a imortalidade como uma maldição ou castigo Providência Divina) ou como a própria encarnação da maldade (matar como manifestação do prazer pelo Poder).
Essa é uma visão religiosa do Mal: o vampiro como uma tentação demoníaca que, por meio da hipnose, vem despertar nos seres humanos (e principalmente mulheres) seus impulsos mais primitivos (aqueles superados pela racionalidade): entregar o próprio pescoço para ingressar no imortal reino do Mal. Em outras palavras, entregar-se ao pecado e ser punido por isso.
Mas a mitologia do vampiro se transformou, assim como a confiança na racionalidade, abalada pelo fato de o resultado da tecnociência ter sido as guerras tecnologizadas e a ameaça nuclear – e o caos urbano e a destruição ambiental como seus subprodutos.
A mitologia do vampiro abandona a aura religiosa vitoriana para se tornar uma entidade amoral – do ponto de vista ético, os vampiros se colocam ao lado dos monstros atuais: não são nem bons nem maus: trata-se de predadores que, do ponto de vista da performance evolutiva, são fascinantes máquinas de sobrevivência. Há uma neutralização ética: ele não é mais um desvio da moralidade, mas o aprimoramento racional da performance de um ser que na sua evolução transforma o ser humano em presa.
Dessa maneira os vampiros entram no reino da evolução das espécies, anteriormente negado pela racionalidade vitoriana. Vampiros agora adaptam-se no mundo pós-moderno para sobreviverem e prosperarem.
Um exemplo dessa mudança do status do vampiro está na comédia de humor negro exploitation Abigail (2024), um thriller de terror maluco de alto conceito sobre um grupo de sequestradores que mordem mais do que podem mastigar quando involuntariamente sequestram uma bailarina vampira do tamanho de uma criança.
E isso que contamos não é um spoiler. Já é contado no trailer promocional, uma pequena vampira que ataca suas vítimas com introdutórios saltos acrobáticos de uma bailarina.
A partir do momento em que o filme foi anunciado há um ano, Abigail foi comercializado como um remake de “Dracula's Daughter”, a curiosidade da Universal Pictures de 1936. Uma espécie de spin of do sucesso de Bela Lugosi. Portanto, não é spoiler dizer que o personagem-título de “Abigail” é... a filha de Dracula.
Na verdade, o pai é o chefe do submundo demonicamente cruel e onipotente que tem como hábito cortar seus inimigos em pedaços. Virou uma lenda no submundo do crime organizado pela sua habilidade a entrar em lugares onde não há explicação para isso. Afinal, ele um vampiro que se adaptou ao mundo moderno e evoluiu.
Sem saberem, esse grupo sequestra a filha do mais temido chefão do crime organizado. Eles não sabem que no submundo daquela cidade, os gangsters foram substituídos pelos vampiros.
O Filme
O filme abre em um recital de balé, onde Abigail (Alisha Weir), de 12 anos, está fazendo sua apresentação. Ela está sendo vigiada por três criminosos. Três outros do lado de fora (um hacker, um franco-atirador e um motorista de fuga) esperam por eles por ordens. Quando Abigail termina, os três dentro a sequestram e a arrastam para a van. Eles fazem o seu caminho pelas ruas sem serem detectados antes de chegar a uma mansão.
Antes de descobrirmos sobre a verdadeira natureza maligna de Abigail, observamos essa coleção um tanto sem noção de sequestradores anônimos, confinados naquela mansão e que começam a discutir entre si.
Eles foram contratados por um intermediário chamado Lambert (Giancarlo Esposito), um líder obscuro, educado e bem-vestido. Lambert informa ao grupo que ficarão confinados 24 horas com a sequestrada, até que o resgate milionário seja pago pelo pai. Algum milionário desconhecido pelo grupo.
Eles não devem revelar suas verdadeiras identidades e são referidos apenas por nomes do “Rat Pack”, como Lambert os apelidou. O grupo é heterogêneo e interessante: a esperta Joey (Melissa Barrera), uma ex-viciada e uma leitora fisionômica tão boa que ela deduz o histórico de cada pessoa imediatamente. Há Frank (Dan Stevens), um ex-detetive da polícia que se corrompeu; Sammy (Kathryn Newton), uma hacker rica e amoral que apenas está em busca de emoção; Rickles (Will Catlett), um ex-fuzileiro naval; Peter (Kevin Durand), um ex- segurança da máfia musculoso que parece um Arnold Schwarzenegger envelhecido; e Dean (Angus Cloud), um motorista especialista em fugas sociopata e intelectualmente desafiador.
Esse divertido grupo de desajustados então relaxa, vendo uma geladeira abastecida e o bar repleto de bebidas. Não demora muito para acontecer o primeiro assassinato brutal. É quando Abigail se transforma por algum tempo num mush-up de contos de Agatha Christie.
Grande parte do filme se desenrola dentro de uma mansão labiríntica que parece ter sido imaginada por um designer de parque de diversões que escaneou alguns filmes de terror antigos enquanto folheava livros ilustrados sobre a história da aristocracia europeia. Há armaduras flanqueando a porta da frente, um tapete de pele de urso no chão, tábuas do chão rangendo e estsalando, um caixão vazio escondido em um canto e, estranhamente, dadas as circunstâncias do gênero, um pouco de alho fresco em uma cozinha abandonada.
Todos começam a desconfiar um dos outros: quem é o assassino? Para todos, a menina está fora do drama – é apenas uma pré-adolescente rica, frágil e assustada.
Tudo fica ainda mais tenso quando descobrem o pai da menina sequestrada: o lendário chefe do submundo do crime Kristof Lazar (Dan Stevens). Para todos, é a sentença de morte. Mas, o pagamento que cada um levará (7 milhões de dólares) compensa o risco: é a chance de praticar o último golpe e mudar de vida.
Embora ela aparentemente não goste muito do pai, Abigail é uma vampira que perpetua a saga do velho estripador. Em pouco tempo, brotam afiados dentes nela, para se transformar em uma criança selvagem, perseguindo os sequestradores, um por um. Ela está brincando com eles numa espécie de tipo de jogo. Claro, um jogo em que só Abigail está se divertindo.
Evolução e punição – Alerta de Spoilers à frente
Gangsters são substituídos por vampiros. Esse é o auge da evolução e adaptação dos vampiros na vida moderna.
Do filme Inocente Mordida (1992), passando por Bonnie & Clyde Vs. Drácula (2008) para chegar em Renfield(2023), o mito do Drácula abandonou a aura vitoriana de religião e culpa para uma moralidade neutra: vampiros são seres que evoluem, como qualquer ser vivo no planeta – como predadores na cadeia alimentar de um ecossistema, eles adaptam-se ao meio para evoluir.
Petrificados, o grupo de sequestradores descobrem que na verdade eles são os prisioneiros e as vítimas: tudo não passa de um brinquedo da vampira Abigail - atrair vítimas pela ambição (ganhar uma fortuna na criminalidade) para os criminosos descobrirem ironicamente que na verdade eles são as vítimas. Vítimas de si mesmos: da ambição e da cobiça.
O aspecto religioso e do desafio à racionalidade podem ter desaparecidos na mitologia do vampiro no século XXI. Mas o moralismo punitivista permanece: assim como em Drácula, a imortalidade é uma maldição pela vítima ter se entregado ao fascínio sensual pelo vampiro, agora, o vampiro usa a ambição como isca para matar em um jogo sangrento.
Ladrão que rouba ladrão...
Ficha Técnica |
Título: Abigail |
Diretor: Matt Bettinelli-Olpin, Tyler Gilletti |
Roteiro: Stephen Shields |
Elenco: Melissa Barrera, Dan Stevens, Alisha Weir |
Produção: Project X Entertainment |
Distribuição: Amazon Prime Video (alugar ou comprar) |
Ano: 2024 |
País: EUA, Canadá |