quinta-feira, abril 13, 2023

Filme 'Cidadão Kane', marcianos e pânico


“Cidadão Kane” (Citizen Kane, 1941) foi um milagre no cinema: um diretor estreante; um escritor cínico e alcoólatra; um diretor de fotografia inovador e um grupo de atores de teatro e rádio de Nova York receberam carta branca e controle total, e fizeram uma obra-prima. Da transmissão de rádio sobre uma invasão marciana que levou os EUA ao pânico em 1938, a um filme sobre um magnata da mídia, Orson Welles estimulou a reflexão sobre duas formas de poder: o da influência midiática e da propriedade das mídias. Na primeira, a descoberta de que o século XX estava preparado para o pânico; e na segunda, uma exploração freudiana do desejo pelo poder – basicamente poderia ser a busca para recuperar algo perdido na infância. O Poder como fantasia adulta regressiva a uma forma neurótica e compulsiva.

Orson Welles era ególatra, artista extremamente dotado, homem de poderosa vontade e ambicioso até os confins do infinito. Tomou para si o sucesso da transmissão radiofônica da “Guerra dos Mundos”, do Mercury Theather da Rádio CBS, que em 1938 levou ao pânico os norte-americanos. Acreditaram que os marcianos estavam invadindo os EUA e que a transmissão estava trazendo ao vivo todos os detalhes da destruição e mortes das aranhas mecânicas marcianas que avançavam para Nova York.

Welles reclamou para si todos os méritos, não obstante o fato de que todo o roteiro do programa radiofônico ter sido escrito em tempo recorde por Howard Koch (que escreveria o filme clássico Casablanca pouco depois), montado por John Houseman e Paul Stewart, e a engenharia de som a cargo de John Dietz e Bernard Hermann.

Welles se apressou em dizer para todos que a ideia teria sido dele e que o roteiro de Koch só teria sido útil na segunda parte da transmissão.

Mas a principal feito de Orson Welles foi descobrir que a sociedade do século XX estava preparada para o pânico – foi um feito e tanto ele descobrir que os ouvintes estavam prontos para acreditar em qualquer coisa.

Ao lado do impacto acadêmico (a partir do episódio “Guerra dos Mundos” o rádio passou a ocupar o centro das pesquisas sobre o meio nos EUA – as pesquisas “Mass Communication Research” de Lasswell, Lazarsfeld e Merton em torno dos estudos qualitativos de audiência), depois de prestar depoimentos à FCC (Comissão Federal de Comunicações) sobre a responsabilidade dos estragos materiais provocados pelo pânico, o infant terrible ganhou carta branca dos executivos de Hollywood para filmar o que quisesse.



Mas qual tema estaria à altura do homem que conseguiu aterrorizar quase uma nação inteira? Pensou no romance de Joseph Conrad “Heart of Darkness” – livro que depois inspiraria Coppola a filmar Apocalypse Now(1979). Mas não deu em nada. Assim como outros projetos. 

Até que apareceu a grande ideia. Um grande homem que abriu a caixa de Pandora da máquina de manipulação midiática somente poderia medir forças com outro homem do mesmo nível: o magnata que construiu uma cadeia de jornais que cobriu todo o país: William Randolph Hearst, o Rupert Murdoch, o Roberto Marinho, o Tedd Turner ou Bill Gates da virada do século XIX-XX.

A escolha não poderia ser mais brilhante: assim como Welles, Hearst era capaz de criar realidades – o homem que inventou a guerra hispano-americana para vender mais jornais com a famosa frase aos repórteres em Cuba que, ao chegarem, não encontraram nenhum conflito militar: “Por favor, permaneçam e forneçam as imagens, que eu vou fornecer a guerra”. E assim fez: pressionado pela mídia, os EUA declararam guerra contra a Espanha.

Como diretor estreante, aos 25 anos, Welles se cercou dos melhores: Herman Manlona direção de fotografia, Herman Mankewicz no roteiro e Bernard Hermann na direção musical.

E o enfoque de Welles foi inovador: cansado de ver e ler histórias de sucesso, por que não contar o maior fracasso de manipulação midiática da história? Como um magnata das comunicações com poder e influência foi derrotado pelas urnas (não conseguiu ser prefeito de Nova York e governador), pela Grande Depressão dos anos 1930 e que terminou recluso em um gigantesco castelo, escrevendo roteiros de filmes para sua amante Marion Davis? Que não tinha o menor talento.



Hearst virou Charles Foster Kane na obra-prima de Welles, Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Com a previsível ira do magnata, já recluso: acusou o diretor de ser comunista, pecado mortal em meio à Segunda Guerra Mundial.

Várias interpretações já foram feitas sobre o filme. Todas elas agrupadas em dois eixos principais: a solidão do poder no Capitalismo e a perda da ética no jornalismo nos monopólios da comunicação.

Está claro que a palavra “Rosebud”, último balbucio de Charles Kane na sua morte solitária no palácio Xanadu, é o enigma que um repórter investigativo Jerry Thompson (William Alland) tenta responder, tentando juntar as peças de um quebra-cabeças.  E não é à toa que a sua amante, a cantora frustrada Susan Alexander (Dorothy Comingore), passa o tempo no Xanadu montando um quebra-cabeças: ela é a principal pista para o significado de “Rosebud”.

Kane foi um homem que passou a vida inteira tentando recuperar algo que perdeu – a esperança e a segurança representada pelo trenó da sua infância (“rosebud”), até ser separado da sua família e enviado para um internato, no Leste do país. Kane tentou transformar a sua amante, uma aspirante a cantora de ópera sem o menor talento, no seu “rosebud”.

Susan foi a principal vítima da busca delirante do poderoso Kane. Ou seja, dessa maneira a obra-prima Cidadão Kane é uma reflexão freudiana sobre o desejo pelo poder: o que será que foi perdido que um rei ou um burguês passa a vida inteira tentando recuperar, usando a única gramática que conhecem: a dominação, a transformar em objeto um subalterno ou uma sociedade inteira. 

O Filme

Cidadão Kane é um milagre do cinema, que em 1941 um diretor estreante; um escritor cínico e alcoólatra; um diretor de fotografia inovador e um grupo de atores de teatro e rádio de Nova York receberam as chaves de um estúdio e controle total, e fizeram uma obra-prima. Cidadão Kane é mais do que um ótimo filme; é uma reunião de todas as lições da era emergente do som, assim como O Nascimento de uma Nação reuniu tudo o que se aprendeu no auge da era do cinema mudo, e 2001, apontando para novos caminhos narrativos. 



Por exemplo, a intensa utilização da fotografia em profundidade de campo - tomada em que todos os planos (seja os da frente como os de trás) estão no mesmo foco de modo que a composição e o movimento de câmera determinam para onde o espectador deve olhar primeiro.

A estrutura de Cidadão Kane é circular, adicionando mais profundidade cada vez que passa pela vida. O filme abre com imagens de obituários de noticiários que nos informam sobre a vida e os tempos de Charles Foster Kane; esta filmagem, com a típica narrativa radiofônica empostada, é o aceno metalinguístico de Welles de que o noticiário “March of Time” foi produzido por outro magnata da mídia, Henry Luce. Eles fornecem um mapa da trajetória de Kane e nos manterão orientados enquanto o roteiro avança no tempo, reunindo as memórias daqueles que o conheceram.

Curioso sobre a última palavra de Kane, “rosebud”, o editor do noticiário designa Thompson, um repórter investigativo, para descobrir o que isso significa. Thompson é interpreta um personagem ingrato para o ator William Alland: ele desencadeia cada flashback, mas seu rosto nunca é visto. Ele questiona a amante alcoólatra de Kane, Susan, seu velho amigo doente, seu sócio rico e as outras testemunhas, enquanto o filme faz um loop no tempo. 

O filme é repleto de momentos icônicos: as torres de Xanadu; o candidato Kane discursando em um comício político; a porta de sua amante se dissolvendo em uma foto de primeira página em um jornal rival; a câmera descendo por uma claraboia em direção a uma patética e deprimida Susan em uma boate; os muitos Kanes refletidos em espelhos paralelos; Kane na infância brincando na neve ao fundo enquanto seus pais determinam seu futuro no primeiro plano; a grande tomada quando a câmera sobe direto da estreia de Susan na ópera para dois ajudantes de palco se entreolhando sentindo vergonha alheia; e a tomada subsequente de Kane, com o rosto escondido nas sombras, aplaudindo desafiadoramente no corredor enquanto o público está em silêncio.



Welles, Machartismo e o Poder

Depois de Cidadão Kane, Welles nada mais fez de relevante. Principalmente, porque passou a ser boicotado pelos estúdios. A vingança de Hearst, que sempre foi contra a política do Works Progress Administration (WPA), política do governo Roosevelt de incentivo a produções culturais mais progressistas. O macarthismo venceria e Welles sentiu o impacto na sua carreira.

Welles viveu o ápice de uma época de liberdade criativa e do fomento governamental a experimentações. 

Sem conseguir impedir a estreia do filme, o Hearst dedicou inúmeras páginas de seus jornais para estampar no diretor prodígio a pecha de “comunista” e utilizou toda sua influência junto aos estúdios de cinema para boicotar sua carreira.



De marcianos invadindo os EUA à provocação contra o magnata da mídia, Welles aprofundou as duas formas de poder: primeiro, comprovou empiricamente do que a máquina da comunicação era capaz e o quanto o público já estava susceptível ao poder midiático que começava a envolver toda a sociedade; segundo, a motivação mais profunda do poder: por que não uma fantasia infantil traduzida pela gramática adulta?

Queimar a fortuna em jornais que nem sempre davam lucro, o fracasso político, a amante que virou uma frustrada aspirante a estrela de ópera e os últimos dias recluso num Castelo no qual colecionava relíquias trazidas do mundo inteiro, tudo isso não passava de objetos que vida adulta poderia fornecer para tentar se reencontrar como o prazer infantil do “rosebud” perdido quando deixou sua família.

Isso lembra a interpretação que os cientistas políticos Arthur Kroker e Michael Weinstein fazem da elite da Big Tech do Vale do Silício: 

A masculinidade burguesa sempre foi pré-adolescente: pensamentos de pequenos garotos achando que poderão controlar o mundo, mas agora o mundo é ciberespaço. O sonho de ser deus do ciberespaço – ideologia pública como fantasia de garotos pré-adolescentes: uma regressão do sexo para uma autística forma de poder” (KROKER, Arthur & WEINSTEIN, Michael. Data Trash: the theory of the virtual class. N. York, St. Martin Press, 1994, p. 11.)

 

 

Ficha Técnica

 

Título: Cidadão Kane

 

Direção: Orson Welles

Roteiro: Herman Mankiewicz

Elenco:  Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore

Produção: RKO Radio Pictures, Mercury Productions

Distribuição: HBO

Ano: 1941

País: EUA

 

  

 

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