Este filme é para cinéfilos aventureiros. Um filme estranho. “I Saw the TV Glow” (2024) é um curioso drama de amadurecimento, não apenas de um casal de jovens em um típico subúrbio daqueles do sonho americano. Mas da própria mídia: da sensação de pertencimento entre os pixels analógicos de séries de nichos dos anos 1990 à experiência customizada pelos algoritmos das plataformas de streaming do século XXI. O drama da adolescência que se recusa a aceitar o mundo adulto vê numa série chamada “Pink Opaque” uma mitologia pop que se cruza com elementos gnósticos. Veem no brilho catódico da TV a única maneira de escapar de uma realidade opressiva que é a quintessência do sonho americano.
Era uma vez a TV que criou um tipo particular de fã que foi esquecido num século XXI das plataformas de streaming e os algoritmos que costumizam nossa experiência audiovisual: telespectadores que criavam uma comunidade virtual em torno dos episódios semanais agendados na grade da programação televisiva.
Se na Era do Rádio esse veículo criou uma forma de integração social a partir de uma grade diária de programação, a televisão substituiu essa mídia ao criar uma grade audiovisual que agendava o próprio cotidiano: “vamos marcar um encontro antes ou depois da novela?”, era uma questão básica. O testemunho de como a TV criou o “grande público”, um tipo de esfera pública baseada na sociabilidade mediada.
Acompanhava-se a programação em guias de TV, procurava-se recapitulações de episódios, emprestava-se fitas VHS de episódios gravados etc. E cada transmissão comparecíamos ao vivo. Por exemplo, para ver o último episódio de Arquivos X ou Buffy, a Caça Vampiros, simultaneamente, todos tinham que aparecer diante da TV. Criando essa ideia de “grande público”. Eram acontecimentos comunicacionais.
E se o seu gosto acabou correndo para um determinado nicho, descobrir que outra pessoa amava a mesma coisa que você parecia revelador – ela era capaz de falar uma língua que só você entendia.
I Saw the TV Glow (2024) é um filme que recria essa sensação de pertencimento entre pixels analógicos. Combinado com mais uma narrativa ambientada nos culturalmente opressivos ambientes dos subúrbios da classe média americana – a quintessência do sonho americano.
Jane Schoenbrun nos conta uma história de amadurecimento de dois adolescentes, indecisos em seu próprio gênero e sexualidade, perdidos na vida suburbana dos papéis sociais estereotipados. E que veem no brilho catódico da TV a única maneira de escapar de uma realidade opressiva. Adolescentes que olham para os adultos e sabem o que os espera. E não gostam nada do futuro.
Descobrem que são fãs dos capítulos semanais de uma série chamada “Pink Opaque” do canal “Young Adult Network”, que vai ao ar aos sábados, 22h30. Azar do jovem Owen (Jan Froemann): com dois anos a menos da sua amiga de escola Maddy (Brigette Lundy-Pane), seus pais o obrigam a ir para a cama às 22h.
Para pular do Guia de TV para assistir ao vivo os episódios, Owen é obrigado a mentir para os pais que dormirá na casa de um amigo – quando na verdade passa a noite com Maddy, fascinado com a estranha mitologia de “Pink Opaque”, com monstros bizarros confrontados por uma dupla de garotas com superpoderes psíquicos.
A essa mitologia pop de “Pink Opaque”, Jane Schoenbrun acrescenta outra mitologia: a gnóstica. Não se trata tão somente de uma fantasia escapista de dois jovens suburbanos tentando fugir do mundo adulto. É escapar da própria realidade: tentar atravessar a tela e se esconder no mundo fantástico da série. Afinal, como afirmam a certa altura, “às vezes sinto que Pink Opaque é mais real do que a própria realidade”.
I Saw the TV Glow é neoplatônico: e se a realidade é for apenas uma cópia imperfeita do mundo platônico das séries de TV? Melancólicos, Maddy e Owen sentem que há algo irreal na vida daquele subúrbio. E não é por menos: os subúrbios norte-americanos são realizações em dry-wall das famílias protagonistas dos filmes publicitários, desde o pós-guerra.
Imersos na hiper-realidade, só podem considerar “Pink Opaque” mais real que a própria vida.
O Filme
Iluminados no brilho rosa de um programa de TV, dois adolescentes se sentam em um porão enquanto um mundo duro os espera do lado de fora. É o final dos anos 90 e este refúgio frágil é onde eles assistem à sua série favorita, uma versão fictícia de um fenômeno como “Buffy” conhecido como “The Pink Opaque”. Enquanto eles se sentam lado a lado, começam a chorar.
O filme começa em 1996, quando o entretenimento estava prestes a mergulhar sobre o penhasco e se tornar o que os teóricos da mídia às vezes se referem como cultura de convergência. Naquela época, a internet ainda não estava madura para assombrar a maioria dos adolescentes.
A história de “I Saw the TV Glow” pertence principalmente a Owen (interpretado como um aluno da sétima série por Ian Foreman e depois do ensino médio pelo Justice Smith). Ele está nervoso e ansioso em relação a sua sexualidade e identidade – ou seja, está atravessando a adolescência.
Então vê na TV um anúncio para um episódio de “The Pink Opaque”. Ele não sabe o que é, mas está obcecado em à série. Um dia, esperando que seus pais terminem de votar no refeitório da escola, ele entra em uma sala e encontra Maddy (Brigette Lundy-Paine) lendo um livro que recapitula episódios do programa. Maddy, uma garota mais velha e cínica, explica o show para Owen: é sobre duas garotas, Tara (Lindsey Jordan) e Isabel (Helena Howard), que se encontram no acampamento e descobrem que compartilham uma conexão psíquica que lhes permite lutar contra o tropo mais firme dos dramas de TV dos anos 90: o Monstro da Semana. Há um Grande Mal no mundo delas — o misterioso “Homem na Lua” chamado “Sr. Melancolia”.
Ao ouvir o argumento do programa, Owen fica ainda mais consumido pela curiosidade e fascínio.
Owen obtém permissão de sua mãe Brenda (Danielle Deadwyler) para dormir na casa de um colega de classe. Em vez disso, ele se aventura através de gramados suburbanos bem cuidados, à noite, para visitar Maddy e assistir juntos ao episódio da série.
Maddy é uma estrangeira melancólica naquele subúrbio: homoafetiva, e vê traída pela sua melhor amiga e amante, além de viver na casa do seu padrasto abusivo. Inspirada pelo imaginário de Pink Opaque, decide fugir da cidade para passar “para o lado de lá”, isto é, para o lado de dentro da tela. Convida seu amigo Owen, que recusa e vê Maddy desaparecer sem deixar rastros. Deixando para trás o aparelho de TV sendo consumido pelo fogo no jardim.
O tempo avança, para conhecermos Owen jovem adulto, trabalhando em subempregos, sozinho, desfocado, após a morte do seus pais.
Gnosticismo, melancolia e paranoia – Alerta de spoilers à frente
A realidade no filme é finalmente distorcida com o reaparecimento de Maddy, dez anos depois. Ela pergunta a ele se ele começou a experimentar uma distorção da realidade, onde ele não consegue dizer sua vida real pelo que vê na TV. Maddy diz esteve dentro do mundo de “The Pink Opaque” e pode ajudar Owen a chegar lá também. Ela pergunta se ele se lembra do que aconteceu no episódio final.
Owen vai para casa e assiste novamente ao último episódio do programa. Nele, o vilão do programa, o Sr. Melancolia, um ser sinistro com rosto e cabeça na forma da Lua, sequestrou Tara e cortou seu coração. Isabel também é levada, onde é envenenada e presa no reino do Sr. Melancolia depois que ela é enterrada viva.
De repente, Owen fica horrorizado e ente estar se puxando para dentro da televisão. Desse ponto em diante, I Saw the TV Glow distorce cada vez mais, apagando as fronteiras entre os pixels e a realidade.
Owen vai crescer, esquecer de Maddy e de todos os delírios de fuga da realidade. O que no filme coincide com a chegada a era digital, o fim do aparelho de TV de tubos catódico e a era atual das plataformas de streaming. No qual revê desiludido os episódios de Pink Opaque: décadas depois tudo parece tosco, malfeito e sem sentido.
I Saw the TV Glow faz uma interessante ponte entre a crítica midiática e a mitologia gnóstica: a customização algorítmica das plataformas streaming criou uma recepção solipsista – um novo tipo de conformismo que obscurece a possibilidade de criar um acontecimento comunicacional: o compartilhamento do mal-estar e alienação em evento presenciais.
O filme é dominado por temas Valentinianos (de Valentim, filósofo gnóstico do início da Era Cristã): a descida através do buraco do coelho até a paranoia e a melancolia. Para Valentim, paranoia e melancolia eram estados de consciência ideais para a busca da Verdade, a Gnose.
A paranoia despertada pela suspeita da artificialidade da vida do subúrbio (os papéis sociais tão estereotipados quanto os comerciais de TV) e a melancolia pelo compartilhamento da impotência entre os fãs de uma obscura série de TV de nicho.
No filme, a gnose ou a fuga da Matrix é levada ao paroxismo: a possibilidade de atravessar a tela e fugir para a realidade mais real do que a vida.
Ficha Técnica |
Título: I Saw the TV Glow |
Diretor: Jane Schoenbrun |
Roteiro: Jane Schoenbrun |
Elenco: Justice Smith, Brigette Lund-Paine, Ian Foreman |
Produção: A24, Fruit Tree |
Distribuição: A24 |
Ano: 2024 |
País: EUA |