quinta-feira, janeiro 19, 2023

Morte e Singularidade tecnológica no filme 'Homem Bicentenário'


Um clássico esquecido, mesmo entre os fãs do ator Robin Williams. Na época, “Homem Bicentenário” (Bicentennial Man, 1999) foi um fracasso de bilheteria com uma péssima promoção, inclusive com trailers que sugeriam como mais um veículo para o personagem do pateta com coração, como o ator se notabilizou em filmes anteriores. Mas “Homem Bicentenário” é um drama sério de ficção científica, que se inseriu numa guinada metafísica de Hollywood no final de século, com filmes como Dark City, Show de Truman e Matrix. Mais do que isso, foi na contramão do imaginário místico que começava a motivar o Vale do Silício: a Singularidade tecnológica como a busca da imortalidade através da digitalização da consciência – a agenda pós-humanista. Ao contrário, o filme faz uma reflexão humanística: um robô alcança a Singularidade, mas tenta aprender o que nos torna humanos: a mortalidade como o principal traço da alma humana.

Mesmo os fãs do falecido ator Robin Williams fizeram questão de esquecer esse filme. Um fracasso de bilheteria desde a sua estreia em 1999.  O próprio ator ficou muito zangado com o estúdio Disney pela forma como lidou na época com o marketing de Homem Bicentenário (Bicentennial Man, 1999). Um verdadeiro clássico esquecido.

Até então, a fama de Robin Williams o precedia. Até Homem Bicentenário, o ator sempre fazia o papel do pateta com bom coração em filmes como Flubber, Hook, Uma Babá Quase Perfeita e Aladdin. Tudo levava a crer que nesse filme repetiria o tom hilário. Reforçado ainda pelo trailer promocional do filme em que víamos um robô rebolando o traseiro e cantando – isso sem falar que o design do robô lembrava bastante a performance robótica de Woody Allen no filme O Dorminhoco (Sleeper, 1973). 

Mas bem diferente dos trabalhos anteriores de Robin Willians e da inexplicável campanha promocional, o que Homem Bicentenário entregou foi um longo drama de ficção científica que deixou os fãs absolutamente desapontados e entediados.

Baseado em um romance de Isaac Asimov chamado “The Bicentennial Man”, o filme se inseria numa onda de produções do final de século que o filósofo alemão Boris Groys chamava de “guinada metafísica de Hollywood” (clique aqui). Filmes como Mera coincidência, O Quarto Poder, Show de Truman, Matrix, EdTV, O Décimo Terceiro Andar etc. que apontavam para um a tendência de autorreflexão tecnológica e midiática, além do questionamento do próprio estatuto da realidade – a realidade como uma fina interface gerada pela presença das mídias e tecnologias.



Porém, há um outro motivo para a fraca performance de crítica e público de Homem Bicentenário: de certa forma, o filme estava na contramão do espírito de época tecnognóstico – o filme é uma reflexão sobre tecnologia e imortalidade: enquanto a elite tecnológica do Vale do Silício acalentava seus sonhos da imortalidade digital (o sonho da consciência humana ser digitalizada para alcançar a imortalidade num upload para o céu da informação), Homem Bicentenário tratava de uma mente positrônica que ansiava paradoxalmente a mortalidade humana. Um robô atormentado pela imortalidade e querendo morrer como os humanos.

Além disso, a estética de Homem Bicentenário passa muito longe do estilo ciberpunk ou pós-humano dominante no gênero: sua estética é retro-futurista, com os indefectíveis carros que voam e prédios que parecem ter saído da animação Os Jetsons. Enquanto a história do autômato querendo ser humano parece ser um conceito já desgastado na ficção científica. Além do próprio design do robô lembrar alguma coisa entre Metrópolis e séries dos anos 1960 como Perdidos no Espaço.



O tom agridoce, próprio de Robin Willians, muitas vezes ameaça descambar para a pieguice. Porém, a abordagem matizada do tema, além da performance física excruciante do ator por dentro da couraça do robô, confere a expressão exata do autômato através de gestos e movimentos sutis – consegue um híbrido entre o mecânico e o humano.

Um robô que alcança a singularidade tecnológica, mas de uma forma inversa àquela imaginado pelos engenheiros computacionais das Big Techs: primeiro, uma inteligência artificial que descobre a individualidade; e segundo, a conquista da mortalidade – o contrário da Singularidade como vontade de potência.

O Filme

Tudo começa num futuro próximo da época, 2005, quando Richard Martin (Sam Neil) adquire um robô para realizar tarefas domésticas como limpeza e manutenção sem ter a ideia de que ele traz consigo um “defeito”: curiosidade e uma ansiedade por acumular conhecimento que vão muito além daquilo para o qual foi construído.

Ele apresenta o autômato para a sua família que logo o chama de Andrew (Robin Williams), uma espécie de trocadilho carinhoso para “androide”. Ele rapidamente se torna o favorito da filha mais nova, Amanda (Hallie Eisenberg), a quem o robô chama de “pequena senhorita”.



Logo fica claro que Andrew é muito diferente de um robô normal. Ele é curioso e continuamente pergunta a Richard, a quem ele se refere como “Senhor”, perguntas sobre a vida e o mundo. Richard é um homem gentil e analítico. Ele reconhece no robô a paixão e a curiosidade pela vida que um dia já teve e, para grande aborrecimento de sua filha mais velha, Grace (Lindze Letherman), ele se torna entusiasticamente professor e mentor do robô. Ele ensina tudo a Andrew, desde piadas cafonas até o funcionamento interno dos “pássaros e abelhas”. 

Andrew começa a se dedicar à marcenaria, mostrando sua capacidade de criatividade. A pequena senhorita desenvolve sentimentos mais profundos pelo robô à medida que envelhece, mesmo considerando recusar uma proposta de casamento de um jovem devido a seus sentimentos complicados, enquanto Grace continua aterrorizando Andrew sempre que pode.

O filme acompanha a jornada de Andrew tentando entender o que é ser humano. Ele percebe os sacrifícios e a dor que a humanidade encontra regularmente com nossas mortes inevitáveis ​​e deseja mudar isso de alguma forma. Mas também aprende sobre algo que está profundamente entrelaçado no âmago da humanidade desde o dia em que nascemos: o amor e a necessidade de ser amado, mesmo diante da mortalidade implacável no final da jornada humana.

A primeira metade do filme é mais forte que a segunda (em que se torna mais agridoce e perigosamente resvalando para o moralismo piegas), mas ainda assim, no geral, é um filme reflexivo. Andrew é essencialmente uma criança aprendendo sobre ser humano, morte, amor e as regras não ditas existentes na sociedade e nas relações humanas, explorando esses temas de forma suave e comovente. 



Pela sua condição imortal, Andrew não apenas encontra a dor de perder seus entes queridos (“todos aqueles de quem eu gosto acabam morrendo”), mas também aprende porque a morte deve ser essencialmente uma parte da vida. 

Ele também aprende sobre o que significa ser uma minoria não aceita, passando a maior parte da sua vida lutando para ser reconhecido como humano e ser aceito como um deles. Há temas de relacionamentos “não tradicionais”, racismo, classismo e direitos humanos. 

Olhando em perspectiva para Homem Bicentenário, daqui do século XXI, é notável a caracterização da IA positrônica de Andrew: ele não é uma machine learning, ou seja, não é uma inteligência algorítmica que “aprende” de forma invisível (e manipuladora) com os hábitos e diálogos dos usuários. Andrew aprende de forma clássica, lendo livros impressos e tendo aulas com o seu senhor.

O retro-futurismo do filme conecta diretamente para a primeira fase dos autômatos no cinema: a era do robô Maria do clássico Metrópolis de Fritz Lang: em si as máquinas são benéficas bastando ao homem buscar não a razão, mas o coração para usá-las de forma sábia.



Porém, o que impressiona é a combinação do tema da mortalidade com a tecnologia. Homem Bicentenário foi na contramão de um imaginário que já era crescente entre a elite tecnológica do Vale do Silício no final do século XX: a busca da Singularidade da IA como o sonho de uma elite de abastados se perpetuar no poder.

Por milênios o Gnosticismo aspirou a transcendência sobre o corpo, dentro da dualidade radical espírito/matéria: o corpo nada mais era do que uma prisão para a evolução espiritual, em um mundo cuja Criação resultou numa forma de prisão cósmica para a humanidade. Teurgia, Alquimia, Cabala e demais conhecimentos herméticos foram as tecnologias iniciáticas de cada época mobilizadas para a libertação espiritual.

O atalho informático (digitalização da própria consciência) seria mais uma dessas formas iniciáticas. Porém, de uma forma pervertida, como estratégia de perpetuação de uma elite que detém o poder e dinheiro para dominar a tecnologia.

Ao contrário, Homem Bicentenário procura fazer uma reflexão não pós-humana, mas humanista sobre a tecnologia.

Talvez, por isso, ter sido rapidamente esquecido. Num século de hegemonia da agenda do Pós-humanismo de IAs que sabem mais sobre nós do que nós mesmos, Homem Bicentenário parece ser um filme sentimentalóide e brega.


 

 

 

Ficha Técnica

 

Título: Homem Bicentenário

 

Diretor: Chris Columbus

Roteiro: Nicholas Kazan, Isaac Asimov, Robert Silverberg

Elenco:  Robin Williams, Sam Neil, Embeth Davidtz, Oliver Platz

Produção: Touchstone Pictures, Columbia Pictures

Distribuição: Columbia TriStar Films

Ano: 1999

País: EUA

 

 

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