quarta-feira, fevereiro 09, 2022

O fantasma do passado cancela o futuro na animação 'The House'


A animação em stop-motion (uma arte que se tornou um pequeno nicho) é perfeita para se criar atmosferas pela riqueza e intensidade de detalhes que a técnica pode oferecer. Principalmente em narrativas que envolvem claustrofobia e confinamento. A animação da Netflix “The House” (2022) faz o espectador mergulhar nessa atmosfera em seus três episódios, cujo casarão em estilo georgiano é o fio condutor. Mas a sensação claustrofóbica não vem da casa, mas dos fantasmas do passado que são capazes de aprisionar as mentes dos vivos, cancelando qualquer ideia de futuro pela repetição dos mesmos vícios e posturas. Um arquiteto misterioso constrói o casarão como um “presente” a um pai de família corroído pela frustração e ressentimento. Que descobrirá da pior maneira possível as verdadeiras intenções daquele Demiurgo. Será a gênesis e o pecado original gnósticos de uma recorrência que bloqueará o presente e cancelará o futuro. 


“Aqui estão os jovens com um peso sobre seus ombros/Aqui estão os jovens, bem, onde estiveram?” (“Decades”, Joy Division)


Vivemos um lento cancelamento do futuro. Porque o fantasma do passado continua pesando sobre a consciência do presente. De pensadores como Karl Marx (“todas as gerações mortas pesam como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos”), passando pelo “eterno retorno” de Nietzsche, até chegarmos a Mark Fisher (“a sufocante sensação de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo” – leia FISHER, Mark, “Ghosts in My Life: Writings on Depression, Hauntology and lost futures”), é recorrente essa percepção de que todo o progresso tecno-industrial desse último século não foi suficiente para criar uma perspectiva sólida de futuro. 

Há sempre uma promessa não cumprida: os fantasmas do passado (aquilo que poderia ter sido) sempre assombram aquilo que ainda não é, o futuro. O passado parece ter se transformado em um assustador atavismo – o reaparecimento das mesmas características, mesmo depois de várias gerações passadas, cancelando qualquer ontologia do futuro.

Seja pela perda dos elos geracionais, amnésia social, fragmentação cultural ou decadência educacional, parece que vivemos numa espécie de tempo fora do eixo, deslocado, uma espécie de presente extenso no qual o agora perpetua aquilo que supostamente já teria passado.

Com três diretores diferentes, mas com os mesmos roteiristas, a animação The House (2022) aborda esse tema nos seus três segmentos onde cada um deles se passa na mesma casa (um grande sobrado em estilo georgiano) durante as eras de mudanças – o primeiro episódio no século XIX vitoriano; o segundo na Londres atual; e o último episódio num futuro distópico. Depois de acompanharmos o drama de uma família em dificuldades financeiras, assistimos aos outros segmentos com animais antropomórficos como protagonistas: um rato corretor de imóveis e uma gata que aluga os quartos da casa.

A animação usa a intrincada técnica do stop-motion (bonecos meticulosamente montados para depois as ligaduras das marionetes serem movidas quadro a quadro para replicar o movimento), uma arte que no cinema tornou-se um nicho para poucas produções.

Através dos espinhosos caminhos alegóricos da narrativa, acompanhamos nos quartos e andares do casarão, ao longo do tempo, retratos da perda. No episódio de abertura crianças observam sua antiga e aconchegante casa de fazenda e seu modo de vida dar lugar a uma atmosfera cavernosa e fria. No Capítulo II, ansioso para mostrar aos compradores seu extenso trabalho de reforma da casa, um rato intrépido corretor de imóveis logo descobre que não é o único morando dentro da propriedade à venda. E o capítulo final no qual acompanhamos uma grande catástrofe climática que inundou tudo ao redor da propriedade, e a gata chamada Rosa tenta apenas manter um sonho vivo.



Os títulos dos episódios são emblemáticos: “E ouvida no interior, a mentira espalhou-se”; “Depois de Perdida... A Verdade não pode ser encontrada”; “Ouvir de Novo e Procurar o Sol”. The House apresenta três estórias totalmente diferentes, porém conectadas através do casarão vitoriano que persiste através dos tempos – carregando do passado algum tipo de pavor crescente: o primeiro segmento é arrepiante, o segundo entristecedor para, no segmento final, oferecer uma possibilidade de redenção num conjunto gnóstico de protagonistas ao mesmo tempo aprisionados e apegados à casa.

A casa oferece promessas aos seus ocupantes. Mas na verdade é uma prisão. Atmosfera reforçada, principalmente, pela riqueza e intensidade de detalhes que a técnica da animação em stop-motion consegue oferecer. Permitindo que as sequências se desenvolvam de forma paciente e construtiva. No começo, criando ambientes enganosamente aconchegantes, para, aos poucos, os quartos e corredores se transformarem em arrepiantes ameaças.




O Filme

No primeiro dos três segmentos de 30 minutos (intitulados I, II e III), uma família de quatro pessoas que vivem tranquilamente no campo, quando vê sua rotina ser quebrada pela visita de alguns odiosos parentes odiosos. Eles zombam do pai, Raymond (Matthew Goode) pelas suas ambições modestas que fazem a família viver em uma casa tão pequena e rural. 

Deprimido e embriagado, Raymond sai sem rumo pela floresta quando é abordado por um arquiteto misterioso e excêntrico se oferece para construir uma nova casa luxuosa para Raymond, sua esposa e filhos. Solidária, a esposa Penny (Claudie Blakley) apoia o seu marido diante da estranha cláusula contratual que terão de assinar: que eles se mudem para lá e nunca mais saiam. 

Sua pequena filha Mabel (Mia Goth) fica horrorizada com as mudanças em seus pais quando eles se mudam para o luxuoso casarão, onde trabalhadores silenciosos estão constantemente desmontando e reconstruindo tudo ao seu redor, e refeições, roupas e todas as comodidades são fornecidas por mãos invisíveis.

Só restará a Mabel, levando no colo a irmãzinha, fugir de um pesadelo que, literalmente, irá tragar os seus pais, seduzidos e fascinados por tanto luxo e comodidades.




No segundo segmento, do diretor sueco Niki Lindroth von Bahr, os personagens são ratos antropomorfizados. Embora o interior e as linhas exteriores do casarão sejam as mesmas, parece ser um lugar totalmente diferente - uma casa arejada e espaçosa localizada no centro londrino. Um ambicioso e novato corretor de imóveis (dublado pelo músico Jarvis Cocker), faz um empréstimo claramente inviável para reformar o local para ser aberto à visitação dos possíveis compradores. Todos os luxos modernos, desde pisos de mármore importados até iluminação ambiente integrada a um aplicativo do celular, são aplicados ao velho casarão. Quando tudo parece pronto, para seu desespero, descobre que a casa está infestada de besouros e larvas difíceis de serem erradicadas. E o pior: parecem estar organizadas e têm uma outra destinação para o local – com direito a uma sequência surreal em que os insetos performam um musical no estilo Cecil B. DeMille. 

A guerra do corretor contra os insetos é cheia de ironia e inevitabilidade. As coisas acontecem com se ele estivesse tentando corrigir algum erro cósmico. É como se estivéssemos assistindo ao próprio princípio da entropia em ação. E acompanhar um protagonista exasperado à medida que os efeitos dos acontecimentos crescem exponencialmente, enquanto a sua vida financeira inevitavelmente desmorona.

O capítulo 3 apresenta as mais belas paisagens de todo o filme, ambientado em uma inundação global após algum tipo de catástrofe climática - as casas agora são representadas como pequenas ilhas em um ecossistema que ameaça engolir tudo em seu caminho. Agora acompanhamos Rose (Susan Wokoma), dessa vez uma gata que age como um humano. Ela é dona da mesma grande casa, dessa vez em péssimo estado de conservação que ela está tentando reformar sozinha em um complexo de apartamentos. Enquanto ela trabalha diariamente para colocar papel de parede em quartos e luta contra canos quebrados, seus únicos dois inquilinos, Elias (Will Sharpe) e Jen (Helena Bonham Carter), tentam convencê-la a cerca da realidade ao redor: o nível da água está subindo e tudo será destruído.

 



Todos devem fugir dali. Mas Rose pensa apenas em como substituir as tábuas dos pisos dos corredores e cobrar dos únicos inquilinos os aluguéis atrasados...

Esse episódio acaba sendo uma exploração pungente da dor da mudança e de como nos apegamos a lugares apesar de todas as mudanças dramáticas que ocorrem ao nosso redor.

A mitologia gnóstica é a linha imaginária que une os três episódios em The House: vemos protagonistas, de diversas maneiras, prisioneiros de uma casa. Seja pela frustração e ressentimento, o desespero em pagar as dívidas contraídas para vender a própria casa e o apelo pela conservação e apego em um mundo que está acabando submerso.

No primeiro episódio acompanhamos a gênese e o pecado original: o demiurgo, representado pela figura misteriosa de um arquiteto arbitrário que constrói um Paraíso imobiliário que acaba se constituindo numa armadilha. Cuja isca é a humilhação e ressentimento de Raymond: a sedução pelo poder acaba tornando-o, junto com a esposa Penny, a primeira vítima do casarão.

Nos três episódios acompanhamos sempre uma recorrência que envolve uma espécie de eterno retorno da mente dos moradores tanto no presente, passado e futuro; parecem condenados a serem absorvidos pela materialidade do casarão: no começo, a absorção literal (o casal se transforma em poltrona e cortina), para no presente o protagonista terminar os dias roendo os próprios objetos da casa. 

Mas no final, a possibilidade da redenção (a gnose?): com a ajuda de inquilinos espiritualistas e esotéricos, vencer a luta pela superação da negação psíquica e aceitar o fim do mundo, pelo menos tal como Rose conhecia. Transformando a própria casa num barco para fugir do apocalipse. 

Não é à toa que o último protagonista antropomórfico é um gato – na tradição hermética, os gatos têm significado místico desde o antigo Egito, com a deusa Bastet. Em diversas culturas, sejam celtas, persas, nórdicas ou mesmo budistas, o felino representaria a fusão entre o físico e o espiritual.

No final, a certeza de que The House é uma reflexão sobre como o passado pode ser um fantasma que aprisionaria os vivos no presente, cancelando qualquer ideia de futuro pela repetição dos mesmos vícios e posturas.


 

Ficha Técnica 

Título: The House (animação)

Diretores: Emma De Swaef, Marc James Roels, Niki Lindroth von Bahr, Paloma Baeza

Roteiro:  Enda Walsh

Elenco:  Matthew Goode, Mia Goth, Helena Bonham Carter

Produção: Nexus Studios

Distribuição: Netflix

Ano: 2022

País: Reino Unido

 

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