terça-feira, janeiro 10, 2023

A invasão de Brasília não aconteceu


“Capitólio brasileiro!”, cravam os “colonistas” da grande mídia diante da invasão e destruição dos prédios dos três poderes nesse domingo. Um ardil semiótico com dois objetivos: (a) esconder a centralidade da Forças Armadas no processo ao sugerir tudo como resultante do fenômeno global da escalada da extrema-direita; (b) ocultar a natureza de não-acontecimento da invasão – acontecimento fabricado para repercussão midiática, como operação psicológica para, mais uma vez, levantar o espantalho do golpe. Como todo não-acontecimento (assim como os atentados terroristas na Europa de 2012 a 2016), apresenta características como ambiguidade, timing, além da pergunta: quem ganha? Nesse momento o jornalismo corporativo tenta reverter o tiro no pé: diante de mais uma estratégia de emparedamento, Lula consegue reverter a pauta midiática ao criar uma agenda de Estado (a defesa da Democracia) da qual a mídia corporativa é obrigada a participar. Será que Lula dobrou a aposta e pagou para ver? Tudo está menos para o Capitólio, e muito mais para o 11 de Setembro.  

A grande mídia insiste em comparar o episódio da invasão e depredação dos prédios dos três poderes da República em Brasília com a invasão do Capitólio por militantes açodados por Trump em 2021.

Uma analogia retórica (“O Capitólio brasileiro”) que, como sempre, alinha-se com a estratégia de guerra híbrida das Forças Armadas: apagar as digitais da psyOp castrense (apoiar os acampamentos em frente aos QGs pelo País) através da figura patética do “manchuriano” Bolsonaro – assim como Trump, ele também supostamente teria estimulado seus apoiadores, além de tentar seduzir os altos comandos militares para uma aventura golpista - outra estratégia semiótica para apagar as digitais das próprias Forças Armadas.

Mas para esse humilde blogueiro, a invasão de Brasília está menos para a invasão do Capitólio e muito mais para o ataque do 11 de setembro às torres gêmeas do WTC em 2001. Por dois motivos: primeiro, a natureza “terrorista” de todo o conjunto dos atos (apesar de toda a controvérsia jurídica em torno dessa tipificação – controvérsia que na verdade é um ardil para embaralhar as estratégias de comunicação alt-right); e segundo, é um evento que suscita a questão clássica: “cui bono”, quem ganha?

Tudo parte de uma simples constatação: toda aquela multidão vestida com a bandeira nacional e camisetas da CBF (que agora, depois de seis anos, caiu a ficha e a entidade veio a público com nota desvinculando o uniforme da Seleção com os atos de extrema-direita – por que só agora?) não queriam dar um “golpe” ou “tomar o poder”. Embora estendessem faixas pedindo “intervenção” e clamassem por um golpe militar old school.

Toda a depredação dos prédios dos três poderes da República pareceu mais uma espécie de parque temático do golpe – patriotas caminhando pelos amplos espaços verdes da Esplanada e Praça dos Três Poderes filmando com celulares, fazendo selfies ou lives para abastecer as redes sociais bolsomínias de conteúdo. 

Todo o quebra-quebra de janelas, áreas envidraçadas, destruição de móveis e obras de arte de milhões de reais (como um Di Cavalcanti) pareciam mais movimentos coreografados para serem capturados pelas câmeras de celulares para imediatamente inundar as redes sociais – algo parecido com a coreografia black bloc das manifestações de 2013. Apenas que na época, os gestos se voltavam às câmeras dos cinegrafistas da grande mídia.

Era como se todos fossem wanna be de revolucionários da Queda da Bastilha ou algo parecido. Algum tipo de experiência imersiva na qual participam de uma simulação como soldados em uma batalha épica de invasão do Castelo de Kimble no game Assassin’s Creed Valhalla.



Em pânico, muitos da mídia progressista tomaram o simbolismo da encenação na literalidade e acreditaram que o “golpe” poderia ter vingado pelo acirramento da desestabilização política, com Bolsonaro voltando para o País no final para assumir a presidência – clique aqui.

Tomados por um pânico ingênuo, não viram a absoluta inutilidade e desperdício das cenas: um “patriota” escorregando pelo carpete da mesa diretora do Senado; um outro sentado na mesma mesa diretora, como uma caneta na mão como se estivesse dirigindo uma sessão imaginária; casais tirando selfies bregas enquadrando ao fundo o Congresso tomado pela multidão em verde-amarelo; mais casais de mãos dadas, em uma calma turística, olhando o cenário de destruição como se assistissem a mais uma atração em um parque de variedades. E tantas outras cenas que criaram uma combinação surreal entre cenas de violência e destruição tendo ao fundo uma bucólica e vazia Brasília numa tarde de domingo. 

Enquanto grupos de policiais militares alegremente observavam tudo, divertindo-se com seus celulares, olhando o conteúdo das redes produzido pelos “patriotas” nos interiores dos prédios do Congresso, Palácio do Planalto e STF.



Inutilidade e desperdício? Como assim? Pelo menos do ponto de vista de uma pretensa tentativa de um autêntico golpe de Estado. Se foi para dar um golpe real, como acham aqueles que interpretam o evento na literalidade, então o que vimos foi um espetáculo de absoluta inutilidade tática: os poderes e instituições constituídas continuam existindo (embora não exatamente estejam “funcionando”, por viverem assustadas com o espantalho do golpe, p. ex., em ações como essas de domingo). 

E mais! Deu para Lula a deixa para criar um evento de forte impacto simbólico para as câmeras de TV: a caminhada que cruzou a Praça dos Três Poderes em direção ao prédio vandalizado do STF – Lula, governadores, líderes do Congresso, prefeitos e ministros do STF, lado a lado, superando as diferenças políticas, caminhando em defesa da Democracia. Concedendo a Lula uma agenda de Estado, atropelando a pauta do terrorismo econômico da grande mídia e da Banca – voltaremos a esse ponto.

O não-acontecimento de Brasília

  Por isso, esse evento aproxima-se da natureza do evento do 11 de Setembro: a natureza terrorista do não-acontecimento.

Todo ato terrorista é, a priori, um não-acontecimento. “Não-acontecimento” é um dos conceitos mais prolíficos e polêmicos do falecido pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007). Diferenciam-se dos acontecimentos históricos (“reais”) porque são eventos fabricados para a transmissão imediata através das ondas concêntricas midiáticas e contágio pelas redes.

"Quer dizer então que a televisão não mostra mais eventos, isto é, fatos que acontecem por conta própria, independentemente da tevê, e que aconteceriam mesmo que esta não existisse? Cada vez menos”, já alertava Umberto Eco no final dos anos 1970.

Vivemos num ecossistema midiático (“media life”) no qual o que garante a existência dos fatos é a sua veiculação pela mídia. Os fatos progressivamente perdem a sua objetividade ou substância para se mesclarem com a lógica ficcional. Quanto mais explosivos, melodramáticos e espetaculares, mais chances terão de aparecer na mídia. 

O terrorismo demonstra bem esta opacidade dos fatos. Há muito deixou de ser uma estratégia revolucionária que objetivava a tomada do Poder. Em si mesmo, tornou‑se um ato propagandístico, mas não num sentido ideológico (palavras de ordem são enunciadas pelos terroristas, mas, no fundo, como jogo de cena para tomar mais dramático o espetáculo). Seja Sequestros de avião, bombas em embaixadas etc. são sempre acompanhados de reivindicações irreais ou impossíveis de serem atendidas, ou pouco práticas, da mesma natureza das exigências dos astros de rock em dias de show para estádios lotados.



No caso dos “patriotas”, a surreal “agenda” da “intervenção militar constitucional”. E a esperança dos acampados em frente aos QGs de acontecer uma quartelada igual a das hollywoodianas repúblicas de bananas de algum lugar perdido na América Central.

 Assim como os não-acontecimentos do ciclo de atentados terroristas na Europa de 2013 a 2016 (Paris, Nice, Berlim, Bruxelas, Londres etc.), a invasão de Brasília é cheia de fios soltos que sugerem Trabalho Interno (Inside Job), psyOp, ambiguidades etc.

Ambiguidade

Se não, vejamos. Tudo foi uma crônica do “golpe” anunciado. Estimulada e planejada através das redes sociais (na semana que antecedeu o sinistro, as redes bolsonaristas estavam repletas de postagens sobre datas de saída de ônibus fretados e até avião para Brasília – com data de retorno e alimentação e pousada grátis), milhares de pessoas começaram a rumar para Brasília. Como tudo passou despercebido pela inteligência da PF, PRF, pelas Três Forças Armadas e pela própria Presidência da República?

Dias antes, o ainda presidente Bolsonaro e família se mandaram para os EUA, seguido depois pelo próprio Secretário de Segurança Anderson Torres. Ambos procuravam conseguir um bom álibi.

E no dia da invasão, os milhares de “patriotas” encontraram os três poderes completamente indefesos. Mais do que policiais militares tomando água de coco, divertindo-se com o celular e tirando fotos com terroristas, os invasores contaram com a estranha ausência das polícias especiais, incumbidas da proteção de cada poder: o Comando Militar do Planalto (segurança presidencial), a Polícia Judicial (responsável pela segurança do STF), a Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados (que recentemente abriu concurso para ocupar 140 vagas) e a Secretaria de Polícia do Senado Federal.

Pois os terroristas encontram estranhamente os prédios vazios e vulneráveis, apesar desses edifícios conterem documentos, objetos do patrimônio histórico nacional e internacional, obras de arte de milhões de reais e caros equipamentos telemáticos. 



O set de filmagem estava pronto para receber os protagonistas e extras para a produção dos clipes para as redes.

 Algo parecido com os atentados na Europa, quando terroristas (supostamente monitorados por órgãos policiais) de repente encontravam as circunstâncias perfeitas para atirar e explodir.

Tanto a invasão de Brasília quanto o ciclo de atentados na Europa, contaram com ensaios antes dos ataques. Por exemplo, tanto o atentado em Paris em 2015, quanto os de Londres em 2017 foram antecedidos por estranhos exercícios de simulação de ataques múltiplos, coordenando bombeiros, policiais e paramédicos atendendo vítimas atores de crise.

No caso de Brasília, o ensaio técnico foi a tentativa de invasão da sede administrativa da PF e depredação e incêndio de carros e ônibus na Asa Norte, em dezembro, dia da diplomação de Lula.

A única diferença em relação à quebradeira de Brasília é que tanto na invasão do Capitólio, os ataques de 2001, quanto os atentados na Europa tiveram a contraprova do real para dar verossimilhança aos não-acontecimentos: os cadáveres das vítimas. A invasão de Brasília foi ainda mais canastrona: sem mortos ou feridos - caprichosamente, os blindados anti-motim da polícia militar do DF jogava chatos de água para cima ou para o chão em áreas vazias, andando em círculos. 

Horas antes, os terroristas foram gentilmente escoltados pela polícia militar até a entrada da Esplanada dos Ministérios.  

Timing transmídia

No domingo anterior o País assistiu à cerimônia de posse com uma cena de alto poder simbólico: o presidente subindo a rampa do Palácio do Planalto com aqueles que lhe passariam a faixa: indígena, operário, mulher catadora, menino negro, deficientes físicos etc., num simbolismo forte de um governo que pretende resgatar a diversidade e a tolerância. A antítese do governo anterior.



Uma semana depois, no mesmo local e horário, a rampa é ocupada pelos terroristas vestidos de verde-amarelo. Com o mesmo objetivo de alcançar um alto rendimento semiótico.

A diferença é que a invasão de Brasília foi um não acontecimento transmídia, enquanto a posse de Lula foi um rito tradicional previsto dentro da agenda política transmitido pelas mídias tradicionais.

Como narrativa transmídia a invasão de Brasília está repleta de lacunas e ambiguidades que geram uma espiral de interpretações ad infinitum. Uma nova forma de terrorismo, dessa vez autoconsciente, onde os elementos ambíguos do atentado impulsionam novos conteúdos em redes e plataformas.

Será que Lula dobrou a aposta?

Desde a formação do Governo de Transição e os ataques em Brasília no dia da diplomação de Lula, ficou clara a estratégia de tentar, por todos os lados, a estratégia midiática de emparedar o novo governo eleito: o espantalho do golpismo sempre erguido, o terrorismo do mercado com os sobe e desce especulativo no mercado financeiro e câmbio, a subida no tom nas pressões em torno do teto de gasto e responsabilidade fiscal pelos “colonistas” dos jornalões e canais de notícia. E, por fim, o terrorismo econômico dos aumentos dos combustíveis pelos cartéis de redes de postos bolsonaristas.

A princípio, os ataques aos prédios dos três poderes no domingo deveria ser o evento que completaria o emparedamento contra o governo: a concretização de uma tentativa de golpe de Estado – enfim, o espantalho ganhou vida. Não era um blefe!

Lula contra-ataca com mais um evento de forte poder simbólico: cruzar a Praça dos Três Poderes caminhando lado a lado com governadores e políticos de todo espectro político, ao vivo nos canais de notícia, todos indo na direção do prédio do STF destruído. Lula ao lado da presidenta do STF Rosa Weber.

Tudo num dia em que presidentes de vários países, além de um telefonema de Biden a Lula, deram apoio irrestrito ao governo eleito.



Quem ganhou com tudo isso? 

A grande mídia parece que foi pega de surpresa: tudo se reverteu a favor de Lula. A melhor análise, o reconhecimento desse reverso de última hora, foi de Caio Junqueira, na CNN: “Acabou o governo Lula 3. A partir de hoje, começou o Lula 4. Agora o presidente não tem mais uma agenda de Governo. Passou a ter uma agenda de Estado, unindo todos em defesa da Democracia”, comentou no programa noturno de William Waack.

A “agenda de Governo” era o que estava sendo abduzido pela grande mídia em sua estratégia de emparedamento. Ao contrário, a agenda de Estado é uma unanimidade à qual a grande mídia tem que se render.

É claro que a retórica discursiva midiática tenta dar conta dessa invertida: “Biden não ligou para defender Lula, mas para defender a Democracia!”, logo adiantou a “colonista” Natuza Nery, na Globo News. 

Ou ajudar a apagar os rastros de psyOp militar, tentando internacionalizar a invasão de Brasília como um fenômeno global da ascensão da extrema-direita – a retórica do “Capitólio brasileiro” faz parte dessa estratégia de ocultar a centralidade das Forças Armadas nessa operação psicológica. Afinal, a grande mídia quer manter essa parte dos seus ativos para sustentar a chantagem contra Lula: manter o Exército Psíquico de Reserva alimentado pelas Forças Armadas.

Ou ainda a criatividade retórica de chamar os terroristas de “bolsonaristas radicais”, como se fosse possível existir manifestações democráticas “pacíficas” que reivindicam a destruição do próprio Estado de Direito.

Mas é incontestável que tudo foi um tiro no pé e Lula sai como o estadista com apoio do mundo na luta contra os inimigos da Democracia.

“O que pode ter acontecido?”, pergunta Luis Nassif. “Uma estratégia de Alexandre de Moraes, desarmando as polícias dos três poderes, para que a serpente pudesse esticar o pescoço e ser degolada?”, completa a indagação o jornalista – clique aqui.

Este Cinegnose complementaria: diante de um ataque tão esperado e anunciado, não é possível que Lula não soubesse o que poderia acontecer. Será que, finalmente, Lula aceitou o desafio de dobrar a aposta às ameaças da extrema-direita? 

Vocês querem atacar? Pois então eu pago pra ver!

E agora Lula recolhe o lucro: criar uma agenda própria, revertendo a pauta negativa da grande mídia que, muito rapidamente, acabou com a lua de mel e iniciou a escalada de emparedamento.

 

 

 

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