A velha questão permanece: como são possíveis holocaustos e genocídios,
sistemática e profissionalmente organizados seja na guerra ou em sistemas
metódicos cotidianos? Quem são essas pessoas que executam as ordens? Burocratas
que apenas obedecem superiores ou monstros frios e maus? No filme
“Experimentos” (“Experimenter”, 2016), sobre os célebres experimentos sobre
autoridade e obediência realizados pelo psicólogo social Stanley Milgram em
1961, a resposta é paradoxal: nem uma coisa e nem outra, intuiu Milgram. Para
entender o jogo da autoridade que cria ilusões, somente criando uma outra
ilusão: uma experiência de simulação no qual o voluntário era colocado em um
dilema moral – é possível obedecer ordens mesmo que confrontem convicções
íntimas? “Experimentos” mostra como o insight gnóstico muitas vezes está
presente na Ciência: a ilusão pode definir um cenário no qual a verdade pode
ser revelada – a “banalidade do mal”, que é mais cotidiana do que podemos
imaginar.
Um
homem reponde a um anúncio de jornal buscando voluntários para um experimento
em Psicologia sobre o efeito das punições nos processos de aprendizagem. Os US$
4,50 levam esse homem a um laboratório da Universidade de Yale. Ele se depara
com um pesquisador sério vestindo um imponente jaleco cinza. Pacientemente ele
explica para o homem e um outro participante o procedimento.
Um
sorteio definirá quem é o Professor e o Aluno. O Aluno ficará isolado em uma
sala, enquanto o Professor fará uma série de perguntas pré-definidas e, a cada
erro, apertará um botão que aplicará um choque elétrico inicial de 15 volts no
Aluno. A cada erro, a voltagem vai aumentando até o limite de 450 volts – carga
extremamente perigosa e potencialmente fatal.
Da
sala anexa, o homem começa a ouvir os gritos do “Aluno” a cada eletrocução. Os
gritos ficam mais altos, e o homem diz ao pesquisador que não se sente
confortável em aplicar mais castigos. “É necessário que você continue o
experimento”, diz secamente o pesquisador, com uma fisionomia grave.
Após
405 volts o “Aluno” deixa de responder. “Será que aconteceu alguma coisa com
ele?”, o homem pergunta seriamente preocupado. Mas o pesquisador assegura de
forma dúbia: “asseguro-lhe que os choques não causam nenhum dano tecidual...”.
A
máquina indica que o próximo choque será “extremamente severo”. Mas o homem
pensa: “poderia ser eu no lugar dele... um simples sorteio me livrou de estar
preso em uma cadeira elétrica”. O compenetrado pesquisador assume a
responsabilidade, e o “Professor” aciona os últimos choques potencialmente
fatais.
Essa
macabra experiência abre o filme Experimentos
(Experimenter, 2015), sobre o famoso
e controvertido “Experimento de Milgram” sobre autoridade e obediência feita
pelo psicólogo da Universidade de Yale Stanley Milgram em 1961.
Apesar da dramaticidade e da angústia real dos
“Professores” que deveriam aplicar as cargas elétricas como castigo, o
voluntário ignorava de que tudo não passava uma simulação. Nem os choques eram
de verdade e muito menos o “Aluno” era outra cobaia remunerada pelo
experimento: era um ator que acionava um gravador que disparava gritos no
interior da sala onde supostamente estaria amarrado a uma cadeira.
A verdade através da ilusão
Pelos
resultados, Milgram comprovaria o quão facilmente pessoas comuns seriam capazes
de cometer as maiores atrocidades. Como numa situação de submissão à
autoridade, pessoas comuns seriam capazes de abandonarem seus princípios morais
passando toda a responsabilidade por atos bárbaros a alguém hierarquicamente
superior. Essa pessoa veria a si própria como um mero instrumento neutro das ordens
de uma autoridade.
Esse
experimento mostrado diversas vezes no filme Experimentos até hoje sofre uma série de críticas éticas – seriam
procedimentos que submeteriam os voluntários a situações constrangedoras,
opressoras, nas quais os violentos dilemas morais poderiam resultar em
experiências traumáticas. Segundo os parâmetros de comitês reguladores atuais,
jamais essa experiência (e a sua repetição em décadas posteriores) seria
realizada.
Mas o
argumento de Milgram em sua defesa era surpreendentemente gnóstico, assim como
todo o enfoque da questão da obediência à autoridade.
A
certa altura do filme, Milgram (Peter Sarsgaard) se confronta com críticas de
que seu experimento era apenas uma trapaça: uma situação artificialmente
criada, muito longe de uma situação real. Não era uma prova científica.
“Eu
gosto de pensar nisso como uma ilusão, e não uma trapaça”, dispara Milgram. “A
ilusão tem uma função reveladora, como em um jogo. A ilusão pode definir o
cenário para a revelação, para revelar as dificuldades para se chegar à
verdade”, conclui o pesquisador.
Se o
poder ideológico da autoridade é uma ilusão, nada melhor do que combater a
ilusão com uma simulação. Se o mundo é uma ilusão, a única forma de encontrar a
verdade por trás desse véu é através de um jogo de ilusões: a simulação.
O Filme e o contexto
Experimentos é mais do que uma biografia
do psicólogo social Stanley Milgram: o filme inicia com os famosos experimentos
cujos resultados Milgram acreditava que explicariam tragédias como a barbárie
nazista – como compreender atos tão cruéis sob o álibi do “estou apenas
obedecendo ordens”?
A
narrativa deixa clara o contexto no qual os experimentos aconteceram. Em 1961
estavam em andamento os tribunais de Jerusalém, e estava sendo julgado Otto
Adolf Eichmann, oficial nazista capturado pelo Mossad (agência de inteligência
de Israel) em Buenos Aires. Ele era considerado “o arquiteto do Holocausto”.
Suas declarações impressionaram pela frieza e pelo modo como seus subordinados
seguiam cegamente suas ordens.
A virtude
de Experimentos é mostrar como a pesquisa
de Milgram se diferenciava da até então visão corrente sobre o tema da obediência:
rígidas cadeias hierárquicas, lavagem cerebral militar etc. Mas para Milgram,
qualquer situação persuasiva poderia levar alguém a abandonar seus preceitos
morais.
O que
é mais incrível nas situações apresentadas pelo filme, é que não parecia haver
qualquer causa aparente para os voluntários começarem a obedecer cegamente às
ordens do pesquisador – nenhuma relação hierárquica, familiar, forma de poder,
autoridade etc. Não, apenas um homem de jaleco cinza com uma voz asséptica
dizendo “por favor, continue... é necessário dar continuidade para que possamos
concluir o experimento...”.
Ficam explícitas as angústias e conflitos internos dos voluntários (morder os lábios,
suar, tremer, cravar as unhas na pele etc.), mas seguiam em frente até a
eletrocução fatal.
Onde está o Mal?
Didaticamente,
a narrativa detalha a descoberta de Milgram que o diferenciava do senso comum
corrente: o que ele chamou de “estado de agente” – é a própria “política do
trabalho”: numa sociedade ou cadeia de trabalho no qual o indivíduo perde a
noção do propósito do Todo. O indivíduo passa a se definir como instrumento de
realização dos desejos do outro. “Apenas faço o meu trabalho”, é o mantra de
organizações burocráticas, de trabalho superespecializado.
“Quando
cheguei já estava assim!” é uma outra variável. Em outras palavras: a conclusão
de Milgram ao final de Experimentos é
que o problema não está na autoridade em si. E muito menos em uma natureza
humana comportamental. Mas nas estruturas da própria sociedade moderna
industrial de trabalhos pequenos e especializados nos quais não podemos agir
sem um tipo de comando.
Os
experimentos foram repetidos por décadas, sempre apresentando os mesmos resultados.
Mesmo na sociedade pós-industrial em que vivemos – de serviços terceirizados e
precarizados.
Ou será que os resultados de Milgram apenas pioraram em uma organização econômica atual baseada na terceirização generalizada dos serviços e a “uberização” do chamado “capitalismo cognitivo”? – aplicativos passam a ser o intermediário entre prestação de serviço e consumidor, sem vínculos trabalhistas.
Ou será que os resultados de Milgram apenas pioraram em uma organização econômica atual baseada na terceirização generalizada dos serviços e a “uberização” do chamado “capitalismo cognitivo”? – aplicativos passam a ser o intermediário entre prestação de serviço e consumidor, sem vínculos trabalhistas.
Organizações
flexíveis nas quais jogamos a responsabilidade em organizações, aplicativos,
sociedades anônimas ou em um sistema sem rosto.
A chave da ilusão
O que
torna Experimentos interessante é
como articula a noção de “ilusão” como a chave do insight de Milgram. Em gigantescos sistemas burocráticos sem rosto
com relações mediadas por formas de comunicação vertical (do velho memorando
aos aplicativos atuais), a autoridade se diluiu em uma máquina totalitária
incompreensível. Em uma ilusão, na qual jogamos a responsabilidade como forma
de sobrevivência.
Os
dilemas morais nos quais eram jogados os voluntários eram tão reais na simulação
criada por Milgram como na vida real de organizações. A chamada “vida real” é
tão ilusória como o experimento de Milgram. Se a consciência de um Todo não
existe para o indivíduo que obedece “as ordens”, de forma análoga também a
consciência da simulação não existe para o voluntário.
Ilusão
e simulação são os conceitos-chave do filme. Tanto que o próprio filme faz em
muitos momentos um exercício metalinguístico de mostrar a si próprio como uma
ilusão: em muitas cenas, propositalmente o filme tem um aspecto teatral, no
qual percebemos o fundo das cenas como cenários ou projeção de imagens em
movimento para criar a ilusão de movimentação do carro que Milgram dirige com
sua esposa Alexandra (Winona Ryder).
Aliás,
nem o próprio Milgram, tanto no filme como na vida real, negaram sua inspiração
no incipiente gênero reality show que
surgia na TV norte-americana naquele momento, como o programa precursor
iniciado em 1948 chamado “Candid Camera” – câmeras escondidas flagravam reações
engraçadas de anônimos em situações incomuns, algumas delas envolvendo
“pegadinhas”.
Portanto,
o filme Experimentos nos mostra um
bom exemplo de como o viés da filosofia gnóstica pode perpassar em muitos
momentos a Ciência: primeiro, no insight de Milgram procurar a verdade através
da ilusão, partindo do princípio que o que chamamos de “realidade” (no caso de
Milgram, a “autoridade”) nada mais é do que um jogo de ilusões.
E
segundo, a premissa de que a questão da obediência não é comportamental
(individual), mas estrutural: na própria estrutura de trabalho (o “estado de
agente”) burocrática, hierárquica, baseada na super-especialização (e hoje na
radical terceirização e flexibilização do trabalho) e a alienação do indivíduo em relação aos
objetivos ou sentido.
Em
essência, a origem da “banalidade do mal”(Hanna Arendt) está no próprio
estranhamento do homem (alienação) nesse mundo. É a condição gnóstica humana: a
banalidade do Mal não está no homem, mas no mundo que o aprisiona.
Ficha Técnica
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Título: Experimentos
|
Diretor: Michael Almereyda
|
Roteiro: Michael
Almereyda
|
Elenco: Peter Sarsgaard,
Winona Ryder, Jim Gaffigan, John Palladino
|
Produção: BB Films
Production, FJ Productions
|
Distribuição: Magnolia
Pictures
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Ano: 2016
|
País: EUA
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