terça-feira, dezembro 31, 2019

Descoberta do "entrevistado onipresente" deixa jornalismo corporativo de calças na mão


“Entrevistado cativo”, “cosplay de povo”, “popular onipresente”, “entrevistado profissional”... Ele virou um hit nas redes sociais enquanto a grande mídia foi pega com as calças nas mãos – ele é a carta na manga de repórteres e a revelação do modus operandi do jornalismo atual: a “editorialização dos acontecimentos”. A fabricação de acontecimentos e entrevistas para cumprir uma pauta pré-elaborada pelas chefias de redação. Ele chama-se Henrique, aparentemente um entrevistado aleatório, mas sempre pronto para dar a opinião sobre qualquer assunto em diversos noticiosos da Globo Nordeste e em outras emissoras locais. Um “papagaio de pirata” (categoria organizada que caça links ao vivo de TV na busca de alguns minutos de fama) promovido a especialista em generalidades que sempre acerta na mosca sobre aquilo que a pauta espera que o “povo” fale. Henrique Filho é apenas a ponta folclórica de um fenômeno mais amplo: a produção de não-acontecimentos no jornalismo. Quer seguir carreira no jornalismo? Aprenda a confirmar as pautas confiadas a você pelos aquários das redações. Aprenda a encontrar a “notícia certa”.

Os leitores mais antigos do Cinegnose devem se lembrar do filme O Quarto Poder (Mad City, 1997), discutido em algumas postagens – um repórter em decadência de uma emissora local vê em uma crise de reféns em um museu a chance de cobrir um evento com repercussão em todo o país e ser promovido ao noticiário nacional da rede de Nova York.
Ele não medirá esforços para alcançar seu objetivo: no interior do museu vai manipular e controlar o desenrolar dos próprios acontecimentos para tornar o episódio local em um evento nacional. E catapultar o repórter para a emissora cabeça de rede.
Assim como em qualquer ambiente corporativo, o jornalismo é um campo hierarquizado, verticalizado, competitivo, no qual reportar notícias não é uma atividade neutra – principalmente porque a “notícia certa” pode projetar a carreira de um neófito.
Tal como no filme O Quarto Poder, é nas emissoras locais em que talvez fique mais explícita esse encontro da ambição com a busca da “notícia certa”. Principalmente no contexto do jornalismo em que o modus operandi dos anos de jornalismo de guerra (que culminou com a vitória do impeachment de 2016) levou à prática diária da “editorialização dos acontecimentos” – a fabricação de acontecimentos e entrevistas para cumprir uma pauta pré-elaborada pelas chefias de redação.
Esse é o pano de fundo do jornalismo atual (e em particular do jornalismo brasileiro) para compreender o episódio do “entrevistado aleatório” ou “entrevistado cativo” (ou ainda o “popular onipresente” e “entrevistado profissional”) flagrado por internautas numa amostragem de diversas entradas ao vivo não só de uma emissora da Globo Nordeste e também de outras emissoras locais de outras redes como a Record.



Virou um hit das redes sociais como uma espécie de carta na manga de repórteres naquelas pautas baseadas em enquetes rápidas feitas com populares nas ruas. Ele se chama Henrique Filho (ou será Souza?...) e, aparentemente, é capaz de opinar sobre qualquer coisa. A pauta é violência? Aparece o Henrique para opinar. Vista cansada? Lá está ele da rua fazendo perguntas para uma oftalmologista no estúdio do Globo Comunidade.


Editorialização dos acontecimentos

Já deu opinião sobre “um filme de terror de ontem” e até sobre economia popular e o problema do endividamento com cartões de crédito. Henrique virou um especialista em assuntos aleatórios. Henrique virou um genérico do povo ou o “cosplay de povo” para as TVs.
Henrique Filho virou um meme nas redes sociais depois de flagrada sua onipresença, quase um informante de pauta: “Idoneidade e transparência, sempre no padrão Globo de jornalismo. Grande Henrique não me deixa mentir”, tuitou um internauta – clique aqui

                  Claro que Henrique Filho parece ter sido uma daqueles “papagaios de pirata” que perseguem os links ao vivo das emissoras que, de repente, foi promovido a “informante de pauta”. Esses papagaios são “caçadores de ao vivo”, figurinhas carimbadas que se organizam, marcam pontos de encontro nas primeiras horas da manhã – monitoram os primeiros telejornais para depois seguirem às pressas para a pauta do dia – sobre esse fenômeno clique aqui.
O caso do folclórico Henrique Filho é apenas a ponta do iceberg de um fenômeno mais amplo, capaz de produzir não-acontecimentos com a intensa editorialização dos fatos.
Um exemplo flagrante disso foi o flagrante da fabricação de uma manifestação por repórteres da CNN em uma rua de Londres em 2017 - o portal de notícias norte-americano The Daily Wire flagrou em plena rua de Londres uma equipe composta por repórter, produtores e câmeras da emissora noticiosa CNN com a mão na massa: orientavam supostos muçulmanos sobre as marcações de cena e exibição de cartazes para serem o “pano de fundo” de uma manifestação com mensagens de paz e protestos contra o Estado Islâmico, em relação a um ataque (ou uma “false flag”) acontecido há poucos dias em Londres – clique aqui.
O cenário foi montado com flores e cartazes colocados estrategicamente, enquanto o repórter se transformava num verdadeiro diretor de cena.

CNN flagrada fabricando uma notícia nas ruas

O pavor do jornalista: derrubar a pauta

O principal pavor de um repórter numa entrada ao vivo é ver a sua pauta derrubada pelo acaso, pelo aleatório – ou seja, pela própria realidade. 
Esse pavor ainda aumenta com a verdadeira correia de transmissão em que se transforma a entrega da pauta do dia das chefias para os repórteres. Numa opressiva lógica dedutiva, as informações que o repórter irá garimpar em campo terá que obrigatoriamente confirmar as hipóteses implícitas para que no final se transforme em notícia editada e publicada.
Quer fazer carreira no jornalismo? Aprenda a confirmar as pautas confiadas a você pelos aquários das redações. Aprenda a encontrar a “notícia certa”.
Esse pavor misturado com a ansiedade em se dar bem na profissão já rendeu “barrigas” (tecnicamente é quando o jornalista divulga uma informação equivocada) e escândalos éticos no jornalismo brasileiro recente. O que se tornou mais evidente no período do “jornalismo de guerra”.
Um desses casos emblemáticos foi o episódio do “tem alemão no campus” no qual uma pobre repórter neófita da rádio CBN foi cobrir uma greve dos estudantes na FFLCH-USP em 2013 com a pauta da criminalização dos movimentos sociais. Ansiosa por encontrar uma evidência de crime organizado por trás de uma manifestação estudantil confundiu um simples cartaz anunciando curso de alemão para estudantes como uma mensagem cifrada da bandidagem anunciando a chegada eminente da polícia... – clique aqui.

A "barriga" do estudante atrasado do Enem

Outro exemplo? O bizarro caso do falso estudante do Enem. Naqueles anos de jornalismo de guerra a pauta da grande mídia buscar notícias comprovatórias de que o Enem era uma catástrofe sempre à beira da fraude. 
O jornal Folha de São Paulo (ao lado dos telejornais) publica a foto de um estudante desesperado tentando escalar as grades de uma faculdade depois do horário do fechamento dos portões. Ao lado, uma manchete sombria: “Quase um terço dos candidatos não fazem Enem”.
Outra barriga: o estudante era na verdade um universitário da USP que simulou tudo para fotógrafos, cinegrafistas e repórteres, ganhando uma aposta feita com amigos. Ele sabia que jornalistas estavam sempre ávidos por imagens como aquela... – clique aqui.
A figura de Henrique Filho é apenas a ponta folclórica de um movimento mais geral do jornalismo corporativo: a editorialização dos acontecimentos. É o paroxismo da produção de não-acontecimentos - certamente os incautos repórteres tentaram rotinizar e azeitar o movimento da correia de transmissão chefia-reportagem. Como? Promovendo um papagaio de pirata (já habituado ao modus operandi das enquetes de rua dos telejornais) a especialista em generalidades que sempre acerta na mosca aquilo que a pauta espera que o “povo” fale.
E mais: Henrique Filho é a confirmação de uma tese defendida por este Cinegnose – a grande mídia tornou-se um sistema tautista (tautologia + autismo midiático), autofágico e autorreferencial. 
Um gigantesco Efeito Heisenberg – a mídia não consegue mais reportar o real, transmite apenas os efeitos que ela produz ao transmitis os eventos e o esforço que as pessoas fazem para obter a atenção das câmeras e repórteres.


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