O “vazamento” da CNN do vídeo que fez cair o ministro-chefe do GSI foi a evidência de que os ataques de 08/01 em Brasília foram muito mais uma calculada bomba semiótica transmídia, do que uma tentativa real de um clássico golpe de Estado. O suposto vazamento tornou inevitável para o Governo a CPI, prometendo expandir o universo narrativo dos ataques de janeiro em múltiplas mídias e plataformas – cada vez mais o circo midiático das CPIs é transmídia. Bomba semiótica completa: polissemia, novidade, efemeridade, movimento e imprevisibilidade. E, principalmente, os sincronismos em torno do “vazamento” nesta semana. A invasão de Brasília foi um golpe virtual para a TV. O início de um universo em expansão que ameaça virar um golpe real.
Desde o início ficou claro que a invasão dos prédios dos três poderes em Brasília não era uma ação comum, do tipo golpe de Estado clássico – e nem pretendia ser. Tudo era de flagrante inutilidade para os golpistas: invadiram e depredaram prédios vazios, deixados propositalmente abertos e vulneráveis. Num domingo à tarde, ensolarado. Dezenas de ônibus chegando à cidade como se fosse acontecer algum festival ou qualquer outro evento turístico, religioso ou esportivo.
A paisagem bucólica rendia ótimas selfies para as redes dos patriotas que transformaram o evento numa espécie de parque temático do golpe – tudo parecia uma encenação, ópera bufa, um wanna be de golpe. Estavam lá apenas signos, cujo objetivo era render um bom espetáculo ao vivo pela TV... e assim foi.
Ao mesmo tempo, esse verdadeiro inside job militar sabia que dificilmente Lula morderia a isca. Ele é esperto demais para acionar uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e deixar tudo sob o controle das Forças Armadas. Seria como assinar o recibo do golpe. Como sabemos, decidiu acertadamente fazer intervenção civil no governo do DF.
Com tantas provas, evidências, registros audiovisuais, sincronismos para todos os lados que eram exibidos nos telejornais e gravações internas das câmeras de segurança dos prédios invadidos, tudo apontando para os graúdos artífices de toda encenação, era para os envolvidos serem sumariamente presos e condenados – lembre, caro leitor, como a ex-presidente interina da Bolívia, a direitista Jeanine Áñez, foi condenada a 10 anos de prisão, acusada de ter realizado um golpe contra seu antecessor, o esquerdista Evo Morales, em 2019...
Pelo contrário, os “atos anti-democráticos” viraram uma “retranca” no jornalismo, naturalizado pelos capítulos diários sobre os trâmites legais dos “manés” presos, depoimentos, imagens diárias nos canais de notícias identificando um por um dos patriotas.
Enquanto todas essas figuras que estrelavam o jornalismo diário assumiam o papel de buchas de canhão de anônimos chefes e financiadores, o “08/01” (algo assim como a grife “11/09” para os americanos) jamais saiu das escaladas de telejornais ou notas em colunas ou chamadas de primeira página.
Parece que deliberadamente tanto Justiça como grande mídia fizeram questão de transformar o “ataque à Democracia” numa série com uma temporada interminável. Para quê? Bem, nessa semana vimos o porquê.
Três meses depois, como o “08/01” propositalmente não é resolvido e passou a ter um ótimo recall na opinião pública, surge um “vazamento” no canal CNN: um vídeo mostrando o ministro-chefe do Gabinete da Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves Dias, dentro do Palácio do Planalto, durante as invasões em 08/01. Supostamente, o general, junto com outros servidores, ajudava os invasores no interior do Palácio.
General Gonçalves Dias, o “militar de confiança de Lula”, como alguns colonistas fizeram questão de enfatizar. “Cai o primeiro ministro de Lula”, exultaram as escaladas, portais e capas de jornalões.
Resistente desde o início a instaurar uma CPI dos atos anti-democráticos (“a PF já está investigando, dizia), Lula acabou jogado contra as cordas... xeque-mate! Se o “militar de confiança” estava do lado dos invasores e Lula colheu lucros políticos com a crise, então supostamente o governo poderia estar escondendo algo: de que também incentivou os ataques para faturar politicamente sobre o evento.
Sem saída, o PT terá que aceitar uma CPI que, como sempre, virará um reality show com debates entre surdos, com os olhos dos deputados vidrados em seus celulares tentando lacrar nas redes sociais. E embaralhando a urgente agenda econômica do Governo.
Narrativa transmídia
O 08/01 não foi uma tentativa de golpe, mas uma calculada bomba semiótica transmídia, cujo objetivo nunca esteve nas invasões em si, mas no potencial de um evento se transformar num universo em expansão – como é da própria natureza de uma narrativa transmídia.
Narrativa transmídia é um tipo de roteiro no qual são combinadas situações ficcionais com a realidade recorrendo a diversas mídias do mundo real e múltiplas plataformas de maneira a proporcionar ao receptor uma experiência imersiva.
Enquanto na narrativa tradicional há começo, meio e fim, ao contrário, na transmídia a história nunca termina porque vai continuar em múltiplas plataformas. Propositalmente os roteiristas deixam soltos e sem explicação diversas sequências de episódios para incitar os espectadores a criar diversas interpretações em múltiplas mídias – chats, fóruns, redes e mídias sociais.
Desde o início as invasões de Brasília mostraram-se como catástrofe virtual com um fio solto fundamental: a ambiguidade – quem financiou? Quem ganhou com o evento?
A CNN, a impagável “vazadora” do vídeo (autoindulgente, o jornalista Leandro Magalhães exultou que assistiu 160 horas de gravação em UMA madrugada – uauuu! Que madrugada longa...), logo após as invasões, já se adiantava é afirmava que o grande vencedor era Lula, que passara a ter uma “agenda de Estado”.
Desde o início foi a deixa para a oposição exigir uma CPI para reverter a narrativa: o culpado é a suposta vítima por espertamente ter lucrado politicamente.
Essa é a primeira característica de uma bomba semiótica: a polissemia – o que garantirá a expansão do universo narrativo. Por exemplo, “colonistas” já articulam que o episódio lembra o Mensalão: Lula não sabia da existência do vídeo, assim como não sabia dos pagamentos de mensalões no Congresso.
Como acontecimento virtual (um golpe virtual encenado para as câmeras), o inside job militar do 8/01 calculou a ambiguidade necessária que Lula acabou por garantir: escolheu o seu militar “de confiança” que agora se auto-imola para a mídia, garantindo a expansão do universo narrativo.
Segunda característica da bomba semiótica é a novidade: não no sentido jornalístico comum como breaking news, mas como evento ambígua que alimenta o sensacionalismo: um vídeo com rostos borrados dá a gestalt de um “vazamento” – melhor ainda seria uma imagem bem granulada, de preferência em preto e branco.
Terceira, a efemeridade: bombas semióticas são estocadas rápidas, como uma facada (desculpe a analogia nesse contexto). Logo será esquecida (e assim deve ser), para garantir o próximo capítulo.
Quarta, movimento: da CNN, o vídeo transforma-se numa pauta consonante. Essa característica é que fez a comunicação do PT manter-se sempre reativa, sempre correndo atrás do leite derramado.
Quinta e última característica, a imprevisibilidade: nesse caso não tanto pelo fato que bombas semióticas não dão avisos. Mas porque Lula não tem o controle da máquina do Estado – segundo e terceiro escalões ainda estão tomados por militares e bolsonaristas. Por isso a probabilidade da inteligência do governo “tomar bola nas costas” é elevada.
Pecado original? |
Dos sincronismos
Mas por que este humilde blogueiro está fazendo todas essas conjecturas sobre o 8/01 como uma bomba semiótica transmídia? Por causa dos sincronismos, a principal evidência da premeditada detonação de uma bomba semiótica.
Se não, vejamos:
(a) Essa expansão da narrativa ocorreu na semana em que o Governo Lula completa os simbólicos 100 dias;
(b) No momento em que generais depõem e coronéis são indiciados nas investigações sobre os atos anti-democráticos;
(c) A CNN “vaza” o vídeo na semana em que a embaixadora dos EUA, Elizabeth Bagley, visitou os estúdios da CNN Brasil. “Adorei ver uma das principais marcas americanas tão bem representadas no país”, comentou nas redes;
(d) Logo após o chilique da grande mídia após Lula arregaçar as mangas geopolíticas na China, empossando Dilma Rousseff no banco dos BRICS falando em substituição do dólar e relativizando a narrativa dos EUA/OTAN sobre a guerra na Ucrânia.
(e) E quando o texto do arcabouço fiscal chegava no Congresso e a pauta econômica, positiva para o Governo, ameaçava se tornar hegemônica.
É muito melhor para a oposição (e para os inside jobs militares) o circo midiático de uma CPI para expandir ainda mais, e de forma transmidiática em muitas mídias e plataformas, a narrativa polissêmica do 8/01.
Como se anunciava na abertura de cada show do saudoso trio de prog rock Emerson, Lake & Palmer: “Welcome back my friends to the show that never ends...”.