sábado, julho 02, 2022

Continuamos com a corda no pescoço, mas... deixamos de discutir Economia


O filósofo José Arthur Giannotti escreveu certa vez: “Nunca se discutiu tanto Economia entre nós. Pudera, estamos com a corda no pescoço”. Isso foi em 1984. Hoje, continuamos com a corda no pescoço. Mas a Economia desapareceu da pauta da grande mídia. PMiG (Partido Militar Golpista) e grande mídia convergem na mesma estratégia semiótica: a guerra permanente informacional militar cria semanalmente crises que ajudam a ocultar a crise econômica sistêmica que a grande mídia embaralha com estratégias semióticas de pulverização, deslocamento, naturalização e despolitização. Telecatchs de Bolsonaro contra a Petrobrás e PF e o fusível queimado de Pedro Guimarães na Caixa ajudam a pulverizar a relevância de qualquer debate econômico e, do outro lado, dá munição à grande mídia para esconder a crise econômica debaixo do tapete e tornar como fato consumado a agenda de privatizações.

Em 1984, em um artigo intitulado “Ciências Cadentes” no então suplemento “Folhetim” da Folha, o filósofo José Arthur Giannotti (1930-2021) escrevia: “Nunca se discutiu tanto Economia entre nós. Pudera, estamos com a corda no pescoço”. Pois trinta e oito anos depois, continuamos com a corda no pescoço. E cada vez menos discutimos Economia entre nós.

O filósofo uspiano não viveu o suficiente para ver o quanto a Economia transformou-se numa estrela cadente, pelo menos na grande mídia e junto à opinião pública. Parece que o seu temor pela perda “dos seus objetos” trouxe para a Economia uma crise não tanto epistemológica, mas ironicamente uma crise de relevância ou pertinência pública.

Naqueles tempos, nos estertores da ditadura militar em meio à hiperinflação num país de joelhos diante do FMI, as discussões econômicas estavam na ordem do dia, com a ascensão do jornalismo econômico que tentava traduzir para o povão o economês (Joelmir Betting, Celso Ming, Luís Nassif entre outros), enquanto nos meios universitários estavam em alta manuais de introdução à Teoria Econômica como “Curso de Introdução à Economia Política” (Paul Singer) e “História da Riqueza do Homem” (Leo Huberman). 

Parecia que, além de técnico de futebol, cada brasileiro se imaginava também um economista que poderia dar pitacos nas políticas econômicas do ministro da Fazenda de plantão como Delfim Neto, Ernani Galvêas, Francisco Dorneles ou Dilson Funaro.

Junto com o rock brasileiro, a relevância das discussões sobre economia política acabou com o Governo Collor, a abertura da economia e o alinhamento com o recém-criado Consenso de Washington. O impeachment do presidente e o tema moralista da corrupção passaram a monopolizar o debate: “A corrupção no jornalismo. Dez dos maiores jornalistas do país tocam o dedo nessa ferida”, dava na capa a revista "Imprensa" em 1991.



A vitória contra a inflação e o Plano Real fizeram a imprensa ser seduzida por Fernando Henrique Cardoso. A concentração das grandes mídias nas mãos de poucas famílias dominantes mostrou definitivamente a sua cara: a eliminação de qualquer contraditório nas discussões dos temas econômicos, a unanimidade forçada e a rotinização das coberturas resumindo-se a repórteres plantonistas reportando leilões de privatização ou cobrindo o dia a dia da Bolsa de Valores – naquela época ainda um lugar barulhento de negociações.

Nem mesmo nos tempos do jornalismo de guerra, durante os governos petistas, as discussões econômicas ganharam alguma dignidade. Os cadernos econômicos limitavam-se a apenas tocar o terror com muitos gráficos descontextualizados e manchetes apocalípticas, criando problemas para vender soluções. Para, principalmente, criar uma irresistível crise econômica autorrealizável. 

Jornalismo econômico para os ricos

Ciclo vicioso tão autorrealizável, com tamanha força inercial, que nos fez voltar ao mesmo contexto da fala do filósofo José Giannotti em 1984: inflação descontrolada, combustíveis sofrendo constantes reajustes, desemprego elevado, o retorno da fome e saques em supermercados.

Lá como cá, sabemos que a crise econômica é sistêmica, isto é, decorrente dos fundamentos ultraliberais de um país que rapidamente está se recolonizando – uma espécie de neocolônia high tech de capitalismo de plataforma.

Para ajudar no soterramento definitivo da pauta da economia política, o regime militar que impôs uma ruptura institucional em câmera lenta (o golpe militar híbrido do PMiG – Partido Militar Golpista) que se concretizou com a vitória de Bolsonaro em 2018, criou uma gestão caótica de informações: a guerra permanente informacional ou guerra criptografada – a criação semanal de crises, auxiliada pelo “agrojornalismo” de “notas” plantadas para os “colonistas” da grande imprensa: jornalistas de grife que dizem “apurar” informações, mas nada mais fazem do que servir de correias de transmissão de boatos, não-notícias, pseudo-eventos, factoides etc. 

Enquanto o jornalismo propriamente econômico vive basicamente da cobertura de três indicadores: crescimento do PIB, números do desemprego e o comportamento volátil (ou chantagista) da bolsa de valores ou dos “mercados” – o Big Money que patrocina cadernos e quadros televisivos neoeconômicos.

O problema desses dados é que não capturam o bem-estar de uma nação. Mas apenas o impacto nos humores do mercado financeiro que apenas beneficia os mais ricos O que corresponde a uma pulverização da cobertura econômica. 


Por exemplo, nessa semana a grande mídia bateu bumbo para a divulgação da taxa de desemprego em 9,8% no trimestre encerrado em maio – um “recorde de pessoas ocupadas hoje”, relatou a CNN Business (clique aqui). O problema que esses indicadores positivos (ao lado do “avanço” do PIB em 1% no trimestre) convivem confortavelmente com pautas sobre o crescimento da fome e do aumento da população em situação de rua. Reportagens até bem-feitas e impactantes, mas sempre sob o viés da “população vulnerável”. Ora, por que são vulneráveis?  Ora, porque provavelmente nasceram assim... “vulneráveis”...

Não há nenhum contraditório sistêmico, mas apenas notícias que não se conectam de forma causal. Temos, portanto, uma pulverização do noticiário econômico.

Ardil semiótico

Ao lado dessa pulverização está o deslocamento puro e simples de fenômenos econômicos que são retirados do campo propriamente econômico. Como no caso dos reajustes dos combustíveis e a posterior perspectiva de redução com a redução do ICMS dos estados. São Paulo e Rio começam a implementar a redução de 25% para 18%, com a expectativa de redução de cerca de 48 centavos por litro. Bate bumbo da grande mídia, ansiedade, repórteres junto às bombas de gasolina e... o bordão dito em dez de cada dez apresentadores de telejornais: “para aumentar os combustíveis, reajusta no mesmo dia. Para baixar, leva cinco dias...”.

Procon na parada e consumidores exortados a pesquisar preços e denunciar: pressão sobre os postos e um acontecimento econômico cujo impacto sistêmico e político é ocultado pelas relações consumidor-prestação de serviços.



O terceiro ardil semiótico para sumir com o objeto econômico é a naturalização: por que há fome? Por que os preços sobem? Por que os combustíveis sobem na estratosfera? A causalidade está em fenômenos “naturais” como a pandemia que houve e pode voltar, a guerra na Ucrânia e assim por diante. No mundo inteiro sobe os combustíveis, faltam alimentos e a inflação é galopante. Fenômenos tão globais como a pandemia.

Outro ardil é o paradoxo de despolitizar a pauta econômica paradoxalmente politizando-a, mas no pior sentido: como “populismo eleitoreiro”. 

Junto com a redução do ICMS nos combustíveis, a chamada “PEC Kamikaze” (que estabelece “estado de emergência” no país com gastos de benefícios sociais na casa dos R$41 bilhões) é criticada pela grande mídia unicamente do ponto de vista de “medida eleitoreira a três meses das eleições”.

Se há “estado de emergência”, para onde foram os números positivos do PIB e redução do desemprego? Essa contradição sistêmica é oportunisticamente evitada (poderia colocar em xeque aqueles três indicadores da “lição de casa” neoliberal), para mobilizar uma crítica ambígua do “populismo eleitoreiro”. Por que ambíguo? A malícia dessa crítica é que ela pode ser autorrealizável, beneficiando o próprio presidente aparentemente criticado: mas a PEC beneficia Bolsonaro, alertam os “colonistas”. Mas quem disse isso? Onde estão os números? Onde estão as pesquisas que apontem essa tendência. Ou a tendência populista será confirmada como recall nas pesquisas daquilo que a grande mídia tanto martelou?


"Colonistas" em ação: HOW CONVEEENIENT..


Mas o decisivo mesmo é o papel da guerra criptografada disparada pelo PMiG: a usina semanal de crises para que a grande mídia crie o efeito-refração, mascarando ou simplesmente ocultando a crise econômica sistêmica.

A cartilha do Ministério da Saúde que diz que todo aborto é crime, os telecatchs de Bolsonaro com Petrobrás e com a PF na crise da “Operação Acesso Pago” que prendeu o ex-ministro Milton Ribeiro, a demissão do presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, em meio aos escândalos pelas denúncias de assédio moral e sexual.

O “match” dessa usina de crises com a grande mídia é imediata: a contínua geração de “fatos relevantes” que, em última instância, favorece o clima de opinião pelas privatizações. Dos telecatchs do chefe do executivo contra o presidente da vez na Petrobrás às denúncias de assédio na Caixa com timing (na verdade, casos que já eram conhecidos desde 2019) o objetivo é sempre o mesmo.

Por exemplo, Paulo Guedes vive aos quatro cantos dizendo que a Caixa Econômica “vale 100 bi”, e que o Caixa Tem (o aplicativo usado para distribuir benefícios sociais) poderia ser vendido “para dar retorno à população brasileira”.

E não é à toa que, depois de queimar o fusível chamado Pedro Guimarães, o nome indicado para substituir é Daniella Marques, assessora e braço direito de Paulo Guedes, além de ex-sócia do ministro no mercado financeiro. HOW CONVEEEENIENT! Diria a Church Lady, personagem impagável de Dana Carvey no programa de humor Saturday Night Live.

O filósofo José Arthur Giannotti acreditava que a Economia era uma ciência cadente a partir de um ponto de vista epistemológico e ontológico. Hoje os tempos não são para ninharia: o objeto Econômico desaparece não mais por sutilezas hermenêuticas, mas pura e simplesmente em jogadas de prestidigitação semiótica.

 

 

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