quarta-feira, fevereiro 23, 2022

No futuro impostos e anúncios invadirão nossos sonhos no filme 'Strawberry Mansion'


Michel Gondry se encontra com Freud. E “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” descobre a “Interpretação dos Sonhos”. Esse é o filme indie “Strawberry Mansion” (2021). Em um futuro próximo o Neuromarketing alcança o estado da arte: sem permissão, poderosos algoritmos dirigidos ao consumidor se infiltram nos sonhos das pessoas, construindo anúncios com o próprio material onírico. Além disso, todos os objetos dos sonhos são tributáveis e auditados através de um “stickair”. Um auditor fiscal vai investigar o caso de uma contribuinte que há anos vem sonhando, sem pagar impostos. Auditar seus sonhos será a chave para uma terrível descoberta sobre a natureza gnóstica da própria realidade.

 

Imagine combinar o novo clássico Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), de Michel Gondry, com a teoria dos sonhos de Sigmund Freud. O resultado é a louca narrativa de Strawberry Mansion (2021), sobre a luta de um personagem reconhecer a irrealidade do que considera ser a própria realidade e abraçar a lógica dos sonhos sobre um mundo “real” corrompido e totalitário.

Essa descrição pode fazer parecer que o filme soe bastante abstrato e inebriante. Porém, a produção da dupla de diretores e roteiristas Kentucker Audley e Albert Birney faz alusões a tendências e conceitos bem concretos.

De um lado, os interesses corporativos e consumistas do Neuromarketing - campo de estudo que pretende estudar a essência do comportamento do consumidor, mas sem ficar limitado a estudos comportamentais, sociológicos ou etnográficos – mas estudar reações neurológicas usando técnicas biométricas – eletroencefalograma, frequência cardíaca, galvânica chegando a ressonância magnética do cérebro para descobrir as áreas e conexões neuronais que reagem a determinados estímulos publicitários visuais, sonoros, olfativos e táteis.

Porém, Strawberry Mansion se passa em um futuro próximo, ano de 2035, no qual o neuromarketing foi além dos estudos das sinapses bioquímicas do cérebro – avançou para o fundo da nossa mente, no psiquismo. Mais precisamente, para o campo do imaginário, da lógica onírica dos sonhos, que, para poderosas agências de publicidade, transforma-se em mais uma mídia para a inserção de anúncios.

E do outro, o argumento da narrativa faz uma surpreendente alusão a uma parte específica da teoria dos sonhos do velho e bom Sigmund Freud: a chamada “teoria das sentinelas” que o pai da Psicanálise aborda na “Interpretação dos Sonhos”.

Para as poderosas agências de Publicidade daquele futuro próximo, viram mais um aliado para amarrar seus targets nas fronteiras entre o onírico e o real.

O resultado é que os poderosos algoritmos dirigidos ao consumidor se infiltram nos sonhos das pessoas, e são tecidos no próprio material onírico dos sonhos sem que ele possa perceber. Seria como baixar todos os comerciais dos intervalos do Super Bowl no inconsciente sem o nosso consentimento.

Acompanhando o desenvolvimento de todas essas premissas de Strawberry Mansion começamos a sentir que o filme leva ao paroxismo algo com a qual já estamos convivendo: como as estratégias invasivas da Publicidade (entre elas, o próprio Neuromarketing) estão cada vez mais sofisticadas e invisíveis.



Dessa maneira Strawberry Mansion se enquadra nas tendências das hipo-utopias no gênero ficção científica. Para os leitores não familiarizados com esse conceito, ele se distingue das conhecidas ideias de utopia e distopia.

Enquanto as distopias (cujas referências clássicas são 1984 de George Orwell ou Admirável Mundo Novo de Huxley) projetam à frente tecnologias futuristas que, de tão sofisticadas, tornam-se totalitárias, as hipo-utopias paradoxalmente ressentem-se de futuro: nada mais fazem do que projetar no “futuro” tendências atuais, extrapolando-as de maneira hiperbólica. O futuro não existe, porque nada mais é do que uma imagem cínica e paródica do presente.




O Filme

A dupla Birney e Audley evoca a desordem da lógica dos sonhos ao melhor estilo Gondriano: os cenários mudam, os efeitos sonoros aumentam e os adereços crescem e encolhem. Inicialmente, o estilo é sufocante, dando a sensação de que um simples papel de parede pode importar mais do que o próprio enredo. Um quarto é pintado de rosa sólido, com plantas da casa rosa combinando e uma vassoura rosa. Outra sala abriga uma máquina coberta de gadgets e tubos incompreensíveis, além de uma pequena tartaruga chamada Sugar Baby. 

O cenário é 2035, mas que soa como os tempos atuais. James Preble (Kentucker Audley) é um auditor fiscal carrancudo que acorda todos os dias para fazer o seu trabalho tedioso: auditar os sonhos dos contribuintes.

Nesse futuro há uma taxa de, por exemplo, 52 centavos por imaginar um balão quente nos sonhos ou um violino. Casas, carros ou qualquer outro objeto que possa fazer parte da narrativa onírica vira um gerador tributário.

Acompanhamos logo na abertura a tecnologia que grava os sonhos dos contribuintes para ser auditados, com o próprio sonho recorrente de James Preble: ele se senta em uma sala rosa (com paredes rosa, eletrodomésticos, mesa etc.) e é presenteado com um balde de frango Cap'n Kelly e uma garrafa de refrigerante Red Rocket por um alegre "amigo" (Linas Phillips), cujo único trabalho é entregar comida (a mesma comida, as mesmas marcas) e evitar que Preble se desvie do caminho esperado. Preble está tão acostumado com esse estado de coisas que nem percebe que se tornou um target de anúncios em seu espaço mais privado.




Um dispositivo ao lado da cama (“airstick”) registra tudo que é visto e experimentado nos sonhos, principalmente tudo que é tributável.

Preble observa em seus relatórios que uma contribuinte chamada Bella Isadora (Penny Fuller) não paga impostos há anos – uma artista idosa excêntrica que mora em um casarão cor de morango isolado no campo. Bella tem todos os sonhos não registrados disponíveis em sua casa. Por isso, Preble terá que catalogar todos.

O problema é que Bella não fez o upgrade obrigatório para o airstick. Por isso, ele tem todos os sonhos gravados em fitas VHS. Atônito, Preble descobre que terá um trabalho enorme – obrigatoriamente passará muitos dias no casarão, tornando-se um hóspede de Bella.

Através de uma engenhoca esquisita, presa à cabeça, feita de papel-machê, Preble “vê” os sonhos dela – na verdade, fica inserido nos sonhos como um observador participante.

Imediatamente após conhecê-la, os sonhos dele começam a mudar: a versão onírica e jovem de Bella tenta avisá-lo de algo muito importante, enquanto o seu “amigo” dos baldes de frango frito tenta impedi-la e dissuadir Preble a não a ouvir.

A etérea e adorável versão onírica de Bella (Grace Glowicki) cada vez mais confunde nosso herói, como se o conhecesse a vida toda. 

A partir daí acompanhamos muitas aventuras nos sonhos, lembrando sequências de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças. E sempre perseguido pelo “amigo”, segurando baldes de frango, gritando slogans publicitários, com o objetivo de impedir que Preble descubra a verdade e voltar a situação passiva de consumidor.  

 



As sequências tornam-se alucinantes: Preble percorre os sonhos de Bella, conhecendo-a através de suas associações e símbolos. Existem criaturas semelhantes a bolhas que aparecem repetidamente - às vezes são feitas de lama, às vezes de grama, às vezes parecem ser feitas inteiramente de fita de vídeo. 

Há ratos falantes de tamanho humano em trajes de marinheiro, tripulando um navio do tipo "Mestre e Comandante", enquanto o Capitão Preble parte para o alto mar em busca da jovem Bella. As lagartas assumem um significado enorme, assim como as beterrabas. O mundo dos sonhos sangra no real e vice-versa, levando Preble ao limiar entre sanidade e loucura, realidade e sonho.

Freud e Gnosticismo

É nessas sequências que entram as alusões a “teoria das sentinelas” de Freud. Freud é conhecido pela interpretação simbólica dos sonhos. Porém, nesse seu famoso livro, o que primeiro chamou a atenção dele foi como os conteúdos dos sonhos que tinham a ver com elaborados mecanismos de proteção do sono dos fatores perturbadores internos (desde dores de cabeça ou preocupações) ou externos (barulhos de trovões ou sons de relógios despertadores).




Por exemplo, se o despertador toca é muito comum o sonho disfarçar a campainha de alarme, tecendo com ela uma história qualquer...Você está na igreja, com os sinos tangendo; ou então num escritório, onde um telefone estridente reclama que o atendam". Dado o estímulo, o sonho cria o cenário, fornece atores e adereços para as cenas, tudo isso extraído das experiências e impressões do dia a dia de quem está dormindo. O sono é uma necessidade fisiológica e o sonho tenta protegê-lo.

É engenhoso como Strawberry Mansion transforma esse mecanismo de defesa fisiológico em ardil para aprisionar o protagonista num mundo ilusório que poderá matá-lo – como na sequência em que a casa está em chamas e, no sonho, surge na ponta do seu pé uma pequena chama. Diante dos espantados ratos marinheiros.

Mas no plano mais profundo da narrativa há uma pulsante mitologia gnóstica: a de Sophia (o Divino Feminino) que confronta o Demiurgo (o Divino Masculino). Tal qual o mito de Sophia, Belle é aquela que, inexplicavelmente, parece conhecer Preble por toda a sua vida. E tenta despertar nele a luz do conhecimento: denunciar a irrealidade até dos próprios sonhos, transformados em iscas publicitárias.

Uma tecnologia que foi desenvolvida pelo próprio filho, proprietário de uma corporação publicitária com vínculos secretos com o Estado – o Demiurgo. Tal como na mitologia gnóstica na qual Sophia (na tradição gnóstica simboliza simultaneamente o aspecto feminino de Deus e a alma humana) foi um “aeon” que foi a responsável pela transição do imaterial para o material, do numenal ao sensível, causado por uma falha – uma paixão que produziu um filho (o Demiurgo, “Yaldabaoth”, o “filho do caos”). 


 

Ficha Técnica


Título: Strawberry Mansion

Diretor: Kentucker Audley, Albert Birney

Roteiro: Kentucker Audley, Albert Birney

Elenco:  Kentucker Audley, Albert Birney, Penny Fuller, Grace Glowicki, Reed Birney

Produção: Ley Line Entertainment

Distribuição: Music Box Films

Ano: 2021

País: EUA

 

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