quinta-feira, janeiro 05, 2023

O olhar hollywoodiano para a luta de classes no filme 'O Menu'


A cinematografia recente não está deixando os ultra-ricos em paz. Dessa vez é o filme “O Menu” (The Menu, 2022), uma sátira brutal sobre a divisão de classes que acompanha integrantes daqueles 1% mais ricos do planeta que pagam muito dinheiro para vivenciarem uma experiência única: um jantar exclusivo em uma ilha no Noroeste do Pacífico, cujo menu foi elaborado por um chef celebridade que trata seus cozinheiros como um sargento comanda soldados rasos. “O Menu” é uma ópera em humor negro sobre humilhação, auto-aversão e vingança. Com o tempo, os pratos feitos sob medida começam a assumir um tom intrusivo, sinistro e violento contra os próprios ricos clientes. Porém, é a visão hollywoodiana da luta de classes, cuja indignação não se transforma em uma reação política coletiva, mas em ódio e ressentimento individual.

Definitivamente, desde o premiado filme com o Oscar, Parasita, os obscenamente ricos estão passando por momentos muito difíceis no cinema. Mais recentemente, vimos um monte deles em um iate de luxo vomitando uns nos outros em Triangle of Sadness (2022) e na série Glass Onion: A Knives of Mystery (2022), multimilionários presos em uma ilha grega particular tentando descobrir quem entre eles é um assassino – com toda carga de ironia sobre como os muito ricos podem ser tristemente ridículos.

 Sem sutilezas, numa sátira brutal à divisão de classes, em O Menu (The Menu, 2022) acompanhamos integrantes daquela casta dos 1% mais ricos que abocanham a maior parte da riqueza do planeta ostentando suas fortunas e poder num jantar exclusivo em uma ilha privada em algum lugar no noroeste do Pacífico. Um jantar composto por iguarias requintadas que compõem um cardápio conceitual criado por um chef estrela que trata sua “brigada” (os seus “sus-chefs” e aprendizes da cozinha) como um sargento trata seus soldados rasos – uma opera de humilhação, auto-aversão e vingança.

Os privilegiados clientes são compostos por bilionários de Big Techs, críticos gastronômicos esnobes, celebridades decadentes da indústria hollywoodiana e ricos que se autoproclamam gourmets. Ao longo do filme, descobriremos que todos não estão ali por acaso: há algo que os une ao chefe estrela Julian Slowick (Raph Fiennes).

Esse restaurante imensamente caro pode até parecer uma sátira exagerada a um tipo muito específico de elitismo: o mundo da comida gourmet e o esquema promocional que torna chefs em celebridades que acabam virando bobos da corte dos novos ricos – a superfície desse fenômeno acompanhamos na recente Copa do Mundo na qual vimos os bifes folheados a ouro do chef Salt Bae oferecidos para jogadores novos ricos deslumbrados.

Riqueza, desperdício, excesso, ostentação e luta de classes. Esses são os temas centrais de O Menu. Além de ecoar a controvérsia daquele pequeno flagrante de ostentação gastronômica no Catar, O Menu também nos recorda de uma clássica discussão na Antropologia: em que momento na História a festa e o desperdício deixaram de ter um papel fundamental na sociedade como ritual e coesão social (o “potlatch”) para se tornar luxo e ostentação dentro de uma estratégia de apropriação da riqueza por uma classe dominante. 

Em outras palavras: em que momento o desperdício e a queima de riquezas deixaram de ter um papel de coesão social na queima do excedente econômico em festas e cerimônias (para evitar que fosse apropriado por um grupo) para se transformar esbanjamento e ostentação como forma de exibição de prestígio e poder.

A dádiva era o elemento principal do potlatch nas sociedades ditas arcaicas. Contratos eram firmados entre diferentes clãs e tribos por meio da troca coletiva de presentes, configurando um sistema de dádivas estabelecido entre coletividades, e não entre indivíduos. Para Marcel Mauss no seu estudo clássico “Ensaio sobre a Dádiva” (1925), amabilidades, banquetes, ritos, serviços, mulheres, crianças, festas, danças”, etc. circulavam pela sociedade como presentes cuja finalidade última era a comunhão entre as partes, sendo o mercado apenas um de seus momentos. Extrapolava a esfera puramente econômica, apresentando-se como a materialização da própria vida social – as coisas acabavam retornando para seu antigo dono que, ao doá-lo, também se doava.

O Menu é a sátira desse momento em que a dádiva, o presente, a festa e o desperdício abandonaram o papel de coesão social para tornarem-se ostentação e confirmação da posição de uma classe dominante numa sociedade marcada pelo ressentimento diante da desigualdade.



Como exclama a impressionada Margot (Anya Taylor-Joy, a intrusa na festa dos bilionários), ao saber do preço de cada um dos pratos que serão servidos no jantar exclusivo: “O que? Estamos comendo Rolex?”

Porém, estamos numa sátira hollywoodiana para a luta de classes, na qual os limites estão muito bem definidos. Como veremos, sem deixar que os protagonistas ultrapassem as fronteiras entre o individual e o coletivo.

O Filme

 Uma mistura eclética de pessoas embarca em uma balsa para uma viagem rápida ao seu destino: uma ilha exclusiva na qual mora o famoso chef Slowick com o seu restaurante e um conjunto de sus-chefs e aspirantes que o idolatram cegamente. Os jantares refinados e com vários pratos do chef Slowik são lendários a preços exorbitantes.

Margot é a acompanhante de um ricaço chamado Tyler (Nicholas Hoult), enquanto aguardam a chegada do barco. Ele se considera um conhecedor de culinária e sonha com esta noite há muito tempo; ela é uma cínica que está junto para o passeio. Eles formam um lindo casal, mas há algo de podre por trás dessa aparência.




Também estão a bordo um ator e diretor decadente (John Leguizamo) e sua assistente (Aimee Carrero); três detestáveis bilionários do ramo tecnológico (Rob Yang, Arturo Castro e Mark St. Cyr); um homem mais velho e rico e sua esposa (Reed Birney e Judith Light); e uma prestigiosa crítica gastronômica (Janet McTeer) com seu obsequioso editor (Paul Adelstein). 

 Todos estão ali para prestar homenagem à estrela da noite: o homem cujas criações artísticas e inspiradas os trouxeram até aquela ilha: o Chef Slowik, com uma combinação desarmante de calma zen e controle obsessivo. Ele começa cada prato com um estrondoso bater de palmas, que o design de áudio habilmente aumenta para nos deixar nervosos, ao qual seus leais cozinheiros atrás dele respondem em uníssono “Sim, Chef!” como se ele fosse o sargento instrutor. 

E as descrições cada vez mais divertidas dos pratos na tela fornecem comentários irônicos sobre como a noite está evoluindo cada vez mais para o caos.

Os convidados são recebidos por uma mestra de cerimônias (Hong Chau), braço direito do Chef Slowik. Ela rápida e eficientemente fornece aos convidados um tour de como a ilha funciona antes de passear entre suas mesas, atendendo a todas as suas necessidades e julgando-os silenciosamente. Ela diz coisas como: “Sinta-se à vontade para observar nossos cozinheiros enquanto eles inovam”, com total autoridade. Mas seu comportamento aos poucos vai acrescentando um ar cada vez mais sinistro ao restaurante.




O tratamento personalizado que cada hóspede recebe a princípio parece atencioso e com o tipo de mimo que essas pessoas esperariam quando pagam um preço tão alto. Mas com o tempo, os pratos feitos sob medida assumem um tom intrusivo, sinistro e violento.

Como, por exemplo, quando são fornecidas para a mesa dos ricaços das Big Tech tortillas nas quais estão impressos a laser extratos das suas contas ilegais no paraíso fiscal das Ilhas Cayman.

O serviço permanece rígido e preciso, mesmo quando o clima fica confuso. Como em outros filmes recentes que denunciam os ultra-ricos, começamos a desconfiar sobre o que esperam aqueles clientes: algum tipo de espetáculo violento de vingança e luta de classes.

Fiennes interpreta brilhantemente um chef tão determinado a transformar comida em arte que se esqueceu de seu propósito; seu desgosto pelo ato de comer há muito extinguiu qualquer alegria em cozinhar. Aos poucos vamos tomando conta das suas origens humildes de uma família caipira do Meio Oeste dos EUA, cujo ponto alto gastronômico era assar hambúrgueres na churrasqueira do quintal.



Embarcou na carreira gastronômica acreditando numa atividade que uniria arte, ciência e imaginação. Mas acabou descobrindo que em toda carreira nada mais fez do que jogar pérola aos porcos: novos ricos incapazes de lembrar o nome do prato que comeu no dia anterior e que querem se associar a Slowik muito mais como grife de prestígio e ostentação novoriquista do que para usufruir da sua arte e filosofia.

Por isso, Slowick quer transformar aquele menu numa noite de terror, tanto para os milionários quanto para a própria jornalista e crítica gastronômica, que o promoveu ao estrelato. O seu Menu montado para aquela noite é um insulto embutido a cada prato, numa escalada que irá até o terror e o caos.

Margot é a intrusa com um olhar de estranheza para aquele mundinho exclusivo. O mesmo olhar das pessoas ordinárias que estão assistindo ao filme. Ela representará a astúcia da classe trabalhadora, a única disposta a enfrentar um roteiro gastronômico que promete a morte como sobremesa.

Porém, assim como Parasita, Coringa ou Round 6, o problema de O Menu é transformar essa indignação em ressentimento e puro desejo de vingança. Pode ser até cinematograficamente interessante e divertido – afinal, vinganças são sempre icônicas e rendem boas sequências. 

Mas é essa justamente esse a visão clichê de Hollywood para a solução da luta de classes: a revolta organizada e coletiva é substituída pelo ressentimento individual.  Porque, no final, mágoas e ressentimentos geradas pelas desigualdades sociais acabam se transformando em matéria-prima para o populismo de extrema-direita que pariu a Era Trump e a escalada da “alt-right” internacional.

No final, a moral promovida pelo filme O Menu é essa: abandonemos os chefs exibicionistas com seus pratos esnobes e voltemos ao bom e velho hambúrguer americano!


 

    

Ficha Técnica

 

Título: O Menu

 

Diretor: Mark Mylod

Roteiro: Seth Reiss, Will Tracy

Elenco:  Ralph Fiennes, Anya Taylor-Joy, Nicholas Hout, Hong Chau

Produção: Searchlight Pictures, Hyperobject Industries

Distribuição: Searchlignt Pictures

Ano: 2022

País: EUA

 

 

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