quinta-feira, março 25, 2021

As portas PsicoGnósticas dos nossos labirintos interiores no filme 'Doors'


Esse é um filme para aqueles espectadores que adoram filmes estranhos. E não se percam pelo pôster promocional do filme que sugere mais um filme daqueles com cientistas corajosos que arriscam a própria vida para salvar o planeta. Em “Doors” (2021) não há propriamente uma invasão alienígena que ponha em risco a humanidade. É muito mais um quebra-cabeças: do nada, mais de um milhão de portas aparecem em toda a Terra. Na verdade, monólitos que nos fazem lembrar de “2001” de Kubrick. Mas estamos aqui muito mais próximos de “Solaris” de Tarkovsky pela abordagem PsicoGnóstica: será que elas nos abrem para outros mundos ou dimensões? Ou são apenas buracos da toca do coelho que nos leva para os labirintos das nossas próprias mentes? 

Quando pensamos em filmes sci-fis sobre a chegada de alienígenas na Terra, logo imaginamos narrativas ao estilo invasões, guerras entre mundos, planos do espaço sideral para exterminar a humanidade etc. Ou seres avançados e altruístas que chegam até aqui com mensagens pacifistas, preocupados com a nossa capacidade de auto-destruição – ou até de involuntariamente prejudicarmos uma suposta harmonia intergaláctica.

A Chegada (Arrival, 2016), de Dennis Villeneuve, deu uma contribuição inovadora ao tema: nem batalhas, nem pacifismo. Mas a incomunicabilidade radical: a chegada de seres de outro mundo nos faria descobrir que estamos incomunicáveis no Universo – presos à nossa linguagem, simplesmente não entenderíamos o quê eles têm a nos dizer e sequer entender os seus propósitos, se é que os têm.

O mais simbólico do gênero sci-fi, 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Kubrick, substituiu a chegada de naves espaciais ameaçadoras por um monólito, como na sequência de abertura “A Aurora do Homem”. Tanto o livro de Arthur Clarke quanto o cineasta Stanley Kubrick vão desenvolver o simbolismo das “portas” – o contato com uma outra civilização seria como abrir uma porta para o além – no complexo simbolismo esotérico das portas, a passagem do domínio do profano para o sagrado. Nas religiões, o acesso à Revelação; na tradição ocultista, a passagem do acólito para a Iniciação como, p. ex., em “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll; as portas são pequenas para marcar as dificuldades da passagem do mundo profano para o plano da Iniciação.

O filme Doors (2021) é mais um exemplo da atual retomada do tema dos portai no gênero sci-fi. Um outro exemplo recente é Portals (2019) – clique aqui. O curioso é que ambos os filmes são estruturados como antologias: narrativas não episódicas dirigidas por diferentes diretores sobre o repentino aparecimento de portais em todo o planeta.

Doors tem um argumento promissor: do nada, mais de um milhão de portas aparecem em todo o planeta Terra. Elas são comprovadamente estranhas por natureza – suas superfícies se contorcem com o que parece ser um efeito de imãs sobre ferro-limalha, eles emitem sons estranhos e vozes ocasionais, eles piscam e tremem até ficarem difíceis de olhar. Pessoas que chegam perto demais são puxadas, o que imediatamente levanta questões – para onde elas vão e por quê?



Mas o filme de 81 minutos apenas responde a essas perguntas de maneiras oblíquas e confusas, por meio de um formato de antologia onde as peças do quebra-cabeça não se encaixam totalmente. O resultado é um filme estranho, no sentido surreal do termo – aqueles filmes que nos causam estranheza por fugir dos cânones do gênero.

O pôster promocional do filme engana o espectador mais incauto: sugere alguma produção épica com bravos cientistas tentando salvar a humanidade. Mas é um filme indie, de baixo orçamento, onde claramente percebemos as limitações de produção impostas pela pandemia: planos de conjunto com poucos atores e distanciados, além de muitas imagens de arquivos de ruas desertas nas regiões de lockdown – aliás, o título de um dos episódios.

De certa forma, todos os episódios convergem para a angústia seminal trazida pelo filme A Chegada: ao invés das portas serem passagens para descobrirmos novos mundos, encontramos espelhos de nós mesmos: incomunicáveis, estamos enredados na teia das nossas memórias, desejos, medos e frustrações.




O Filme

A história se divide em quatro segmentos. No primeiro, “Lockdown”, dirigido por Jeff Desom, quatro alunos do ensino médio, isolados em uma biblioteca para fazer uma prova, lidam com o aparecimento inicial de uma porta em sua escola. No segundo segmento, mais desenvolvido, “Knockers”, dirigido por Saman Kesh, três voluntários entram por uma porta e confrontam o que está do outro lado. No terceiro, “Lamaj”, dirigido por Dugan O'Neal, um homem isolado na floresta faz experimentos independente com uma porta, usando um sistema de som para tentar se comunicar com os supostos seres alienígenas do outro lado. O quarto segmento não tem título ou créditos próprios, mas apresenta uma emissora independente entrevistando um pesquisador confuso que explica sua perspectiva sobre os estranhos fenômenos.

A não ser por uma locutor que, em off, faz a ligação entre os episódios, chamado Martin Midnight (David Hemphill), que adiciona uma narração sarcástica de rádio a alguns dos segmentos, os personagens não têm continuidade de uma história para outra à medida que o filme avança no tempo. “Lockdown” acontece no primeiro dia do fenômeno das portas, “Knockers” é 15 dias, e “Lamaj” é meses depois, enquanto o quarto segmento, sem nome, parece não fixado no tempo. 

A progressão é a única maneira que os telespectadores podem acompanhar como as portas mudaram a sociedade, uma vez que todos esses segmentos são isolados, e apenas “Knockers” dá algumas breves respostas sobre o que há do outro lado das portas.




“Knockers” e “Lamaj” parecem ser a espinha dorsal de Doors: knockers é como são chamados os voluntários que assumem a missão de atravessar as portas para desbravarem o que há do outro lado, dentro do exíguo tempo de 12 minutos. Se excederem esse tempo, entrarão numa espécie de psicose: se perderão em suas própria memórias e medos, que estão se materializando do outro lado em sucessivos cômodos com mais portas. Formando uma espécie de labirinto interno, mental.

Uma aventura perigosa, quando somos informados em um dos episódios de que praticamente metade da população da Terra desapareceu através dessas portas.

E  em Lamaj, um cientista chamado Jamal (que foi expulso da comunidade científica por suas ideias heterodoxas) criar uma mesa de som capaz de se comunicar com as entidades das portas. Tudo é oblíquo: aparentemente são “coletores” que “arquivam” os planetas a partir da observação de “seres sensíveis”. O objetivo seria dar um “refresh” na humanidade – termo ambíguo: reiniciar? Revigorar? Reanimar?

Embora Doors, assim como o Portals, relembre o tema dos monólitos de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, o filme está muito mais próximo de Solaris (1972), do diretor russo Andrei Tarkovsky. 




A antologia de Doors vai pelo caminho PsicoGnóstico (vemos o protagonista como prisioneiro em uma prisão interior, psíquica ou onírica. Filmes como Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, AfterDeathVanilla Sky ou Stay acompanham personagens que, sem saberem, estão presos nas próprias memórias da mente, em um limbo entre a vida e a morte ou em “sonhos lúcidos”): principalmente no episódio “Knockers”, os portais não são capazes de nos fazer abrir para novos mundos. Tudo o que conseguimos e nos aprisionarmos ainda mais nos corredores e cômodos que dividem a nossa mente. Há alienígenas, há portas interdimensionais. Mas todos esses tropos do gênero sci-fi são meros pretextos para uma viagem interna, no nosso próprio psiquismo. 

Prisioneiros na nossa linguagem e na nossa mente, tornamo-nos solitários no Universo: somos incapazes da comunicação ou compreensão com qualquer alteridade.  


 

Ficha Técnica 

Título: Doors

Diretores: Saman Kesh, Jeff Desom, Dugan O’Neal

Roteiro: Chris White, Saman Kesh, Jeff Desom

Elenco: Kathy Khanh, Julianne Colins, Aric Floyd, Rory Anne Dahl, Kyp Malone

Produção: Bloody Disgusting, BoulderLight Pictures

Distribuição:  Epic Pictures Group

Ano: 2021

País: EUA

 

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