sexta-feira, janeiro 20, 2023

Vampiros e gnosticismo vão à ficção científica no subestimado '2019 - O Ano da Extinção'


A Era “Crepúsculo” acabou dominando o mercado dos vampiros que caminham durante o dia na primeira década desse século. O que deixou a produção australiana "2019 - O Ano da Extinção" (Daybreakers”, 2009) em busca de um público. Acabando esquecida com o passar dos anos. É um filme extremamente subestimado no qual os vampiros passam para o campo sci-fi – um futuro em que eles estão no controle do mundo. Na maioria das narrativas vampiros são seres que se escondem nas trevas e têm vidas secretas. Mas nesse filme tudo se inverte: são os humanos que escondem sua humanidade numa sociedade em que foram transformados em rebanho para colheita de sangue, algo parecido com “Matrix”. Vampiros, assim como zumbis, são fascinantes porque lembram para nós a própria condição gnóstica humana: nem a morte é suficiente para escaparmos desse mundo. Mas em “Daybreakers’ eles passam para o outro lado: são entidades inteligentes e demiúrgicas que controlam os humanos.

Em postagem anterior falamos sobre um filme subestimado e esquecido: Homem Bicentenário (1999). Pois este humilde blogueiro acabou lembrando de outro: 2019 – O Ano da Extinção (Daybreakers, 2009). Um filme sobre vampiros na ficção científica. Talvez tenha sido ofuscado por outro filme de vampiros de sucesso arrasador: a franquia Crepúsculo. Mas acabou sendo mesmo subestimado.

Vampiros invadindo o campo da ficção científica não são inéditos. O romance de 1976 de Colin Wilson, The Space Vampires, tornou-se a base para um sucesso de ficção científica de 1985 chamado Lifeforce. Tanto a série clássica de TV Star Trek de 1966 quanto o remake de Buck Rogers de 1979 lidaram com vampiros sci-fi em diferentes formas. 

Mas foi só em Daybreakers que a ficção científica mainstream realmente levou os vampiros para o futuro.

Alguns críticos comparam Daybreakers a filmes do Underworld . Ambos têm paletas de cores cinza-azuladas semelhantes e querem emular com o clima básico de Matrix. Mas, enquanto Underworld considera a existência de vampiros habilidosos nos dias de hoje como um dado (a exemplo de Highlander), Daybreakersdesenvolve um argumento de ficção científica sobre o porquê dos vampiros não só existirem mas, principalmente, dominarem a sociedade no futuro. Em vez de “as máquinas” em Matrix cultivando humanos e extraindo suas energias que mantém rodando o mundo virtual, em DayBreakers temos vampiros cultivando humanos para extrair o sangue.

O fato de que os vampiros existem e estão no controle do mundo é um dos elementos mais atraentes de Daybreakers. Na maioria das narrativas sobre vampiros, eles se escondem nas sombras e vivem vidas secretas. Aqui, tudo está invertido, e os poucos humanos que escaparam tentam esconder sua humanidade e criam uma resistência organizada. 

É tentador dizer que isso tornaria Daybreakers mais próximo de um filme de apocalipse zumbi, mas isso também não está correto. Os vampiros aqui são obviamente inteligentes e controladores de uma forma não prevista na mitologia zumbi clássica.

Do ponto de vista da análise dos filmes gnósticos, essa inversão de Daybreakers coloca os zumbis do outro lado do balcão. 

Vampiros, assim como zumbis, são fascinantes porque parecem lembrar para nós a própria condição gnóstica humana.

Vampiros e zumbis vivem a condição de “estrangeiros” nesse mundo: nem vivos e nem mortos, lembranças familiares nos fazem vagar por esse mundo, mas, ao mesmo tempo, a dor e a fome tornam esse mundo hostil, como se não fizéssemos parte dele. Eles estão mortos, porém condenados a serem prisioneiros cósmicos como mortos-vivos.



A revolta deles vai além da crítica social e política. Há uma revolta metafísica e gnóstica: nem a vida e nem a morte. O zumbi nos faz lembrar que a morte não é libertação: em um sentido gnóstico apenas nos faz retornar a esse mundo por meio da reencarnação, reproduzindo um ciclo vicioso infernal – a Roda do Samsara. 

Vampiros e zumbis são como metáforas dessa condição humana prisioneira. Mas em Daybreakers os vampiros mudam de lado: tornam-se os demiurgos do mundo que aprisiona humanos.

Porém, para além da crítica metafísica, Daybreakers mantém a crítica social que essas criaturas das trevas representam: a luta de classes e raças.

O Filme

Dez anos no futuro, uma epidemia global infectou a maioria da população com vampirismo. Os poucos humanos restantes estão fugindo, caçados por soldados do Exército de Vampiros, que até não os odeia, mas estão com fome. Há uma crise nascente de esgotamento do suprimento de alimentos para os vampiros no planeta.

Uma gigante corporativa chamada Bromsley Marks Corp., comanda por Charles Bromley (Sam Neil), faz de humanos rebanho para colheita de sangue – no melhor estilo dos cockpits que mantém humanos prisioneiros em Matrix. Porém, os humanos não são uma fonte renovável, e estão morrendo anêmicos.

Por isso, a corporação está gastando uma fortuna para desenvolver um substituto sintético do sangue, porém sem perder o controle nos negócios. Como tantas grandes empresas do agronegócio, ela quer nos livrar daquele alimento orgânico saudável e nos vender um substituto, sem dúvida adoçado com xarope de milho. O hematologista-chefe da BM é Edward (Ethan Hawke), que, como alguns dos cientistas atômicos de Los Alamos, se sente culpado pelo seu trabalho em transformar humanos em rebanho. 



Secretamente ele não está buscando apenas uma alternativa sintética. Ele procura a própria cura para o vampirismo.

Daybreaker é fascinante por mostrar as soluções criadas pelos vampiros demiúrgicos para viverem e gerenciarem o mundo à luz do dia: As passarelas subterrâneas substituem as calçadas, o toque de recolher começa antes do amanhecer e assim por diante, os carros tornam-se autônomos à luz do dia para os vidros serem escurecidos – o motorista olha o mundo ao redor por meio de câmeras, soldados andam com armaduras especiais para não serem expostos à luz solar e assim por diante.

Na medida em que a crise alimentar aumenta, o mundo dos vampiros mostra sua faceta classista: os mais pobres são condenados a uma alimentação com porcentagem reduzida de sangue humano legítimo.

O problema com a anemia dos vampiros é que eles começam a regredir à monstruosidade no estilo Nosferatus: orelhas crescem, asas de morcego substituem os braços, tornando-se criaturas degeneradas e violentas que atacam os vampiros “civilizados”. 



São os sem-teto desse mundo dos vampiros, condenados a se esconderem no subterrâneo das grandes metrópoles.

Edward é um hematologista vampiro com ética e acredita que é errado explorar humanos em estado de coma por seu sangue. 

Edward acaba se conectando com um grupo de resistência subterrânea humano, liderado por Audrey (Claudia Karvan) que o apresenta a Lionel, codinome Elvis (Willem Dafoe), que tem um antídoto barato e fácil para o vampirismo.

Porém, está sendo caçado pelo irmão militar de Edward, Frankie (Michael Dorman). Eventualmente, o dilema familiar vai se acirrar: será que entregará o próprio irmão para as forças policiais?

Embora facilmente comparado com Matrix, na verdade o filme vai além pela sua potencial crítica social: Daybreakers tem mais em comum com a franquia Planeta dos Macacos do que com outros filmes de vampiros – como o mundo evoluiu de uma forma invertida após uma catástrofe (ao invés de uma guerra nuclear, tempos uma pandemia), porém mantendo o “design” das sociedades humanas: exploração do homem pelo homem (ou de vampiros sobre vampiros), desigualdade, luta de classes, preconceito, totalitarismo etc.

Isso não quer dizer que Daybreakers seja uma obra-prima impecável. Tem sua parcela de problemas e certamente contém sequências sem sentido que fazem o espectador coçar a cabeça. 

No entanto, o azar dessa produção australiana foi o de ter sido lançado em plena era de Crepúsculo. Edward Cullen era dono do mercado dos vampiros que caminhavam durante o dia, o que deixou Daybreakers em busca de um público. 

Talvez seja a hora de retirar esse filme das sombras, assim como os vampiros.


 

Ficha Técnica

 

Título: 2019 – O Anos da Extinção

 

Diretor: Michael Spierig, Peter Spierig

Roteiro: Michael Spierig, Peter Spierig

Elenco:  Ethan Hawke, Sam Neil, Willem Defoe, Claudia Karvan, Michael Dorman

Produção: Lionsgate, Australian Film Finance Corporation (AFFC)

Distribuição: Lionsgate

Ano: 2009

País: Austrália

 

 

Postagens Relacionadas

 

Sintoma e verdade nos zumbis

 

 

Em "Amantes Eternos" a melancolia dos vampiros denuncia a decadência dos vivos

 

 

 

Série 'Post Mortem: Ninguém Morre em Skarnes': o mito do vampiro muito além do Mal

 

 

O Mito do Vampiro Chega à Maturidade no filme "Deixe Ela Entrar"

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review