Desde a cobertura jornalística do Governo de Transição, a grande mídia entrou numa saia justa semiótica. O jornalismo corporativo foi obrigado a participar do consenso político da necessidade do combate à fome e da inclusão social. Porém, como conciliar a agenda social com a inclemente defesa do discurso fiscalista sobre tetos e responsabilidades cobrados pela Banca patrocinadora do jornalismo corporativo? Na primeira semana do ano, jornalões e canais de notícias assumiram um malabarismo retórico com dois sintomas: o transtorno bipolar e a Síndrome de Procusto (relativa ao mito grego do gigante Procusto). A única maneira para conciliar o psiquismo de “colonistas” que ora são liberados a se emocionar até às lágrimas e ora são instados a defenderem a intransigência de “responsabilidades” e “tetos”.
Até a eclosão da pandemia em 2020, palavras como “empatia” ou “vulneráveis” não faziam parte da retórica cotidiana de “colonistas”, apresentadores de telejornais ou dos incansáveis repórteres que saem com a pauta pronta debaixo do braço.
O crescimento do desemprego e da fome era, até então, ou empurrado para aquela área cinza das “notícias diversas” ou reciclado na forma dos “contos maravilhosos” ou “matéria inspiradoras”: “favelas inspiradoras” nas quais subempregados e precarizados se transformavam em “empreendedores”; desempregados trocando botijão de gás por fogo à lenha com matérias sobre cozinheiras que “mandam brasa” em pratos com “novos sabores” (clique aqui); sem dinheiro para comprar presente de Natal, matérias telejornalísticas cínicas falavam em “resgatar valores do Natal”, sem consumismo; a moradora de rua que virou “presépio vivo” (clique aqui) ou ainda o ex-diretor de RH de grandes empresas, que perdeu o emprego e dormia numa praça no Rio de Janeiro, e, com a notoriedade midiática, virou microempreendedor em consultoria de contabilidade...
Desemprego e fome cresciam com o fracasso da bonança econômica prometida após impeachment de Dilma Rousseff, reforma trabalhista e da previdência. Tempos em que a melhor receita para a crise econômica e desemprego era a terceirização e o empreendedorismo: subempregados e uberizados viravam empreendedores, maquiando as estatísticas do desemprego).
Com a pandemia e a necessidade do isolamento social, o primeiro impacto atingiu os vulneráveis “empreendedores” – rapidamente a grande mídia passou a chamá-los de “trabalhadores por conta própria” ou “autônomos” evitando conotar negativamente a palavra “empreendedorismo”.
E depois, ao ver o presidente Bolsonaro menosprezando pessoas que morriam de Covid e a princípio negar qualquer auxílio financeiro às vítimas econômicas da crise sanitária, a grande mídia (sempre ansiosa em se descolar da imagem de alguém que ajudou a ser eleito) passou a cantar loas à “compaixão”, “empatia” e a defender o SUS e os profissionais da linha de frente da saúde.
De uma hora para outra, dentro desse inédito espírito público de ajuda aos pobres e desempregados, mandou às favas os fundamentos do hiperliberalismo que tanto defende (teto de gastos, reponsabilidade fiscal etc.) e descobriu a função do Estado numa situação de crise – que nada mais foi do que acelerar uma economia já pauperizada, desde o governo Temer.
Era Temer: contos maravilhosos sobre superação e empreendedorismo |
Depois que Bolsonaro descobriu os evidentes lucros eleitorais com o Auxílio Brasil às vítimas do neoliberalismo e pandemia, passou a implementá-la. Até chegar no ano eleitoral e criar a “PEC Kamikaze” ou “PEC Eleitoral” para, definitivamente, acabar com o teto de gastos e tentar comprar eleitores. Com o apoio do jornalismo corporativo. Tudo em nome da “empatia” e “compaixão” pelos famintos que faziam filas para pegar ossos e pelancas em açougues – e momentaneamente esquecer de Friedman e Hayek para, secretamente, dar uma força a Bolsonaro (mesmo que tampando o nariz). Mas sempre pensando em Paulo Guedes e nas oportunidades de privatizações com a continuidade do governo de extrema-direita.
O hiperliberalismo do gigante Procusto
Pois Lula ganhou, falando em acabar com a fome e a promessa de que todos os brasileiros farão três refeições diárias. “Colonistas” batem palmas e comentam, com lágrimas nos olhos, a emocionante subida de Lula na rampa do Palácio do Planalto com aqueles que lhe passariam a faixa: indígena, operário, mulher catadora, menino negro, deficientes físicos etc., num simbolismo forte de um governo que respeitará a diversidade.
Nisso tudo implica numa espécie de saia justa discursiva midiática: ajudar os “vulneráveis”, acabar com a fome e defender o Bolsa Família fora do teto de gastos passou a ser um consenso no espectro político. E para o jornalismo corporativo, que no ano eleitoral defendia por escusos motivos, agora não pode mais voltar atrás. Isto é, voltar de maneira intransigente a defender os pilares do hiperliberalismo – a versão mais realista que o rei do neoliberalismo Chicago + Escola Austríaca.
Desde a cobertura do Governo de Transição, a grande mídia passou a conviver com um verdadeiro transtorno de bipolaridade: teve que ecoar o terrorismo de mercado dos operadores da Faria Lima (sem austeridade cairemos no pior dos mundos!) e, ao mesmo tempo, considerar moralmente necessária a inclusão dos pobres no orçamento.
Nessa primeira semana do ano, as novas operações semióticas do jornalismo corporativo tentam solucionar esta condição discursiva bipolar. Porém, parece que está pulando de uma síndrome para cair em outra: a Síndrome de Procusto.
Uma síndrome baseada no sombrio mito grego de Procusto. Procusto era um gigante que trabalhava em uma estalagem nas altas colinas de Ática, onde oferecia hospedagem para os viajantes. No entanto, sob os tetos simpáticos que convidavam ao descanso e ao conforto, se escondia um segredo terrível.
Procusto tinha uma cama de ferro, na qual convidava seus hóspedes a se deitarem. À noite, enquanto dormiam, ele aproveitava para amordaçar e amarrar suas vítimas. Se a pessoa fosse mais alta e seus pés, mãos ou cabeça não coubessem exatamente nas dimensões da cama, Procusto os cortava.
No contrário, se a pessoa fosse menor, ele quebrava seus ossos para ajustar as medidas.
“Tebet admite divergência, mas exalta equipe econômica e fala em austeridade” (Estadão 06/01); “Tebet defende austeridade e revisão do gasto – Ministra do Planejamento propõe conciliação entre responsabilidade fiscal e inclusão social” (Globo, 06/01) - veja acima.
“Austeridade”, “revisão de gastos”, “programas sociais com responsabilidade”, “saber onde gastar” ou “gastar com eficiência” passam a ser expressões que assombram o noticiário. Sem poder voltar para trás, à época Temer em que ignorava a pauperização em nome da panaceia mérito-empreendedora, tenta entrar numa nova fase “Empatia 2.0”. Cínica, pois simula qualquer preocupação moral, liberando “colonistas” a se emocionarem e ficar com olhos rasos d’água ao vivo.
Essas são duas manchetes exemplares que revelam essa tentativa de resolver seu impasse discursivo com uma estratégia moralmente ambígua que lembra o gigante Procusto: Ok! Vamos incluir os “vulneráveis” (eufemismo para esconder a desigualdade perversa e a luta de classes) até o limite “tecnicamente” aceito. Aqueles (muitos) que ficarem para fora da cama de Procusto, cortem-nos e deixem entregues à própria sorte – ou melhor, à seleção natural e ao darwinismo social. Os poucos que não perecerem serão reciclados como contos midiáticos fantásticos, histórias “inspiradoras” de superação e empreendedorismo.
O problema é a segunda parte do mito de Procusto. Secretamente, o plano do gigante era que nenhum dos viajantes se adaptasse à cama: Ele possuía duas versões da cama de ferro com tamanhos diferentes. E armava para que nunca o visitante coubesse no leito.
O gigante manteve por muito tempo esse segredo, até que Teseu o capturou e o condenou ao mesmo terror que praticava contra os viajantes.
Procusto era um gigante amoral. Assim como os operadores da banca financeira e o Big Money. Também como ocorreu contra Dilma, não custa nada a essa elite mais uma vez cansar-se da Democracia e do Estado de Direito. E, de repente, querer trocar de cama de ferro.