De repente nuvens rosas tóxicas ocupam os céus e baixam à terra, envolvendo as grandes cidades do planeta – capazes de matar humanos após dez segundos de exposição. Todos ficam aprisionados onde quer que estejam: em casa, supermercados etc. Um jovem casal acorda em seu apartamento e toma pé da situação através da TV. O que deveria ser apenas um caso de uma noite, vira a única conexão humana por anos, numa espécie de prisão domiciliar. Escrito em 2017 e filmado em 2019, a produção brasileira “A Nuvem Rosa” (2021) é assustadoramente profética ao descrever com detalhes aquilo que hoje chamamos de “novo normal”. Após a estreia do Festival de Sundance em 2020, tornou-se um sucesso de crítica nos EUA pela forma como “A Nuvem Rosa” capturou o espírito do tempo: a coincidência da pandemia (ou a nuvem tóxica) acontecer quando a mediação tecnológica era possível; os processos psíquicos de negação e normalização; a apatia diante do desastre; e o quanto a nossa percepção do que chamamos por realidade pode ser moldável.
Era para ser apenas uma parábola sobre o demasiado humano que aflora em um casal condenado a ficar aprisionado por anos juntos em um apartamento. Mas, após a sua première no Festival de Sundance em 2021, transformou-se numa assustadora antevisão de tudo que estava apenas começando: a pandemia global da Covid-19 e o lockdown que transformou totalmente a vida nas grandes cidades do planeta.
Escrito em 2017 e filmado em 2019, o filme brasileiro A Nuvem Rosa (2021) impressiona pela precisão dessa ficção científica (gênero raro aqui no Brasil) assustadoramente atmosférica e claustrofóbica da humanidade repentinamente presa após o aparecimento repentino e inexplicável de nuvens rosas tóxicas – capazes de matar após dez segundos de exposição.
Repentinamente, todos ficaram aprisionados onde quer que estivessem: supermercados, casa, trabalho etc.
Embora tenha sido escrito e rodado antes da pandemia, é incrivelmente difícil não ver A Nuvem Rosa(primeiro longa-metragem da diretora Iuli Gerbase) através do nosso ponto de vista por tudo que aconteceu nos últimos dois anos. Uma realidade enclausurada, tecnologicamente mediada, em que o outro se transformou em espectros em uma tela e a dimensão pública uma abstração.
Tomado por si próprio, o filme possui uma narrativa simples, que é a característica de uma parábola. Certamente, uma das inspirações da ideia original de A Nuvem Rosa foi a peça teatral do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, “Entre Quatro Paredes” (“Huis Clos”, 1944), conhecida pela famosa frase “o inferno são os outros” – três personagens morrem e chegam ao Inferno. Porém não há Diabo ou fornalhas. Apenas um quarto fechado no qual os protagonistas são obrigados a conviver uns com os outros.
Mas, assistindo com os olhos atuais, a parábola se torna realidade, ganhando uma inesperada vida própria: hoje conhecemos muito mais sobre o que aconteceu do que a cineasta poderia saber.
Além dos aspectos estéticos (a atmosfera criada pela fotografia e a utilização simbólica da cor rosa seja como matiz ou cor pura), A Nuvem Rosa, olhando em retrospecto, suscita muitas questões sobre o espírito do tempo, a coincidência da pandemia (ou a nuvem tóxica) acontecerem quando a mediação tecnológica era possível, o ponto de vista de classe social para uma crise coletiva, os processos psíquicos de negação, racionalização e normalização, a apatia diante do desastre, o quanto a nossa percepção do que chamamos por realidade pode ser moldável etc.
Por isso, em muitos momentos, o filme parece se tornado uma sátira desses últimos tempos. Por isso a sua estranheza hipo-utópica: transformou-se numa ficção científica paradoxalmente sem futuro. O futuro parece ser uma projeção hiperbólica de todas as mazelas que já vivemos no presente.
O Filme
A narrativa centra-se em Giovana (Renata de Lélis), uma jovem que se vê presa num futuro próximo com Yago (Eduardo Mendonça), um homem que deveria ser apenas um caso de uma noite. Em vez disso, ele se torna sua única conexão humana, primeiro por semanas, depois meses, depois anos.
Eles acordam e descobrem as circunstâncias que os obrigou a ficarem juntos: o repentino aparecimento de nuvens tóxicas de cor rosa. Pela TV são informados que é um fenômeno global inexplicável. Mas na estória, a dinâmica das nuvens é aparentemente irrelevante; tudo o que precisamos saber e que elas matam em dez segundos e não pode penetrar pelas pequenas aberturas das portas fechadas. Então ficar onde está é mais seguro.
Para Giovana e Yago, o fenômeno das nuvens a princípio parece um mero incômodo: assumem, como todos os outros, que as coisas logo se esclarecerão. Então, passam o tempo despreocupados, brincando e fazendo sexo. À medida que os dias, semanas e meses (e, eventualmente, anos) passam, os dois se veem preocupados de como será uma vida juntos.
O fenômeno aleatório e imprevisto das nuvens não simplesmente interrompeu a vida – ele a reformulou, mudou a forma como nos relacionamos não apenas com nosso ambiente, mas uns com os outros e (talvez mais importante), com o novo mundo que se configura para o futuro.
O espectador fica sabendo de alguns detalhes do que se passa no mundo exterior através dos vidros das janelas, de celulares ou da televisão, mas são poucas informações passadas. O grande destaque está focado no relacionamento desse casal e principalmente nos medos e anseios de Giovana.
Ao longo do tempo percebemos as diferentes atitudes do casal em relação a essa nova realidade: Yago consegue fazer uma espécie de pacto resignado com a situação, embora não sem ataques ocasionais de saudade e lamentações pelo mundo como costumava ser. Giovana é incapaz de fazer o mesmo e, em vez disso, passa por ciclos de tentar se forçar a aceitar a situação, reprimindo sua raiva e desespero até que inevitavelmente explode à superfície e o ciclo se repete. A espiral emocional de Giovana é o motor que impulsiona o filme.
Yago quer filhos, Giovana não. Depois que eles inevitavelmente têm um bebê – com uma parteira dando instruções do parto para Giovana por meio de uma tela de laptop – seu filho cresce sem saber nada sobre a vida que já foi. O que leva à pergunta: o que é a realidade? o mundo que Giovana e Yago conheceram ou aquele que existe agora?
Esse é o primeiro ponto de discussão suscitado pelas premissas de A Nuvem Rosa: o que entendemos por realidade é uma projeção do nosso psiquismo e não uma percepção a partir de algo ontologicamente dado. Lembrando o filme Show de Truman, no qual o protagonista, que cresceu dentro de um gigantesco reality showtelevisivo, não percebe a anomalia ótica do horizonte próximo do oceano cenográfico. Para Truman, o oceano cenográfico é a “realidade”.
E, também, para o pequeno filho do casal, a realidade dada é ver o mundo através das janelas fechadas e as nuvens são até bonitas e divertidas – enquanto para os pais é o final de um mundo tal como conheciam.
O filme faz uma descrição assustadoramente precisa daquilo que durante a pandemia Covid-19 se convencionaria chamar de “novo normal”: os personagens tentam mudar suas atividades para fazer tudo remotamente, até mesmo trabalhos que exigiam contato físico. Sites de autoajuda dão dicas aos usuários de como mudar de área profissional para se adequar a trabalhos remotos – aquilo que, por aqui, chama-se de “reinventar-se” como exortação às pessoas se adequarem ao “novo normal”.
Há passagens no filme em que Yago e Giovana assistem a telejornais que comemoraram: “caíram os números de acidentes de carros, assaltos e assassinatos”. Giovana critica: “Ora, mas ninguém sai mais de casa! Por isso os números caíram!”, questionando o viés otimista do jornalismo para ajudar os telespectadores se resignarem com a prisão domiciliar.
Mas o que impressiona mesmo é a forma como o roteiro de Iuli Gerbase consegue capturar o “espírito do tempo” – tanto na ficção (a nuvem rosa tóxica) quanto na realidade (a pandemia global), não deixa de ser sincrônico como essas crises globais surgiram no exato momento em que dispomos de mediações tecnológicas como TV, Internet, celulares, tablets, apps, redes sociais etc. Mediações que, bem ou mal, permitiram as sociedades, ou o próprio Capitalismo, continuarem funcionando razoavelmente.
Há uma evidente conveniência histórica em tudo isso – imagine se isso acontecesse 20 ou 30 anos atrás. Tão convenientemente paranoico que é inevitável começarmos a fazer conjecturas conspiratórias.
O que é digno de registro em A Nuvem Rosa é a fotografia e o trabalho com as cores, que acabam se tornando personagens ativos na narrativa. A densidade da cor rosa refletida nos rostos dos personagens, muitas vezes parece representar o estado emocional de cada um. Além disso, todo o matiz da fotografia é rosa, o que parece reforçar a sensação claustrofóbica dos personagens – uma paradoxal continuidade entre o mundo exterior e a prisão domiciliar.
E as diversas tonalidades de rosa que se manifestam nos céus do filme, entre rosa, violeta, pastel até a cor prata, corresponde exatamente às representações da psicologia das cores, tal como colocada por Eva Heller no livro “Psicologia das Cores” (Editora Olhares, 2021): aquilo que é artificial, não natural.
Ficha Técnica |
Título: A Nuvem Rosa |
Direção: Iuli Gerbase |
Roteiro: Iuli Gerbase |
Elenco: Renata de Lélis, Eduardo Mendonça, Helena Becker |
Produção: Prana Filmes |
Distribuição: O2 Filmes |
Ano: 2021 |
País: Brasil |