quinta-feira, junho 30, 2022

'Fruto da Memória': o olhar inédito da "onda estranha grega" para pandemia e esquecimento


Uma pandemia global provoca amnésia irreversível em um número crescente de pessoas. Parece que já vimos muitos filmes tratando desse tema. E sem memórias, como descobrir quem somos? Também já vimos outros filmes sobre isso. Porém, lembre-se: o leitor vai assistir a um filme da chamada “Onda Estranha Grega” – narrativas bizarras onde amor, culpa, misticismo e horror se misturam. No filme “Fruto da Memória” (Mila, 2020), o diretor grego Christos Nikou mostra um protagonista amnésico que terá que reiniciar sua identidade em um programa neurológico inédito: reaprender todos os papéis, scripts e convenções sociais, desde as banais como andar de bicicleta, flertar alguém numa festa ou ir ao cinema. Sob comandos de fitas cassete gravadas com orientações para as “tarefas”. O filme é uma oportunidade para descobrirmos o “non sense” dos rituais cotidianos que mecanicamente repetimos, sem percebermos o artifício, muitas vezes involuntariamente cômico.

  

As memórias estruturam nossas identidades e são cruciais para que a existência tenha algum sentido acumulativo ou construtivo. Sem elas, é impossível pensar em futuro. Essa tese fenomenológica já foi abordada por inúmeros filmes como Sentidos do Amor (2011), Upstream Colour (2014), Embers (2015), Remainder (2015), Marjorie Prime (2017), Little Fish (2020), entre outros. Parece que o século XXI está obcecado por temas associados às memórias como esquecimento, identidade, amnésia etc. Ao lado do tema da pandemia, praticamente um subgênero desses últimos anos, principalmente com a pandemia global Covid-19.

Mas as memórias também estruturam uma faceta importante das nossas vidas: a memória dos nossos papéis sociais e as regras de sociabilidade – todo um conjunto de “colagens de expectativas” (Parsons) do que os outros esperam de nós no exercício de determinada ação social. Conjuntos abstratos de modelos de ação, scripts impessoais cuja exigência é a sua execução cotidiana, sempre cumpridas da mesma forma. Não importando as demandas psíquicas pessoais ou individuais.

Sociólogos funcionalistas como o norte-americano Talcott Parsons (1902-1979) demonstraram como o “encaixe” dos indivíduos nesses scripts abstratos que orientam as ações sociais sempre é uma fonte potencial de disfuncionalidades entre aquilo que buscamos e aquilo que a sociedade espera. Parsons falava em “dupla contingência”: os dramas de adaptação do ego a essas colagens de expectativas que devemos sempre lembrar.

Fruto da Memória (Mila, 2020), escrito e dirigido por Christos Nikou, é um filme grego que lança um olhar inovador a esse tema da memória e identidade, combinando com mais um tema obsessivo desse século: a pandemia global. Inovador, aborda a memória como o elemento principal para o funcionamento cotidiano da sociedade, nos seus scripts mais banais: ir ao cinema, como flertar alguém em uma festa, andar de bicicleta, iniciar uma conversa com um desconhecido em um bar etc.

Estamos tão acostumados ao cumprimento automático de papéis sociais e scripts de sociabilidade que não percebemos mais a natureza artificial, arbitrária ou ritual do nosso agir na sociedade. E se, por algum motivo, essa memória se perdesse e tivéssemos que partir do zero? Reset social?

Christos Nikou acompanha a tradição da chamada “Onda Estranha Grega” que a maioria dos espectadores associa imediatamente aos filmes de Yorgos Lanthimos como Dente Canino (2009), O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e The Lobster (2015). A “Onda Estranha Grega” tem se especializado em narrativas sobre situações bizarras, com personagens totalmente incongruentes entre si nas quais violência, amor, culpa, erotismo, misticismo e horror se misturam – espaços claustrofóbicos, famílias que se transformam em prisões ou antigas fábulas e mitologias atualizadas em contos atuais.

Fruto da Memória não é diferente, porém com um tom narrativo silencioso, lento, aparentemente tranquilo, mas que esconde uma tensão crescente em um estranho futuro analógico próximo, sem celulares, redes sociais etc. Um futuro no qual repentinamente uma pandemia global começa a provocar amnésia irreversível, em que as vítimas são pegas de surpresa, nas situações mais banais: guiando um carro, dentro de um ônibus. De repente, todas as memórias se foram, nada mais restando para o contaminado ser resgatado por uma ambulância e ser internado num hospital. Indivíduos que se transformaram em páginas em branco, totalmente incapazes de retornar ao convívio social.

Alguns sortudos são encontrados e resgatados pela família. Mas, e se os próprios familiares se esquecerem?



Ambientado em Atenas, o grande desafio para os médicos e governo grego é tentar reabilitar socialmente esses pacientes, inserindo uma nova identidade e o reaprendizado dos papéis e scripts sociais.

O Filme

Acompanhamos close-ups do interior de uma casa banal, cortados pelo ritmo de uma batida monótona e constante. O barulho, ao que parece, é de um homem, Aris (Aris Servetalis), batendo ritmicamente com a cabeça no batente da porta, alheio a qualquer dor. 

É o enigmático início de um tratado estranhamente comovente, sobre a relação entre memória, identidade e luto. 

O mundo foi atingido por uma misteriosa pandemia de amnésia irreversível. Na Grécia, os poucos sortudos são encontrados e recuperados pela família, enquanto o resto é mantido no hospital ou colocado no Departamento de Distúrbios da Memória, que os ajuda a construir uma nova personalidade. 



Acordando em um ônibus noturno sem saber onde ou quem está, Aris é introduzido no programa de recuperação. Aqui ele recebe um novo apartamento e um conjunto de tarefas diárias (que são passadas por uma fita cassete C90 - lembra delas?) e novas memórias.

Inicialmente, ver Aris se comprometer com o programa de treinamento tem seus encantos. Todos os dias, ele ouve fitas cassete que o instruem a criar memórias específicas – andar de bicicleta, dançar no colo, participar de uma festa à fantasia de Halloween. Mas nosso herói, uma espécie de alienígena mudo e de olhos arregalados, faz essas atividades totalmente comuns parecerem absurdas. Após cada experiência, ele deve pegar uma polaroid e colocá-la em um álbum de fotos para os médicos observarem.

O fato de o programa o obrigar a tirar uma foto Polaroid toda vez que ele completa uma tarefa aumenta a artificialidade sombria, embora indutora de situações cômicas.

Ao longo de tudo isso, Aris permanece misteriosamente desvinculado de todas essas atividades, vivendo a vida como espectador. Isso começa a mudar quando ele conhece outra amnésica – uma mulher extrovertida chamada Anna (Sofia Georgovassili ) que também está passando por esse “programa”. Ela aborda suas tarefas com um aborrecimento infantil, desinteressada nas nuances emocionais de cada interação.



Nesse momento, Fruto da Memória parece sugerir ser mais um daqueles filmes sobre um homem solitário que se apaixona por uma mulher fascinante e recupera no final o entusiasmo pela vida. Porém, lembre-se: estamos assistindo a um produto da “Onda Estranha Grega”. 

Chistos Nikou tem ambições mais elevadas, que acabam lembrando os filmes do diretor sueco Roy Anderson como Songs from the Second Floor (2000) e Vocês, os Vivos (2007), filmes compostos por uma série de esquetes nos quais acompanhamos a comédia involuntária da performance dos papéis e convenções sociais – como, sem percebermos, estamos imersos em uma rede non sense de rituais arbitrários que compõem o nosso dia a dia.

Aris parece estar evitando ativamente um relacionamento íntimo com outras pessoas e sua própria mente. Anna é alguém com quem ele pode desaparecer da vida, com um relacionamento sem nenhuma profundidade real. Será que Anna foi atraída por Aris ou ele é apenas agradável o suficiente para ser seu companheiro por um tempo? Aris gosta de Anna ou simplesmente tem medo de ficar totalmente sozinho?

As altas ambições de Christos Nikou ficam evidentes no plot twist final em que finalmente entendemos o porquê do aparente autodistaciamento consciente do protagonista que, por vezes, cria situações humorísticas involuntárias.

Nesse sentido, entende-se o porquê do estranho futuro analógico figurado em Fruto da Memóriao filme se passa em um mundo atemporal onde todos ainda usam câmeras Polaroid – o filme foi filmado em uma proporção de 4:3 que emula a antiga proporção das antigas telas de TV de tubo catódico. Astuta estratégia do diretor: sem mídias sociais fica mais fácil aos personagens capturar os momentos, sem ter a distração das telas dos dispositivos móveis.

O programa de recuperação do Departamento de Distúrbio da Memória suscita uma inesperada reflexão gnóstica da sociedade como um constructo arbitrário e artificial. Construído por uma elite de médicos que criam comandos com exercícios para serem pavlovianamente repetidos. Como fossem diretores que, remotamente, dirigem seus “atores sociais”.

Essa talvez seja a ambição conceitual mais profunda de Christos Nikou em Fruto da Memória.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Fruto da Memória

Diretor: Christos Nikou

Roteiro: Christos Nikou

Elenco:  Aris Servetalis, Sofia Georgovassili, Anna Kalaitzidou 

Produção: Boo Productions, Lava Films 

Distribuição: Cohen Media Group

Ano: 2020

País: Grécia

 

Postagens Relacionadas

 

Um humor esquecido pelo cinema no filme “Vocês, os Vivos”

 

 

A pandemia da incomunicabilidade e do esquecimento em “Sentidos do Amor”

 

 

 

A dependência bioquímica da felicidade no filme “Little Joe”

 

 

A distopia do esquecimento no filme “Embers”

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review