segunda-feira, dezembro 23, 2019

A invenção do não-acontecimento do Natal


Nessas épocas de festas de final de ano, não faltam as críticas de que tudo não passaria de manipulação de uma sociedade consumista. Presentes, comidas e bebidas nos entorpeceriam, fazendo-nos esquecer dos verdadeiros valores cristãos da fé, perdão e compaixão. Mas o dinheiro não arruinou o Natal: ele fez o Natal. Ao lado de outros megaeventos importados como Halloween e Black Friday, o Natal é mais uma tradição inventada a partir do século XIX nos EUA: primeiro, como invenção de um país jovem e carente de tradições e que, por isso, invejava a Europa com seus castelos e reis. E segundo, pelas lojas de departamentos a partir de 1841 – a invenção de uma narrativa mercadológica que criou, por exemplo, o embrulho natalino para sacralizar os presentes e criou o Papai Noel como figura secular de Cristo. Como o espírito natalino foi inventado, escondendo sua natureza de não-acontecimento? Isso é que o “Cinegnose” explica nessa véspera de Natal – jamais existiu o “verdadeiro Natal”.

As imagens do Natal parecem ser inerentemente nostálgicas: árvores de Natal, casas cobertas de luzes, ruas decoradas que parecem fazer alusão a velhos cartões postais... e os indefectíveis filmes clássicos repetidos todo ano na TV: se no passado eram os velhos filmes em preto e branco como O Milagre da Rua 34 (1947) ou Felicidade Não se Compra (1947) de Frank Capra, hoje temos os novos clássicos coloridos como Esqueceram de Mim ou Duro de Matar.
É um espírito que parece evocar tempos mais simples da nossa infância: diante da lista de presentes, o caos da Black Friday e das músicas de Natal que ouvimos em shoppings, sentimos nostálgicos de supostos tempos (provavelmente dos nossos avós ou até antes) em que o verdadeiro espírito natalino não era dominado pelo marketing e o Natal não era apenas consumismo.
Tempos em que o Natal era imbuído apenas pelos verdadeiros valores cristãos da caridade e do amor ao próximo.


Porém, o Cinegnose revelará um segredo: esses tempos jamais existiram! 

O Natal se coloca ao lado de outros megaeventos importados como Halloween ou Black Friday. Eventos irradiados dos EUA para todo o planeta através da sua indústria do entretenimento. Na verdade, não-acontecimentos (ou “pseudo-eventos”), invenções criadas por um país que sempre careceu de tradições e, por isso, sempre olhou com inveja o velho continente europeu com suas monarquias, castelos e toda uma tradição de séculos do folclore à literatura.
Precisando de um verniz para a sua autoafirmação como nação, os EUA criaram uma sistemática indústria da simulação para inventar tradições de segunda mão.

A invenção das famílias presidenciais como neo-monarquias norte-americanas

Um desses exemplos é a invenção da mitologia em torno da família presidencial como no caso da criação do carisma em torno da família Kennedy – na falta da história de uma família real, os relações públicas inventam o carisma das famílias presidenciais transmitido por gerações.
Ou a Re-invenção da própria História e da Ciência nos parques temáticos como Disneylândia e Epcot Center.

Papai Noel começou como uma piada...

Acredita-se que o Natal remonta aos primórdios da História e que o “Pai Natal” ou “Pai Noel” seja uma mera variante americana de alguma figura britânica atemporal.
A grande contribuição da América para o Natal veio no século XIX, da caneta de Washington Irving, um nova-iorquino mais conhecido por suas histórias Sleepy Hollow e Rip Van Winkle. A imagem moderna do Papai Noel começou na verdade como personagem em uma piada.
Achando engraçado os esforços de alguns membros bem-intencionados da Sociedade Histórica de Nova York, que procuravam criar tradições para a cidade moderna que rapidamente se expandia, Irving decidiu parodiar seus esforços. 
Em A History of New York, publicado pela primeira vez em 1809, ele creditou a São Nicolau, o tradicional portador de presentes da Europa, de ter direcionado os primeiros colonos holandeses a se estabelecerem Manhattan. 

Gravura de São Nicolau encomendada pela Sociedade Histórica de Nova York, 1810

Irving então descreveu como os colonos naturalmente gratos a seus guardiões com a cerimônia de pendurar uma meia na chaminé na véspera do dia de São Nicolau na qual a meia é sempre encontrada de manhã milagrosamente cheia. São Nicolau era descrito como capaz de cavalgar alegremente entre as copas das árvores ou sobre os telhados das casas e, de vez em quando, tirava presentes magníficos dos bolsos das calças e jogava-os pelas chaminés”. 
Irving se baseava no personagem Sinterklaas da tradição holandesa, cuja Sociedade Histórica de Nova York queria transforma-lo no Santo Padroeiro da cidade. Foi contratado um artista para desenhar uma imagem do santo para ser entregue aos convidados no primeiro jantar de aniversário de São Nicolau, organizado pela sociedade histórica. No retrato era ainda mostrado como uma figura religiosa que deixava presentes em meias junto à lareira e estava associado à recompensa pela bondade das crianças. 
Mas o “Saint Nicholas Day” não decolou como John Pintard (fundador da Sociedade Histórica de NY) queria. Mas a imagem de Anderson criada para o Papai Noel permaneceu como base para as futuras recriações.
A verdade é que até meados do século XIX, a maioria dos americanos não celebrava o Natal. Os puritanos que estabeleceram na Nova Inglaterra proibiram o Natal. Em muitas partes do país, o Natal era considerado principalmente uma desculpa para as classes mais abastadas fazerem festas barulhentas e grosseiras.

Harper's Weekly, 1871 (esquerda) e 1874.

Surge o Marketing

Então o que mudou? Por um lado, a América estava se tornando mais industrial e mais urbana. Isso causou um sentimento nostálgico no povo americano por tempos supostamente mais simples, além de uma obsessão em estabelecer tradições familiares como refúgio do mundo industrial. 
Os americanos começaram a adotar as tradições europeias do velho mundo para reunir suas famílias. As árvores de Natal foram copiadas das tradições dos imigrantes alemães, por exemplo, enquanto a velha versão do Papai Noel foi originalmente trazido pelos holandeses.
Foi aí que o marketing entrou em cena.
O grande impulsionador da propagação do Natal foi as revistas femininas e outros produtos da imprensa. Tanto as histórias quanto os anúncios nessas revistas criaram peças de histórias de Natal, muitas das quais foram cimentadas na consciência pública. Por exemplo, a popularidade das árvores de Natal remonta a uma imagem no livro de Godey's Lady's Book, a revista mais lida na época, da rainha Victoria e sua família reunidas em torno de uma ricamente decorada.
Mas o Natal definitivamente decolou na época em que as lojas de departamento começaram a crescer e viram uma incrível oportunidade de negócios na entrega de presentes de Natal. Começaram a decorar suas lojas no Natal e a usar táticas criativas de marketing para atrair compradores. Grande parte da estética que agora associamos ao Natal foi espalhada e, em alguns casos, criadas por essas lojas de departamentos.
O impacto do marketing nas tradições e estética de Natal, no entanto, não é nada comparado ao impacto das histórias e personagens de Natal. Isso é verdade quando se trata do personagem de Natal mais famoso de todo o Papai Noel.


A tradição holandesa do Papai Noel foi popularizada nos Estados Unidos pelo poema de 1822 "Uma visita de São Nicolau" (agora mais popularmente conhecido como "A noite antes do Natal"). Mas naquela época, não havia um amplo consenso sobre como exatamente o Papai Noel era. As lojas de departamento, com uma pequena ajuda das revistas da época, ajudaram a corrigir isso.
Em 1841, uma loja da Filadélfia criou um modelo em tamanho real do Papai Noel como um esforço de marketing para atrair as crianças para a loja. Isso levou a uma tendência na qual as lojas ofereciam oportunidades de ver um Papai Noel "real ao vivo", cimentando o Papai Noel como parte de nossos hábitos de compras natalinas.
A Macy's se tornou a primeira a ter o Papai Noel dentro de uma loja real em 1862, iniciando a tradição aparentemente a-histórica do bom velhinho.
Ainda assim, a aparência e a personalidade do Papai Noel não eram exatamente o que são agora. As imagens mais populares do Papai Noel nas revistas vitorianas o descreviam como "uma pequena figura semelhante a um elfo" que era muito mais sombria e séria do que estamos acostumados hoje - o casaco vermelho e a barba branca estavam geralmente lá, mas simplesmente não estava o mesmo. 
E a imagem do Papai Noel que todos temos em nossa mente agora provavelmente não seria a mesma se não fosse pelos esforços de marketing da Coca-Cola .
A Coca-Cola exibe o Papai Noel em seus anúncios desde a década de 1920, mas ele se tornou um elemento básico do marketing de festas do refrigerante em 1931. Naquela época, a Coca-Cola contratou um ilustrador chamado Haddon Sundblom para criar uma imagem de "um Papai Noel saudável" para usar em seus anúncios. O artista voltou à figura alegre descrita em "A noite antes do Natal", e o Papai Noel que conhecemos e amamos nasceu.


Papai Noel é Jesus Cristo?

Porém, toda narrativa mercadológica tem a necessidade de incorporar um importante item: o envolvimento emocional, para nos tornar menos críticos e observador. O mundo formado por lojas de departamentos, Papai Noel e trocas de presentes era ainda excessivamente materialista e cinicamente voltada apenas para as classes de maior poder aquisitivo. Era necessário sacralizar o evento do Natal, injetar nele a fé, espiritualidade e religiosidade para tornar o feriado uma data mais nobre.
Tudo começou com a separação dos presentes de Natal dos outros itens comerciais com a invenção do “embrulho de Natal”: o papel do embrulho sacralizou as mercadorias como uma dádiva envolta com ícones de grinaldas, azevinhos etc. Com o embrulho retira-se o preço, envolve o produto com cerimonialidade, criando um componente de mistério e sagrado.
Porém, o elemento decisivo foi a aproximação da figura “pagã” do Papai Noel com Jesus, fundir a polaridade materialismo/espiritualidade – o Papai Noel apresentado como figura secular de Cristo.
O pesquisador americano Russel Belk faz um interessante paralelo, mostrando como a narrativa do “bom velhinho” foi sacralizada para deslocar-se das origens pagãs e transformar-se numa deidade: 
As semelhanças entre a figura secular do Papai Noel e a figura religiosa de Cristo incluem milagres (renas voadoras, viajando para todas as casas do mundo em uma noite e, remanescente do milagre dos pães e peixes de Cristo, a sacola sem fundo de brinquedos do Papai Noel), duendes como Apóstolos, renas como animais da manjedoura, cartas para o Papai Noel como orações seculares prometendo comportamento "bom", e oferendas de biscoitos e leite como sacrifícios colocados no altar da lareira. Também é possível considerar as viagens do Papai Noel na véspera de Natal como paralelas às viagens de Cristo e as canções de Natal seculares sobre o Papai Noel como hinos. Assim como Cristo trouxe seus presentes de amor e salvação à terra e depois subiu ao céu, Papai Noel trouxe seus presentes de brinquedos e guloseimas às casas e depois subiu pela chaminé. Além disso, o Papai Noel é imortal, onisciente, sabe como as crianças se comportam e as responsabiliza por suas ações, concedendo as recompensas que somente ele pode oferecer. A crença no Papai Noel constitui fé ... O título "Papai Noel" também retém a atribuição de santidade. E tal como as imagens contemporâneas de Deus e Cristo, Papai Noel é retratado como um velho sábio e benevolente, sentado em um trono ornamentado, simbolizando seu poder e sabedoria. Ele vive na pureza branca do Polo Norte, que tem alguns paralelos com o céu (BELK, Russel"A Child's Christmas in America: Santa Claus as Deity, Consumption as Religion," In: Journal of American Culture, Spring, 1987, P. 90).
Essa aparente fusão de opostos polares (de um lado o materialismo representado pela figura corpulenta e de uma alegria pagã; e do outro a figura magra com a seriedade de um mártir espiritual) conseguiu colocar do mesmo lado tanto consumidores fascinados com o brilho natalino, quanto os críticos que denunciam o embuste do consumismo. Reivindicam o resgate dos “verdadeiros valores” do Natal: celebrar o nascimento de Jesus e os valores da ética cristã.
Porém, encarar o Natal como um não-acontecimento evoca a necessidade de uma crítica muito mais radical: o dinheiro não arruinou o Natal, na verdade ele FEZ O NATAL. 

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