Definitivamente essa é uma Copa
do Mundo curiosa: a grande mídia está nesse momento lidando com uma dupla saia
justa. De um lado, o risco de humanizar demais os russos. Afinal, tanto o
cinema como o jornalismo os celebrizaram como “RAVs” (Russos, Árabes e Vilões
em geral) – terra dos soviéticos, comunas, terroristas e hackers que mudam
resultados eleitorais de outros países. Como cobrir a Copa, evitando que eles
pareçam gente como a gente? E do outro lado, o recorde de desinteresse dos brasileiros
com o evento, divulgado pelas últimas pesquisas. Ainda o rescaldo do tiro no pé
do “Não vai ter Copa!” de 2014 e numa situação em que os brasileiros estão
pensando muito mais na própria sobrevivência. Por isso, assistimos ao esforço em
vinhetas e chamadas na TV para didaticamente tentar ensinar ao brasileiro que ele
é torcedor! E promover os jogadores (tão “alienígenas” quanto os russos) a
modelos mérito-empreendedores de sucesso para motivar a massa deprimida a sair
do buraco.
Essa Copa do
Mundo de futebol na Rússia está criando uma curiosa saia justa midiática. Na
verdade, duas saias justas que estão convergindo em um único evento.
De
início, a Rússia é um país “estranho” para a grande mídia. Depois de anos de
RAVs (russos, árabes e vilões em geral) no cinema hollywoodiano e de um viés
jornalístico que não é muito diferente da ficção cinematográfica (para o
jornalismo corporativo a Rússia é a ainda a terra dos “soviéticos”, “comunistas”,
do “terrorismo internacional”, de hackers que intervêm em eleições de outros
países, que colocaram Trump no poder dos EUA etc.), a mídia corporativa se vê
numa situação inédita: mostrar as ruas e estádios russos cheios de gente que se
parece com a gente. Eles riem, fazem festa, têm famílias, filhos e uma rotina
muito ocidental.
Mas
ao mesmo tempo, a mídia hegemônica ainda se vê obrigada a fazer o controle de
danos, o rescaldo ainda da Copa de 2014 no Brasil. Do cada vez mais
suspeitíssimo “mineiraço” de 7 X 1 da Alemanha sobre o Brasil (que caiu como
uma luva na escalada de manifestações do “Não Vai Ter Copa!” insuflado até pela
própria mídia que faturava com o evento – clique aqui) até chegar ao baixo astral atual e a sensação de
descontrole com crise econômica e desemprego (intensificado com a anomia do
locaute dos caminhoneiros), tudo levou a os brasileiros a se desinteressarem
pelo evento. Ou, no mínimo, terem que pegar no tranco para se envolverem e
começarem a torcer.
Por isso, acompanhamos um esforço didático e
pedagógico inédito em vinhetas e chamadas na TV e Internet para a Copa como se
tentassem reexplicar para os brasileiros apáticos e depressivos o que significam
a seleção, uma copa do mundo e o papel do torcedor.
É
como se tentassem fazer uma massagem cardíaca ou dar choques com um desfibrilador
em uma patuleia apática e ensimesmada, muito mais preocupada com a própria
sobrevivência diante do futuro incerto.
Um planeta chamado “Rússia”
“Um
país de comportamentos estranhos”, “fim de uma barreira histórica”, “oportunidade
de conhecer uma cultura do lado oposto ao Ocidente”, “antigo território
soviético” e assim por diante. Esse é o tom que a Globo dá à Copa na Rússia. Um
tom inédito que nem na Copa da África do Sul (com suas vuvuzelas e costumes
tribais) foi verificado.
Talvez
em 2010 o tom fosse mais “étnico”. Mas aqui em 2018 é político e de curiosidade
antropológica. Afinal, depois de décadas ensinando aos brasileiros que a Rússia
era o vilão (sem falar nos bolsominios que ainda acreditam na existência da
União Soviética e no comunismo internacional em uma Terra plana).
Como
figurar agora nas telas o país que (ao lado dos muçulmanos) é a origem de todos
os nossos medos e ameaças?
O
viés dado pelas matérias jornalísticas televisivas e impressas é o “estranho”.
Como se de repente jornalistas e cinegrafistas estivessem desembarcando em
outro planeta. O enfoque vai sobre um povo “frio” (pouco preocupado com a Copa
ou estrangeiros) a reportagens com enfoque, por assim dizer, antropológico
cultural com todos os clichês do gênero: matrioskas, a culinária, o folclore,
estações de metrô com decorações opulentas que remetem à época dos czares.
Aliás,
para a maioria das reportagens, a palavra de ordem e detalhar a beleza e
riqueza da época do czarismo nas ruas e palácios. Quanto ao período pós-revolução
bolchevique de 1917 (que mudou a face do mundo), nada mais foi do que a origem
de todos os males que assolaram o Ocidente e a própria Rússia, cujo resquício é
o ex-diretor da KGB, Vladimir Putin, “há 20 anos no poder”, reforçam os
jornalistas como evidência da “falta de liberdade de informação no país” –
Ângela Merkel está há mais de 10 anos no poder na Alemanha, mas para a mídia
corporativa isso nada mais representa do que a “Alemanha como potência europeia”.
Percebe-se
que a preocupação da grande mídia é manter a todo custo no jornalismo o clichê
RAVs cinematográfico. Com a cobertura da Copa, corre-se o risco de humanizar
demais os russos. É melhor mantê-los num ponto equidistante, assim como
observamos os leões em um Simba Safari...
Efeitos de um tiro no pé
“Sou
juntar os amigos”, “Sou gol na Copa”, “Sou música na Copa”, “Sou bandeirar na
Copa”, “Sou cornetar da Copa” são alguns exemplos de uma espécie de tipologia
weberiana de torcedores apresentado por vinheta produzida pelo canal SporTV.
Depois
do tiro no próprio pé do “Não vai ter Copa!” que se juntaram nas manifestações
de 2013 a 2016 e açodadas pela grande mídia, temos nesse momento ainda os
efeitos do rescaldo de tudo isso. A mídia corporativa não esperava –
acreditava que a Copa 2018 encontraria um Brasil vivendo o melhor dos mundos,
depois de ter dado a volta por cima.
Mas
os 53% de torcedores indiferentes à Copa, divulgado pela última pesquisa do
Datafolha (clique aqui), comprovam a queda drástica do interesse pela
seleção – superando os 36% de 2014 com toda a onda do “Não vai ter Copa!”. Nem
mesmo a cobertura ao vivo da decolagem do avião da seleção, no domingo em rede
nacional, atravessando jatos de água em verde e amarelo, conseguiu levantar o
moral da tropa.
A
vinheta do SporTV é a primeira estratégia para reverter a difícil situação em termos
de resultados comerciais – tentar doutrinar, pegar o torcedor na mão e tentar chama-lo
à sua responsabilidade. Algo inédito: espontaneamente os torcedores inventavam
seus próprios personagens (como documentado pelos velhos cinejornais do Canal
100 de Carlos Niemayer), para depois a mídia imortaliza-los em coisas como o
Museu do Futebol em São Paulo.
Tite é convocado
E
a segunda tática desesperada foi transformar o técnico Tite em um misto de personal coaching e pastor motivador. A
cada entrevista temos pitacos motivacionais proto-mérito-empreendedor,
estimulados pelos entrevistadores. Para vê-lo de olhos arregalados e
gesticulante.
Muito
do desinteresse com a seleção vem do distanciamento cada vez maior dos
jogadores com o dia-a-dia dos campeonatos do futebol brasileiro: trabalham e
vivem na Europa. E só aportam aqui nas festas que fazem parte da agenda
midiática: Carnaval e festas de final do ano – prontos para parecerem em
programas de celebridades e canais de mexericos e fofocas na Internet.
Como
lidar com isso? Transformando os jogadores da seleção como exemplos do sucesso
mérito-empreendedor. Como modelos diante do quais as massas possam se inspirar
para arrumarem alguma motivação para sair do buraco.
Como
nos revela uma outra chamada da TV Globo sobre os jogadores da seleção: “olho
prá trás e vejo o quanto foi difícil”, “a gente nunca teve pai em casa”, “minha
mãe trabalhava como doméstica”, “eu ia jogar sem almoçar”... Se estão nos
grandes clubes europeus é porque são vencedores... “Podia ser a sua história”, “podia
ser a sua família” , informa os letterings ao som de um piano em notas
cromáticas, motivacionais e melodramáticas.
Definitivamente
essa é uma Copa de exceção. Em um Estado de Exceção.
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