terça-feira, julho 09, 2024

Como roubar com muita empatia e solidariedade no filme 'Eu Me Importo'


Nada mais atual do que o pânico da senilidade, demência, Alzheimer etc. A controvérsia midiática em torno das limitações cognitivas do presidente Joe Biden mostra isso. Para o Capitalismo, toda crise é oportunidade: por que não transformar esse pânico em mais uma forma de drenagem de dinheiro para o rentismo improdutivo? E tudo com uma cara politicamente correta, com muita empatia e solidariedade – uma tutora legal cuida de idosos judicialmente impedidos a partir de falsos laudos de médicos parceiros, mandando-os para asilos, enquanto drena dinheiro e propriedades das vítimas. É o filme Netflix “Eu Me Importo” (I Care a Lot, 2020). Até o momento que a golpista se envolve com a idosa errada. Mas... toda crise pode ser uma oportunidade. Uma história tragicômica do sonho americano invertido: a meritocracia é um conto de fadas inventado para os pobres.

Mal de Parkinson, senilidade, demência, Doença de Alzheimer etc. são degenerações neurológicas que hoje ganham espaço na mídia, transformando-os numa espécie de pandemia que está tomando de assalto a terceira idade. Somados à polêmica envolvendo a suposta incapacidade cognitiva do octogenário presidente Joe Biden de comandar o império norte-americano, parece que vivemos o cenário perfeito para aquilo que o filme Eu Me Importo (I Care a Lot, 2020) narra.

Um médico seleciona um paciente idoso que parece ser um bom candidato à tutela: uma pessoa com uma bela poupança amealhada por toda uma vida.  Uma pessoa que ainda não esteja muito velha e doente, mas possivelmente à beira da demência. Um juiz assina uma ordem judicial afirmando que essa mulher não pode mais cuidar de si mesma e precisa de outra pessoa para intervir e ajudar. Um guardião legal aparece na casa da mulher com o documento, dizendo que ela está no comando agora e insistindo que cuidará bem de sua propriedade e finanças. Um motorista a leva para uma casa de repouso, onde o gerente a acompanha para uma sala privada, prometendo que ela será tratada como uma rainha.

E uma vez que todas as peças estejam no lugar, a engrenagem começa a funcionar: o guardião está livre para drenar dessa idoso desavisado cada centavo que ele tem. Drenar para a conta do guardião, claro. 

E o mais irônico: e tudo acontecendo em tons pasteis de uma atmosfera de empatia e solidariedade. Roubar com um sorriso politicamente correto no rosto.

Esse golpe impressionante é o tema de Eu Me Importo, um thriller em tons de humor negro escrito e dirigido por J. Blakeson (O Desaparecimento de Alice Creed, A 5º Onda), inspirado em histórias reais de guardiões predatórios se aproveitando de vítimas que não têm voz.

O filme começa a descrever tragicomicamente o esquema golpista ainda como um drama local: Marla (Rosamund Pike) suborna médicos para fazer diagnósticos de demência falsificadas para pacientes idosos abastados solitários e sem família. O médico solicita uma ordem judicial de emergência para que essa pessoa idosa, agora aterrorizada, seja colocada sob os cuidados de Marla, como um guardião nomeado pelo estado com carga discricionária das finanças dessa pessoa. Enquanto a vítima idosa é sedada e presa em um lar de idosos, sem visitantes permitidos, Marla tem o direito de drenar sua conta bancária e vender seus ativos para pagar as contas inflacionadas cobradas pelo lar de idosos em que ela possui ações – do qual recebe gordos dividendos.



Marla é uma pessoa que aspira ao sonho americano, só que de forma inversa: não acredita no mérito ou no esforço – não passa de um conto de fadas contado pelos mais ricos aos pobres. Marla não quer ser pobre e perdedora. Então, aspira em se tornar um tubarão predador, ao lado de sua sócia e amante Fran (Elza Gonzaléz). E se tornar muito rica e, como fala a certa altura, “transformar o dinheiro numa arma”.

  Se o filme fosse filmado pelos irmãos Cohen, certamente teria um tom de Fargo: a história de um golpista local que se enreda em pequenos erros cujos efeitos tornam-se exponenciais. 

Mas J. Blakeson pretende algo maior com Eu Me Importo: como os pequenos golpes da dupla Marla/Fran se conectam com atual zeitgeist do capitalismo: a criação de um complexo financeiro-jurídico-midiático para a legitimação da violenta drenagem e concentração de riqueza – a lavagem sistemática de saque e roubos através da engenharia jurídica e financeira, encobertos pelo verniz midiático de jornalistas que idolatram bilionários bem-sucedidos – supostamente, as provas vivas de que o sistema meritocrático existe e funciona.

Eu Me Importo começa como uma pequena comédia de erros provincianos ao estilo dos Cohen para se transformar em algo muito maior.



O Filme

Marla Grayson é uma mulher implacável que, com sua assistente-amante Fran explorando uma mina de ouro de negligência. Marla é a vitrine da pura maldade predatória, iluminando a tela com seu corte de cabelo sociopata, tons e roupas de moda. Sempre com o seu cigarro eletrônico à boca – o novo sinal politicamente correto de um vilão na tela, substituindo o velho cigarro dos thrillers noir.

Um dia sua médica, cumplice do esquema, indica para Marla um alvo que ela acha ser uma “cereja”: uma idosa, mansa, solitária e muito rica: a Sra. Peterson, maravilhosamente interpretada por Dianne Wiest. Mas Marla não percebe que a Sra. Peterson possui uma, até então desconhecida, conexão familiar com um mafioso russo vingativo chamado Roman Lunyov, interpretado por Peter Dinklage – um mafioso obcecado por doces porque não gosta de se ver com raiva...

Dessa vez, Marla escolheu a idosa errada. Na verdade, ela é “o pior erro que você já cometeu” - uma mulher com ativos ocultos cujo desaparecimento de sua casa toca alarmes nas casas de pessoas que podem tornar a vida de Marla “muito desconfortável”. Uma visita rejeitada do advogado da Sra. Peterson mais tarde levará Marla a uma cadeira, amarrada, olhando a morte no rosto.



Mas Eu Me Importo mostra uma das maiores reviravoltas de uma vilã loira, desde aquelas das “loiras geladas” de Hitchcock.

Drene todo o dinheiro que puder – Alerta de Spoilers à frente

Não só no Capitalismo, mas a própria História é composta de histórias de roubos, saques e exploração de excedentes econômicos – da escravidão ao trabalho assalariado, passando pela simples pilhagem. Da colonização à pirataria.

O Capitalismo pode ter inventado o trabalho assalariado (a ilusão de que o salário é o reflexo do mérito da força de trabalho), mas o atual momento, que antecede o chamado “Grande Reset do Capitalismo”, inventou a drenagem financeira.

Um sistema financeiro gigante e global que, de um lado, drena o dinheiro de todos pela criação do crédito e, do outro, drena a riqueza social às custas do financiamento da dívida pública do Estado. Drenar toda a riqueza do trabalho para ganhos rentistas improdutivos.




Porém, essa drenagem do poder público sempre será controversa, mobilizando paixões políticas, protestos e denúncias.

Por que não uma nova forma de drenagem? Mais, por assim dizer, politicamente correta, insuspeita, sob a imagem da empatia e solidariedade. É o que nos informa o irônico título do filme: “Eu Me Importo” – demonstrar todo o afeto e preocupação do bem-estar de idosos judicialmente considerados incapazes, enquanto o dinheiro das vítimas é drenado.

Essa é a descoberta do mafioso russo Roman – cansado de viver à margem da legalidade traficando drogas e joias, descobre que o Ocidente inventou uma nova forma de concentração de riqueza. A exploração legal, com um sorriso no rosto, empático, correto. Que para a mídia vira um conto motivacional de solidariedade e sucesso meritocrático.

Por que matar a galinha dos ovos de ouro? Vencido pela persistência de Marla sempre sobreviver às suas tentativas de vingança, Roman propõe uma sociedade: transformar o esquema de Marla em um golpe global, com a proteção da Santíssima Trindade do Capitalismo: os sistemas financeiro, judicial e midiático – uma empresa nacional de curatela de idosos, uma corporação com 80 empresas no exterior com braços imobiliário, jurídico, médico, farmacêutico e com sua própria rede de asilos para confinar as vítimas idosas.

Roman Lunyov deveria ter percebido desde o início do filme: o Capitalismo sempre está a uma novidade à frente... a queda do Muro de Berlim e da União Soviética já mostraram isso.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Eu Me Importo

Diretor:  J. Blakeson

Roteiro: J. Blakeson

Elenco: Rosamund Pike, Peter Dinklage, Eiza González

Produção: Black Bear, Crimple Back

Distribuição: Netflix

Ano: 2020

País: EUA

 

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