quinta-feira, fevereiro 03, 2022

A derrota histórica do gênero feminino no filme 'Mundo em Caos'


Com uma premissa estranha e com sérios problemas nos bastidores, o filme “Mundo em Caos” (Chaos Walking, 2021, disponível na Amazon Prime) lembra até o subgênero “sci fi teen” iniciado por “Jogos Vorazes”. Colonizadores esquecidos num planeta distante têm que lidar com “O Ruído”: involuntariamente, somente os homens materializam seus pensamentos mais íntimos através de uma “nuvem” sobre as cabeças. As mulheres foram massacradas por nativos, resultando numa sociedade religiosa hipermasculinizada, armada, violenta, protofascista. E o “ruído” vira um instrumento de controle. “Mundo em Caos” é um filme peculiar, em que a premissa é melhor que o próprio filme: não só por fazer uma alusão à ideia teosófica das “formas-pensamento” como também suscita a tese central de Friedrich Engels em seu livro “Origem da Família, Propriedade Privada e Estado”: o “comunismo primitivo” cedeu lugar na História à opressão de classe e exploração do trabalho com a derrota histórica do gênero feminino. 

Como na maioria das vezes, o título em português, “Mundo em Caos”, não faz justiça ao título original, “Chaos Walking”. O filme Chaos Walking, numa tradução livre, seria “caos andando”, “caos ambulante” e assim por diante. Em Mundo em Caos (2021), na verdade o “caos ambulante” são os homens, em um estranho planeta no qual os pensamentos masculinos podem ser vistos e ouvidos pelos outros.

Vemos nas cenas os pensamentos e sentimentos dos personagens masculinos involuntariamente girando em torno das suas cabeças em uma nuvem azul-púrpura semelhante a uma guirlanda. Por exemplo, podemos observar à distância um anel de humor que paira sobre a cabeça de alguém. Também ouvimos os pensamentos individuais em trechos de narração em off, como fossem conversas com seus próprios balões de pensamentos, parecidos com as das HQs. Tudo isso é chamado de “O Ruído” pelos colonos que foram abandonados em um planeta que chamam de “Novo Mundo”.

Há cenas de multidões enfurecidas onde podemos ver seus pensamentos ruins pulsando.

“Os pensamentos são coisas”, dizia um antigo provérbio oriental, apontando para a natureza plástica dos pensamentos poderem se plasmar num mundo etérico ou plano astral. Aquilo que a Teosofia do século XIX de Blavastski e Leadbeater chamava de “formas-pensamento” que formariam um oceano de energias plasmadas invisível no qual estamos todos imersos.

Essa é a premissa atraentemente estranha de um filme que atravessou sérios problemas de produção, com a troca constante de roteiristas e diretores, extensas refilmagens e com o corte inicial que não foi liberado. Sem falar dos problemas relacionados à pandemia.

O filme se passa em um pequeno assentamento chamado Prentisstown onde só existem homens: eles fizeram parte da “primeira onda” de colonos que fugiram do planeta Terra degradado. E acabaram esquecidos, sem a aguardada “segunda onda”. 

Somos informados que todas as mulheres foram massacradas em uma guerra contra os nativos do planeta. O que restou foi uma bizarra sociedade masculina na qual o “Prefeito” construiu uma religião de hipermasculinidade forçada e ritualizada que deriva sua força no poder do autocontrole do Ruído (em maior ou menor grau para cada um), castigando a si mesmos e aos outros que, por fraqueza, não conseguem controlar os próprios pensamentos. 

Quando alguém involuntariamente expressa os sentimentos, passa logo a ser perseguido por estar “agindo como uma mulher”. O resultado é uma sociedade armada, brutalizada e protofascista.



E o detalhe é que “O Ruído” é um fenômeno eminentemente masculino naquele planeta. Ao contrário, os pensamentos femininos são silenciosos.

Há uma estória maior por trás dessa premissa que, aos poucos, Mundo em Caos vai revelando ao espectador: há outros assentamentos de colonos bem diferentes de Prentisstown, nos quais o pensamento “barulhento” masculino convive harmoniosamente com o “silêncio” feminino.

Se a estranha premissa do filme faz uma alusão explícita à hipótese sincromística das formas-pensamento, o protofascismo de uma sociedade com um governo legitimado por uma religião hipermasculinizada faz lembrar as teses de Friedrich Engels (o grande parceiro intelectual de Karl Marx)  em seu livro clássico “Origens da Família, Propriedade Privada e Estado”, de 1884 – a tese de como o “comunismo primitivo” cedeu lugar na História à opressão de classe e exploração do trabalho com a derrota histórica do gênero feminino.




O Filme

O cast de Mundo em Caos é formado por estrelas de franquias Disney: Tom Holland (Homem Aranha), que faz o jovem Todd Hewitt, e Daisy Ridley (Star Wars) que interpreta Viola, a jovem que inadvertidamente cai naquela fossa machista que representa Prentisstown. Além de Mads Nikkelsen (A Caça) que faz o Prefeito, misterioso e taciturno com seus olhares furtivos e sorrisos astutos. Este é o trio que consegue segurar um filme de roteiro fragmentado, indo muito além do material que foi passado para eles.

Viola é membro da “segunda onda” que está chegando com uma geração de atraso da Terra, depois de décadas de viagem. Junto com outros membros da expedição descem da nave em órbita, se estatelando no planeta em uma operação catastrófica. Ela é a única sobrevivente.

Assustado Todd se depara com Viola – principalmente pelo fato de que ele jamais viu uma garota antes. 

É claro que Todd a encontra e desenvolve uma queda por ela, e é apenas uma questão de tempo até que tenha que protegê-la contra uma multidão de homens, não porque a querem sexualmente. Mas porque ele representa maus augúrios para a religião salvacionista do Prefeito: ela representa a perdição e a ameaça de destruição, com seus pensamentos que não podem ser revelados aos outros. 




 Mas Viola não precisa de proteção, na verdade; ela é intuitivamente capaz de lutar pela sua destreza e inteligência. Mas precisa de Todd como um guia através da floresta para levá-la a encontrar um transmissor que sobrou de uma missão anterior, o que lhe permitirá pedir ajuda à nave que está em órbita no planeta.

Na fuga, Todd e Viola encontra uma outra vila, onde surpreendentemente mulheres e homens convivem harmoniosamente – a não ser quando vão dormir... devem ficar em quartos separados porque os sonhos masculinos são “barulhentos”...

Na fuga, tendo no encalço a milícia fortemente armada do Prefeito, Todd vai desenvolvendo o seu “Ruído” como arma diversionista: ele pode materializar pensamentos, enganando os perseguidores. Quase como as “tulpas”: a crença de que budistas tibetanos, budistas e mágicos são capazes de criar formas-pensamento extremamente poderosas, produzidas por um ato deliberado de vontade, colocando-as aos serviços e interesses do criador. Principalmente de autodefesa psíquica.




A derrota do gênero feminino – alerta de spoilers à frente

Mas, afinal, por que os nativos não massacraram as mulheres daquela vila, relativamente próxima de Prentisstown? A resposta é cruel e dilacerante para Todd, quando Viola lê o diário de sua mãe deixado para ela quando era ainda um bebê – Todd, assim como todos os jovens, cresceram sem saber ler e escrever. Para não saberem do terrível segredo: os próprios homens massacraram suas mulheres, diante da convivência insuportável de ter seus pensamentos materializados no ar. Enquanto as mulheres, conseguiam manter a privacidade dos próprios pensamentos.

Ou seja, tudo o que um homem pudesse pensar poderia se voltar contra ele mesmo. O que passou a ser visto como uma inesperada inferioridade masculina diante das mulheres.

Disso surgiu uma sociedade protofascista, armada, violenta e justificada por uma religião que mantém todos na ignorância – mas condenada a autodestruição, com o fim da reprodução sexuada.




É impossível não acompanhar as sequenciais em que é revelada a cruel verdade sem lembrar da tese central do livro “Origem da Família, Propriedade Privada e Estado” de Friedrich Engels. Para Engels, o final do “comunismo primitivo” (sociedades de coletores e caçadores), nasceu conjuntamente com a opressão de classe (na forma de escravos), com o surgimento da propriedade privada, e a opressão feminina com a subordinação da mulher ao direito paterno para garantir a transmissão de sua linhagem e propriedade.

Engels salienta que “a derrota histórica do gênero feminino” ocorreu com o advento da propriedade privada. O surgimento de um excedente nas sociedades agrícolas não só teria levado a sua apropriação desigual, como a uma desigualdade na relação entre os gêneros na partilha das tarefas da produção e reprodução da espécie, que passam a ficar separadas, cabendo às mulheres exclusivamente as funções da criação dos filhos e da casa, cada vez mais afastadas da “indústria social”. Fazendo Engels afirmar que “na família, o homem é o burguês e a mulher o proletário”. 

Disso decorre que a ordem econômica patriarcal (psiquicamente fundamentada na representação fálica do Poder do Estado, Capital e da própria mercadoria na Publicidade) está na origem da violência, guerra e opressão – a expressões do poder fálico masculino.

Mundo em Caos merecia um destino melhor com a sua premissa tão estranha e interessante – pelo menos para os padrões hollywoodianos. 

Com seus problemas de produção, acabou se adequando à onda já desatualizada de narrativas sobre jovens adultos iniciada há uma década com Jogos Vorazes – o filme tentou reembalar todos os clichês desse verdadeiro subgênero teen. 


 

Ficha Técnica 

Título: Mundo em Caos

Criadores: Doug Liman

Roteiro:  Patrick Ness, Christopher Ford

Elenco:  Tom Holland, Daisy Ridley, Mads Mikkelsen, Demián Bichir, Cynthia Erivo

Produção: 3 Arts Entertainment

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2021

País: EUA, Canadá

 

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