terça-feira, janeiro 03, 2023

A morte e o pavor existencial no filme 'Ruído Branco'




Um verdadeiro épico do pavor existencial que sintetiza todas as questões filosóficas de Albert Camus em torno da morte e suicídio em uma simples expressão: “Shits Happens!”. Esse é o filme “Ruído Branco” (White Noise, 2022), intrigante adaptação do cineasta Noah DeLillo ao romance pós-moderno homônimo de 1985. Uma comédia híbrida com acidente ferroviário que produz uma nuvem tóxica que gera uma evacuação em massa de famílias de subúrbios, freiras cínicas e um supermercado que, com suas cores e assepsia, vira um revigorante espiritual em um mundo absurdo e aleatório. Também a angústia pela morte que vira o leitmotiv da crise conjugal na família de um professor que é autoridade mundial em “Hitlerologia”. “Ruído Branco” mostra pessoas tentando esquecer de que todos nós vivemos no limite tênue entre a descoberta do absurdo e a esperança num sentido ou propósito que faça sentir que a vida vale a pena.

O pensador e prêmio Nobel de literatura, o francês Albert Camus, dizia que o único problema filosoficamente sério seria o suicídio. Para ele, julgar se a vida merece ser vivida antecederia qualquer discussão sobre o mundo das Ideias, a tridimensionadidade do mundo ou como o sujeito pensante seria capaz de inquirir a res extensa.

A questão de todos nós estarmos condenados à morte, de antemão, desde o momento da concepção no ventre materno, coloca para nós duas questões prementes: a primeira, existencial: qual o sentido de empreendermos projetos, sonhos ou termos esperanças ou aspirações se a morte é uma realidade inescapável? E segundo, a imprevisibilidade da morte: não sabemos nem quando e nem como ela virá. Portanto, qual o sentido de simplesmente desejar qualquer coisa sem saber que esse desejo poderá ser o último?

As respostas poderiam ser o idealismo e a posteridade. Mas também essas respostas estão submetidas à finitude. Por trás da perplexidade de Camus estaria a percepção do absurdo na realidade: como então seriam possíveis a vida social, a solidariedade e a colaboração se nada parece ter algum sentido? 

Para Camus, e para o próprio Existencialismo, restaria o mal-estar da angústia diante da assustadora suspeita de que o absurdo rege a nossa existência nesse planeta. 

A adaptação de Noah Baumbach do romance de Don DeLillo de 1985, “White Noise”, através de uma comédia híbrida num mix de uma série de gêneros, faz uma alusão a essa fatal questão do existencialismo de Camus de uma forma bem direta que poderia ser sintetizada numa simples expressão: “shits happens!”.

Ruído Branco (White Noise, 2022) é ao mesmo tempo um drama conjugal e uma alegoria da vida contemporânea, cujos corredores assépticos e coloridos de hipermercados e shopping centers parecem querem esconder alguma coisa com toda luz e cenografia.  

  Duas sequências são as chaves de compreensão nessa vertiginosa mistura de tropos narrativos de mais de duas horas – Super 8 de Spielberg, terror suburbano, filmes catástrofes, humor negro, sci-fi tc.

Logo na primeira sequência assistimos a um professor universitário chamado Murray Siskind (Don Cheadle) em uma sala de aula discorrendo sobre a paixão do cinema americano pelos acidentes carros, trens etc. Enquanto assistimos a uma sequência estonteante de batidas, explosões, carros virando bolas de fogo trens descarrilhando, Siskind questiona o ludismo, alegria e frenesi dessas cenas, como se elas quisessem nos dar prazer voyeurista. “Cadê os mortos, os corpos despedaçados, o sangue?”, questiona.  

E, quase no final, o casal de protagonistas com um sério problemas conjugais que será o leitmotiv do filme (Jack Gladney, feito por Adam Driver e Babette, de Greta Gerwig), se envolvem com uma discussão sobre religião com uma amarga freira alemã, interpretada pela grande atriz Barbara Sukowa.

Em vez de piedade, a freira oferece uma visão cinicamente pragmática de como a fé religiosa opera. Se ela e suas colegas “não fingissem acreditar nessas coisas” (anjos, Paraíso, Céu, Deus, Inferno etc.) “o mundo entraria em colapso” – “Nossa tarefa no mundo é acreditar em coisas que ninguém mais leva a sério. Se não estivéssemos aqui o mundo acabaria. Então seria o Inferno... Quem chega aqui falando em anjos é um perfeito idiota!”, decreta sombriamente a freira.



Ruído Branco transita nesse limite tênue entre a descoberta do absurdo no mundo e a esperança no sentido e propósito em qualquer coisa que faça valer à pena a vida em família e em sociedade. Mas principalmente em como a percepção desse limite tênue nas pessoas gera medo.

Mas, paradoxalmente, o medo pode ser a matéria-prima regressiva que permita a fabricação do cimento da vida social. Ou a isca do entretenimento e consumo: filmes e shopping coloridos para esconder em nós esse medo existencial.

O Filme

 Ironicamente acompanhamos a vida do professor Jack Gladney, um especialista em vida em grupos e solidariedade através do medo: ele é um dos maiores especialistas mundiais em estudos sobre Hitler (embora não saiba falar ou ler em alemão e esconda isso por vergonha).

O filme é dividido em três atos: no primeiro poderíamos chamar de uma sátira à Academia: no refeitório da universidade vemos professores usando conceitos complicados para abordar temas de cursos aleatórios como, por exemplo, a vida de Elvis Presley.

Jack e sua esposa Babbette têm uma família mesclada que inclui Denise (Raffey Cassidy), propensa à ansiedade, Heinrich (Sam Nivola) e mais dois filhos. Babbette vem passando por episódios de amnésia de curto prazo ultimamente, e a filha Denise nota um novo frasco de receita para um medicamento chamado Dylar. 




Esta é uma família americana cotidiana, passando pelos movimentos da vida enquanto tentam afastar as questões que perseguem os filósofos por eras, como o significado de tudo e como parar de pensar quando tudo termina. Em uma das melhores cenas iniciais, um comentário sobre como eles estão felizes leva Babbette e Jack a uma conversa sobre quem deveria morrer primeiro. E como a vida de um seria insuportável com o desaparecimento do outro.  

A angústia e paranoia diante da morte é crescente e dominante em Babette, o que será o gancho para os acontecimentos finais.

Com exceção do bebê, as crianças da casa dos Gladney saltitam pela cozinha como fossem páginas de verbetes da Wikipedia, fazendo perguntas fora da caixinha e citando dados semi-relevantes. 

Jack e seu amigo Murray, o estudioso do acidente de carros no cinema, procura expandir seu portfólio acadêmico, e são mais inclinados à hermenêutica. Nem que seja para aplicá-los a Elvis. Em uma das típicas cenas aleatórias de Ruído Branco, a dupla improvisa um dueto numa sala de aula para uma plateia de estudantes extasiados, comparando e contrastando o amor materno e a pulsão de morte em Hitler e Elvis. Ruído Branco é um filme frequentemente engraçado, mas também é totalmente sério.




No segundo ato, intitulado "O Acidente Tóxico Aéreo", temos uma reviravolta aleatória: um acidente de trem com inúmeros vagões com produtos químicos na periferia da cidade cria uma estranha nuvem tóxica que parece ter vida própria, e todos na família Gladney, exceto Jack, entram em pânico. Enquanto ele tenta acalmar a situação, Denise se convence de que já está doente e Heinrich ouve obsessivamente as notícias. Em pouco tempo, eles estarão na estrada em uma evacuação em massa, fugindo do desconhecido.

No ato final temos os Gladneys de volta para casa, no qual o tema da morte torna-se crescente. Transformando-se numa crise conjugal.

Ruído Branco é um verdadeiro épico de pavor existencial. Esse drama existencial pelo medo da morte já está presente na própria metáfora de Jack ser um especialista em Hitler (um “Hitlerologista”) – um caso histórico exemplar que explorou o medo como matéria-prima de coesão política.

E o papel reconfortante do supermercado, quando as famílias retornam depois do desastre tóxico e descobrem que nada mudou – “tudo vai continuar bem, desde que o supermercado não decaia”, fala emblematicamente a certa altura o professor Siskind. Para ele o supermercado é “um lugar de espera que nos revigora espiritualmente”, afirma, comparando aos “bardos” do Budismo tibetano – estados de transição entre a morte e o renascimento.

O supermercado é o ponto chave de Ruído Branco – um lugar luminoso, cheio das ondas e radiação, onde encontramos todas as vozes, sons, códigos e frases cerimoniais. Como fala Siskind, “só temos que saber decifrar”.

Esse é justamente o sentido do título do filme. “Ruído branco” é um conceito da Teoria da Informação que significa sinal aleatório com uma potência espectral plana, resultado do aumento de desordem chegando à entropia máxima – a informação desaparece quando a imprevisibilidade passa a ser maior pelo ruído. Há uma ausência de código (redução da imprevisibilidade) para gerar informação (ordem, redundância, previsibilidades, Gestalt).

Supermercados, religiões, famílias etc., funcionariam como cenografias (ou simulacros) que, através dos seus signos, ocultam a ausência de referências, lastro, sentido ou propósito... o absurdo... Ou seja, o ruído branco no qual se fundamentaria a existência.


    

Ficha Técnica

 

Título: Ruído Branco

 

Diretor: Noah Baumbach

Roteiro: Noah Baumbach

Elenco:  Adam Driver, Greta Gerwig, Don Cheadle

Produção: A24, BB Film Productions, Heyday Films

Distribuição: Netflix

Ano: 2022

País: EUA

 

 

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