“Luther – O Cair da Noite” (2023, disponível na Netflix) é a continuação nas telonas da série para TV sobre o detetive brilhante, mas com uma questionável bússola moral. O resultado foi um pastiche de “Black Mirror”, o pior de James Bond (da era Craig) e a versão negra do detetive John McClane de “Duro de Matar”. Porém, o argumento central do filme é atual e urgente: usuários são capazes de compartilhar ou guardar seus maiores segredos, vícios, confissões e toda sorte de detalhes pessoais em plataformas que sabidamente não são públicas - negócio privados e vulneráveis às ingerências políticas e mercadológicas. Como explicar esse “impulso confessional” que torna as pessoas vulneráveis ao hackeamento e chantagem?
Jürgen Habermas no livro clássico “Mudança Estrutural da Esfera Pública” apontava para uma mudança importantíssima que vinha ocorrendo na difusão pública das informações e opiniões: a “refeudalização da esfera pública” – sob a mesma aura sobrenatural que os mestres clericais na Idade Média possuíam, garantindo o monopólio do conhecimento, os grupos de mídia atuais também garantem o monopólio, dessa vez da informação.
Se no passado era a ideologia religiosa que legitimava o monopólio, no século XX eram as estratégias de relações públicas e marketing que mascaravam os interesses particulares (comerciais e políticos) sob o discurso da “prestação se serviços” e do “interesse público”.
Mas isso foi no já distante século passado. Agora o marketing e relações públicas das Big Techs não escondem mais nada. Não precisam mais de discursos mercadológicos ou de RP (aliás, esses agora são voltados para enaltecer seus donos: Jobs, Zuckerberg, Musk etc.). Explicitamente, suas plataformas de mídias e redes sociais são negócios particulares que sequer esconde seus interesses – lembram quando Musk falou do golpe na Bolívia? “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”.
Mesmo assim, é inacreditável que os usuários compartilhem ou guardem seus maiores segredos, vícios, confissões e toda sorte de detalhes pessoais em plataformas que sabidamente não são públicas, pelos menos no sentido de serem regulamentadas garantindo a privacidade – são negócio privados, regidos pela lógica da mercadoria e do lucro.
Esse vício confessional já estava evidente para o Vale do Silício ainda no século XX, quando em uma pesquisa da Universidade de Stanford, Califórnia, foi descoberto esse impulso confessional de pessoas que responderam a uma pesquisa por questionários pelo correio: “vocês têm outros questionários que eu possa preencher”. Descobriu-se que, simplesmente, as pessoas adoram falar de si mesmas. Nem que seja para propósitos pouco transparentes. Isso foi no começo dos anos 1980.
Luther – O Cair da Noite (2023), a continuação do Netflix para a série de TV terminada em 2019, acompanha o protagonista detetive tentando descobrir quem está explorando esse “impulso confessional” nas redes e mídias sociais não para fins mercadológicos, mas para assassinatos em série – um bilionário tecnológico descobre segredos digitais mais sombrias das pessoas e as chantageia para que cumpra suas ordens ou se matem.
Na série, Luther era muito mais um vigilante do que um detetive: há anos desrespeitava as leis, presumivelmente com boas intenções – pegar criminosos. O fim justificava os meios. O que fazia de Luther um personagem sinistro, com uma criatividade lógica sombria que faria Sherlock Holmes protestar.
Passando para a versão longa-metragem, certamente com um público muito mais abrangente, Luther teria que ser, por assim dizer, repaginado. Embora o filme comece com partes do final da série de TV quando o detetive vai preso pelos seus métodos nada ortodoxos, Luther abandona sua aura sinistra original, para ser transformado numa mistura de alguém desagradável, desengonçado e praticamente uma versão negra para John McClane de Duro de Matar.
Portanto, o interesse desse Cinegnose por esse filme é muito pelo seu argumento central (chantagem, redes sociais e impulso confessional). Filmicamente, Luther – O Cair da Noite, é um pastiche de episódios de Black Mirror (principalmente o episódio “Shut Up and Dance”) com as piores partes dos filmes de James Bond (da era Craig) e de diversos atuais filmes noir escandinavos – o “nordic noir” ou “dark scandi”.
O Filme
O detetive chefe inspetor John Luther (Idris Elba) é um policial renegado que investiga os homicídios mais terríveis de Londres, que Elba, com seu longo sobretudo de lã e sua questionável bússola moral, tornou-se um clássico feito sob medida pela série televisiva da BBC por quase uma década – 2010-2019.
Brilhante e problemático, sempre à beira do abismo, é o tipo de detetive sempre pronto a contornar qualquer regra para pegar um assassino, cujo senso de justiça sempre o coloca em desacordo com os colegas. É o típico paradoxo dos vigilantes: quebram a lei para defendê-la – voltaremos a esse ponto adiante.
Visto no final da série de TV algemado por seu ex-superintendente de polícia, Martin Schenk (Dermot Crowley), depois de ter ido muito além de uma linha extralegal, vemos no início do filme Luther na prisão. Embora as circunstâncias da sua rpisão tenham sido alterados.
Na narrativa do filme, a investigação do bom detetive sobre o desaparecimento de um jovem faxineiro de escritórios, levou seu mais recente adversário - um bilionário da tecnologia chamado David Robey (Andy Serkis) - a vazar um dossiê para a mídia que incrimina Luther em uma extensa lista de ofensas que violam as regras: invasão de propriedades, intimidação de testemunhas, adulteração de evidências, suborno etc.
Para quem assistiu à série, naturalmente Luther é culpado de todas as acusações. Mas ele tem uma explicação perfeitamente razoável para tudo, se ao menos os tribunais o ouvissem...
Embora atrás das grades, Luther ainda acompanha as investigações, dessa vez comandadas pela sua substituta detetive Odette (Cynthia Erivo). Enquanto o vilão David Robey aterroriza Londres por meio de uma série de assassinatos elaborados - como o de oito estranhos, sequestrados, enforcados e dispostos em uma mansão que explode em chamas, quando os pais das vítimas chegam - mas ainda arranja tempo para insultar Luther por seu fracasso em evitar a carnificina.
Em resposta, Luther foge durante um transporte de prisioneiros, depois que uma sequência de tumulto em uma cela encharcada de querosene torna sua transferência para outra instalação inevitável. A cena de Luther protegendo-se com um colchão em chamas enquanto ele briga em um corredor de detentos sedentos pelo seu sangue marca o início de uma escalada de cenas de perseguições, tiros e explosões que acabarão em um bunker tecnológico na Noruega.
Já dissemos que o modus operandi do vilão é a chantagem: em seu bunker tecnológico uma equipe rastreia mídias e redes sociais, utilizando as câmeras embutidas em celulares e laptops, reunindo as informações mais sombrias e comprometedoras dos usuários. Para depois chantageá-los com o medo da vergonha com a ameaça de Robey compartilhar prints de fotos e telas com amigos e familiares das vítimas.
A certa altura do filme, uma linha de diálogo se pergunta como é possível as pessoas confessarem seus maiores segredos ou exporem seus ilícitos em plataformas sabidamente construídas por interesses privados e deixadas propositalmente vulneráveis para hackeamento. No filme, o hackeamento operado por um engenhoso assassino em série. No mundo real, o hackeamento mercadológico e de seriais killers políticos.
Diferente das mudanças da esfera pública vista por Habermas no século XX, nesse século vemos um paradoxo: explicitamente os interesses privados da Big Tech são explicitados, e não escondidos como no passado. Porém, as estratégias de RP deslocam para as figuras “geniais”, “visionárias” ou “beneméritas” dos seus fundadores, como Jobs ou Zuckerberg. Por isso, as interfaces tecnológicas de convergência parecem lúdicas e despolitizadas.
Muito desse impulso confessional é descolado do campo religioso (de natureza católica e protestante) para mídias e redes sociais. Todo o perigo de um campo tecnológico desregulamentado pelo interesse público passa despercebidos pelos usuários.
Ao mesmo tempo, Luther – O Cair da Noite, aborda o paradoxo do vigilante: quebrar a lei para defendê-la. Esse é o perigoso campo dos heróis amorais que se consideram além do Bem e do Mal: acima deles, está apenas a Justiça.
Luther quer defender a Justiça, indo além do Bem e do Mal. Sabemos que essa narrativa é perigosa, como abordado em postagem anterior (clique aqui) – legitima todos os superpoderes que, sem o controle dos poderes do Estado, tornam-se totalitários ao mobilizar o ressentimento e senso de vingança das massas.
Desde a franquia Desejo de Matar, do arquiteto vigilante feito por Charles Bronson nos anos 1970-80, o cinema e audiovisual adoram esses personagens. Continuando com os super-heróis da Marvel e DC Comics nas telonas.
Se observarmos bem, todos os delitos que levaram o detetive Luther para a prisão, lembram, por exemplo, os métodos nada ortodoxos da Operação Lava Jato que buscava a Justiça para além das regras do Estado de Direito.
Não é à toa que o ator protagonista Idris Elba tenha sido convidado para ser o novo James Bond. Ambos os personagens se pretendem com licença para matar, amoralmente indo muito além do Bem e do Mal.
Ficha Técnica |
Título: Luther – O Cair da Noite |
Direção: Jamie Payne |
Roteiro: Neil Cross |
Elenco: Idris Elba, Cynthia Erivo, Andy Serkis, Dermot Crowley |
Produção: BBC Films, BBC Studios< Chermin Entertainment |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2023 |
País: Reino Unido, EUA |