Muito tempo antes da onda atual do teror de gênero, o diretor japonês Takashi Miike lançava as bases do J-Horror com um filme de vingança contra a arrogância masculina. “Audition” (Ôdishon, 1999) é um rico estudo em ironias psicológicas, retratando homens e mulheres como irreconciliavelmente separados por fronteiras sociais e traumas pessoais que devem eventualmente ser exorcizados pela violência. Tendo como fundo a patológica solidão da sociedade japonesa. Organizado por um amigo, um viúvo chamado Aoyama participa da audição de seleção de atrizes para um filme inexistente – um ardil para ele encontrar a mulher ideal. Uma audição baseada num pressuposto tão absurdo (a mulher perfeita se decepcionaria com a mentira, mas seria submissa o suficiente para aceitar o assédio) não poderia terminar bem. E Aoyama vai aprender da pior maneira possível.
“Golpe do amor”, “golpe do Tinder”, “estelionato sentimental”, “golpes de relacionamento”. São expressões que aparecem cada vez mais com frequência, aqui e ali, nas manchetes do noticiário. A história é conhecida, com algumas variações: o homem marca um encontro em um aplicativo de relacionamento e tudo o que encontra é uma quadrilha que o sequestra e obriga a vítima a fazer transferências bancárias com o celular; ou um homem ou mulher se aproxima da vítima que começa a fazer pedidos de empréstimos que nunca são pagos, até que o golpista desapareça.
Há uma ironia em tudo isso: amor em mentiras em meio à cultura dos algoritmos, cuja inteligência artificial deveria equacionar o problema da solidão humana através da redução das relações afetivas à probabilidade estatística. Mas há um fantasma na máquina: o Mal - algoritmos, avatares, perfis e plataformas pouco transparentes que permitem o anonimato. Gerando um ambiente intrinsecamente criminógeno.
Mas o filme sobre o qual vamos conversar é de décadas antes das redes sociais e aplicativos de relacionamentos. Mas o problema da solidão está lá. E os meios para minimizá-la ainda são, digamos, analógicos... mas, novamente, o fantasma da máquina está presente.
Vamos conversar sobre o filme japonês Audition (Ôdishon, 1999), do cineasta japonês Takashi Miike. Audition é considerado pela crítica como o precursor do J-Horror – um filme satírico, chocante e escabroso; adaptado por Daisuke Tengan do romance de 1997 de Ryû Murakami. Mas,acima de tudo, esse filme tem algo que diferencia da maioria dos filmes de terror: uma femme fatale sádica que aterroriza um homem.
Um homem viúvo e solitário. Mas que se insere num aspecto patológico mais geral da sociedade japonesa: o “meiwaku” (“incômodo”). À primeira vista japoneses são muito polidos e educados nas relações pessoais. Mas por trás dessas atitudes está o temor de causar “meiwaku” nas outras pessoas – causar algum tipo de incômodo, embaraço, inconveniência ou preocupação em estranhos. Isso acaba contribuindo no problema da solidão chegando ao extremo de se cometer suicídio para garantir que não causarão meiwaku aos outros – família, escola ou empresa.
O protagonista solitário de Audition, Aoyama (Ryo Ishibashi) não tem aplicativos de relacionamentos à sua mão. Como encontrar a nova esposa ideal num país que, para ele, as mulheres estão cada vez mais vulgares e sem classe? Mas ele é dono de uma produtora de cinema e audiovisual. Por isso seu amigo sugere: por que não faz uma audição para montar o cast para um novo filme? Claro, tudo seria um pretexto para na verdade selecionar não o cast, mas para selecionar a mulher perfeita.
Qual o tipo de mulher submissa que, mesmo decepcionada por não haver filme algum, compreenderá tudo e aceitará um gentil convite de Aoyama fazer a corte num romântico jantar?
Se aplicativos de relacionamentos são fundamentados na tecnociência dos algoritmos, também a audição de Aoyama em 1999 é feita através de método e análises qualitativas baseadas em dados quantitativos. Mas o fantasma está sempre na máquina.
Uma audição baseada num pressuposto tão absurdo (a mulher perfeita se decepcionaria, mas seria submissa o suficiente para aceitar a corte) não poderia terminar bem. E Aoyama vai aprender da pior forma possível.
O Filme
Como dissemos, Aoyama é um viúvo envelhecido no ramo do cinema e audiovisual que usa um estratagema para encontrar uma nova esposa; ele fará um teste para um papel coadjuvante feminino em um filme inexistente – ele espera atrair o tipo certo de mulher, submissa, a quem ele poderia gentilmente decepcionar gentilmente e convidar para um encontro. Essa premissa por si só seria suficiente para uma comédia inteligente, mas a partir daqui ela se transforma em outra coisa.
Aoyama está criando um filho adolescente, Shigehiko (Tetsu Sawaki). Preocupado com o pai, Shigehiko diz que Aoyama deveria se casar novamente, com uma leviandade que sugere como alguém pode pedir a um membro da família para buscar o jantar no caminho do trabalho para casa. Shigehiko é geralmente sensível e atencioso, mas vê as mulheres como acessórios.
Dolorosamente solitário, Aoyama sente culpa de Shigehiko não ter uma mãe e concorda em procurar uma nova esposa. Por insistência de seu parceiro de filmagem, Yoshikawa (Jun Kunimara), Aoyama faz o teste falso como forma de pescar mulheres jovens, atraentes e obedientes.
A primeira hora do filme pode ser lida de várias maneiras, muitas vezes simultaneamente. Externamente, a narrativa se assemelha a uma inócua narrativa romântica. Em outro nível, os homens ferem as mulheres durante Audition, parcialmente porque os homens veem as mulheres como “outras” para serem apreciadas e conquistadas quando conveniente.
Ao longo do filme descobrimos que Aoyama teve um caso com sua assistente na produtora, cuja dor ele ignora enquanto persegue a mulher dos sonhos na audição. Há sombras de outro filme clássico de manipulação e autoisolamento masculino: Vertigo de Hitchcock.
Mesmo o inocente Shigehiko confessa ter medo de mulheres, medo nascido em parte de sua mãe morta, cuja ausência não o preparou para relacionamentos saudáveis com o sexo oposto. Shigehiko traz uma garota para casa e Aoyama o anima como se fosse um atleta fazendo uma pontuação - uma piada que parece engraçadinha e típica das piadas de muitas comédias românticas americanas ou japonesas. Mas se torna retroativamente sinistra - estamos vendo homens reforçando uns aos outros as visões limitadas das mulheres como prêmios a serem conquistados, que devem complementar as noções que os homens têm de si mesmos.
No processo seletivo, Aoyama fica rapidamente atraído e fascinado por Asami (Eihi Shiina), uma jovem que se conforma tão perfeitamente ao ideal japonês de subserviência que parece perturbadora desde o início.
Esta é uma das ironias do humor negro no filme. Aoyama está tão determinado a ver Asami de uma maneira particular (como um reflexo de sua própria dor) que negligencia alguns detalhes suspeitos de Asami. O que Aoyama não consegue ver em nela é um abismo de alienação e loucura, fomentado por um histórico de abusos de homens, que excede sua compreensão e experiência. Expresso pelos olhos inteligentes de Asami, mas um tanto insensíveis e com uma estrutura rígida. Além de indícios evidentes de uma vida pregressa complicada.
Na verdade, é ela que está mais disposta a educá-lo nos caminhos das suas verdadeiras intenções – Asami é uma femme fatale disposta a perpetrar uma vingança de gênero. E ao longo da vingança, divertir-se sadicamente.
Audition parece buscar nos clássicos film noir a tradição da femme fatale. Asami não chega a ser a mulher “vamp”: ela primeiramente se apresenta submissa, tímida. Porém de uma forma perturbadora – algo não bate entre o seu olhar frio e a atitude pretensamente submissa. Porém, Asami vai ecoar a tradicional mulher fatal e vamp clássica quando eventualmente sua sensualidade explode ao longo do filme – é uma mulher problemática, que usa sua sensualidade como arma para destruir a vida dos homens.
Com isso, o diretor Takashi Miike faz um estudo de personagem rico em ironias psicológicas, retratando homens e mulheres como irreconciliavelmente separados por fronteiras sociais e traumas pessoais que devem eventualmente ser exorcizados pela violência.
Porém, Audition não é um filme feminista – o feminismo no Japão não goza da mesma estatura como nos EUA. Assim como Hitchcock, o diretor Miike também simpatiza com seus personagens masculinos. No entanto, ele é artista o suficiente para ver em suas mulheres o que seus homens não conseguem. As mulheres deste filme percebem o prazer masculino mútuo, a forma como os homens se unem para ajudarem uns aos outros. Asami anseia por isso, como revela ao final a tortura de Aoyama feita por Asami com requintes sádicos aterradores.
Nesse sentido, Audition é implacável com a cultura japonesa: mostra como por trás de toda aparente polidez, educação nas relações pessoais (patologicamente reforçada pela “cultura maiwaku”) está a solidão e o abismo gerado pelo sexismo. E ainda mais profundo, o magma que eventualmente pode chegar à superfície e explodir: o J-Horror, cujo filme Audition é o ato inaugural.
Ficha Técnica |
Título: Audition |
Direção: Takashi Miike |
Roteiro: Ryû Murakami, Daisuke Tengan |
Elenco: Ryo Ishibashi, Eihi Shiina, Tetsu Sawaki |
Produção: Basari Pictures, Creators Company Conection |
Distribuição: American Cinemathique |
Ano: 1999 |
País: Japão |