“Sentidos do Amor” (Perfect Sense, 2011) é um ponto fora da curva dentro do batido tema do” fim-do-mundo-como-o-conhecemos”. Uma pandemia rapidamente toma conta do planeta. Mas não vemos serem humanos decrépitos, exércitos contendo massas humanas desesperadas ou pessoas lutando ou matando para sobreviver. Apenas a luta das pessoas tentando levar a vida em frente, enquanto um a um dos sentidos vão sendo anulados por algo que nenhum cientista sabe a origem: primeiro o olfato. Depois o paladar, e assim por diante. “Sentidos do Amor” é uma reflexão literário-filosófica sobre como o desaparecimento progressivo dos nossos sentidos faz “um oceano de imagens do passado desaparecer”, remetendo às reflexões de Marcel Proust sobre a memória involuntária e identidade. E uma poderosa metáfora da incomunicabilidade, a verdadeira pandemia tecnológica dos nossos tempos.
Esses anos de pandemia nos deixaram familiarizados com o que os críticos de cinema chamaram de “covid exploitation”: uma enxurrada de produções de temática apocalíptica apresentando a sociedade desmoronando pelo caos, a luta pela sobrevivência, o destino sombrio de relacionamentos humanos em contexto de isolamento social e medo mediado pela Internet e redes sociais. Além de uma variedade de tipos de pandemias: agonizantes, pestes zumbis ou cepas tão fulminantes que nem há tempo de amigos, casais ou familiares terem tempo para se despedir.
Desde O Planeta dos Macacos (1967), em que o tema do fim-do-mundo-como-o-conhecemos chegou ao mainstream pop, uma longa lista de filme nos preparou para o estado da arte atual da “covid exploitation”: O Enigma de Andrômeda (1971), The Omega Man (1971), Soylent Green (1973), e, mais recentemente, Extermínio (2002), Eu sou a Lenda (2007), Filhos da Esperança (2006).
Mas nada parecido com Sentidos do Amor (Perfect Sense, 2011), um ponto fora da curva sobre o tema no cinema. Um filme profundamente comovente do diretor britânico David McKenzie. Na época, bem-sucedido no Festival de Sundance, logo se viu que não era um tipo de filme com que faça os distribuidores verem cifrões. Um filme que se tornou difícil de ser rotulado e comercializado para as massas – o título em português é uma dessas tentativas, sugerindo uma banal estória romântica ao estilo “Sessão da Tarde”.
A iconografia apocalíptica tradicional está no filme: carros abandonados pelas ruas cheias de lixo e sujeira, incêndios e destruição por todos os lados tornando os nossos piores pesadelos realidade.
A causa da doença é desconhecida e não há cura. Pode ser um conjunto de doenças, ninguém sabe ao certo. Os especialistas dizem que não é contagioso, mas isso é apenas um estratagema fútil para evitar o pânico. Está se espalhando pelo mundo como uma epidemia completa. Os sintomas são brutais e implacáveis: lenta, mas seguramente, seus sentidos começam a desaparecer - primeiro você perde o olfato, para depois cada um dos sentidos desaparecer, nos tornando privados de qualquer contato com o entorno. O pânico o atinge de qualquer maneira e o mundo ao seu redor deixa de fazer qualquer tipo de sentido. Como você pode sobreviver ao ataque da privação sensorial? O que você pode fazer quando está tomado por uma sensação crescente de desamparo infantil?
É um tipo de apocalipse contido. Não há seres humanos decrépitos, exército ou armas. Mas apenas uma reflexão literário-filosófica sobre como o desaparecimento progressivo dos nossos sentidos faz “um oceano de imagens do passado desaparecer”, remetendo às reflexões de Marcel Proust na obra “Em Busca do Tempo Perdido” sobre a “memória involuntária”, o tempo em seu estado puro – perfume, sons, climas e toda uma gama de índices sensoriais capazes de resgatar aquilo que foi esquecido e que é a base daquilo que nós somos.
"Uma hora não é só uma hora: é também perfumes, sons, projetos, climas" (PROUST, M., À la recherche du temps perdu. Paris, Gallimard, 1999, p. 167). Marcel Proust fala da sensação que encontra ao tropeçar nas irregularidades do piso do casarão dos Guermantes, do barulho dos talheres e do martelo, do sabor da madeleine. Esses momentos, dizia ele, permitem respirar ares de outros tempos, ou “o tempo em estado puro”. Nesses expedientes, diz ele, seria possível obter, isolar, imobilizar a duração de um brilho (PROUST, M., pp. 2266-67).
E sobre isso que trata Sentidos do Amor. Ou melhor, sobre como a perda dos sentidos nos torna não apenas surdos-mudos-cegos e impermeáveis ao tato e olfato. A noite cai sobre a Terra ao nos esquecermos quem nós somos.
O Filme
Michael (Ewan McGregor) trabalha como chef em um restaurante sofisticado. Ele brinca com seus colegas de trabalho na cozinha e tem encontros de uma noite com mulheres. Um dos sinais de seus problemas com relacionamentos é que ele não consegue dormir se mais alguém estiver na cama.
Susan (Eva Green) é uma epidemiologista que mora em um prédio perto do restaurante. Ela não tem muito tempo para namorar. Mas, eventualmente, Susan baixa a guarda e esses dois ficam juntos.
Susan e os médicos que trabalham em seu laboratório ficam perplexos com um homem que teve um colapso emocional e mergulhou no desespero. Então uma coisa estranha aconteceu: ele perdeu o olfato. Em breve, chegam relatórios de todo o mundo sobre uma pandemia de crises emocionais seguidas de perda de olfato. Os cientistas não sabem se isso está sendo causado por toxinas, meio ambiente ou terrorismo. A misteriosa doença é chamada de Síndrome Olfativa Severa (SOS).
Apesar do medo generalizado, as pessoas ainda vão trabalhar e levam suas vidas diárias da melhor maneira possível. Michael prepara uma refeição para Susan, mas no meio da refeição, ela é dominada pela tristeza. Ele a leva para casa e passa a noite. Pela manhã, ambos perderam o olfato. Mais tarde, na rua, eles são fascinados por um violinista criativo que criou um minidrama afirmando a capacidade de todos viverem com apenas quatro sentidos e ainda encontrarem maravilhas na natureza e em outros lugares.
À medida que a doença progride, cada sentido começa a ser anulado. Susan é dominada pelo terror em uma garagem e uma mulher oferece consolo. Então, movidos pela fome, devoram o que está à vista ou ao alcance: Susan come as flores que a mulher comprou, e sua companheira come o batom da sua bolsa. No restaurante, Michael e os outros chefs são apanhados na mesma síndrome que termina com a perda do paladar.
Tentar sobreviver e se virar nessa atmosfera de pesadelo é um verdadeiro desafio. Susan e Michael recorrem ao sentido do tato ao fazer amor repetidamente. No trabalho, a textura é mais enfatizada do que o sabor dos alimentos.
O caos, a violência e a destrutividade aumentam em Glasgow e em cidades de todo o mundo. Susan vai morar com Michael, mas é expulsa quando ele explode em um ataque verbal odioso e violento antes de ficar surdo. Ele e outras pessoas que não podem mais ouvir são ordenados a ficar em suas casas onde é seguro. Nas ruas, o ataque de raiva dos cidadãos antes da surdez leva a matanças e saques. Algumas almas corajosas estão se preparando para a próxima perda que resultará em cegueira.
Metáforas estão por toda a narrativa. A começar pelas profissões do casal protagonista: ele, um chef bem-sucedido (uma profissão multissensorial por excelência) e ela, uma cientista com dificuldades de relacionamentos com o sexo oposto e, junto com a sua equipe de epidemiologistas e virologistas, incapazes de entender o que está ocorrendo.
E principalmente no último estágio do apocalipse sensorial, a cegueira: as pessoas são subitamente tomadas pela necessidade de tocar ou abraçar a pessoa mais amada, antes da noite finalmente cair sobre a Terra.
É a pandemia da total incomunicabilidade. Uma metáfora do paradoxo atual da incomunicabilidade em banda larga: nunca estivemos tecnologicamente tão conectados em tempo real. Mas, ao mesmo tempo, tão distantes e solitários em mídias espectrais.
Ficha Técnica |
Título: Sentidos do Amor |
Diretor: David McKenzie |
Roteiro: Kim Fupz Aakeson |
Elenco: Ewan McGregor, Eva Green, Lauren Tempany, Denis Lawson, Connie Nielsen |
Produção: BBC Films, Zentropa Entertainments, Scottish Screen |
Distribuição: IFC Films |
Ano: 2011 |
País: Reino Unido, Suécia, Irlanda |