A produção Netflix “Rebirth” (2016) é mais uma dentro da recente onda
de filmes sobre seitas ou cultos. Aos fazer constantes alusões a clássicos como
“Vidas Jogo”, “Clube da Luta” e à série “Black Mirror”, o filme em alguns momentos
torna-se previsível. Mas a grande virtude de “Rebirth” é mostrar como na
atualidade as seitas estão se “liquefazendo” – deixam de serem exclusivas a
grupos sectários místicos ou religiosos para se tornarem ferramentas
motivacionais nas empresas, marketing e estratégia de vendas. Técnicas de
manipulação como “breaking sessions”, “temor e intimidação”, “controle do
tempo”, “love bombing” etc. integram-se ao cotidiano de empresas e marketing de
rede. Enquanto assistimos na TV notícias sobre líderes malucos que levam grupos
ao suicídio, sem sabermos podemos estar trabalhando agora mesmo em uma seita.
Sempre
quando falamos sobre seitas vem à mente a imagem de um bando de malucos
liderado por alguém ainda mais insano cujas lembranças remetem a figuras como
Reverendo Moon, Jim Jones ou maníacos assassinos como Charles Manson. Muitas
vezes com um script que prevê um suicídio coletivo final, como na seita Porta
do Paraíso em 1997, nos EUA, cuja promessa era de que as almas dos iniciados embarcariam
em uma nave espacial próxima ao cometa Hale-Bop que passava nas cercanias da
Terra.
Mas hoje esse conceito de seita está cada vez mais, por
assim dizer, “líquido”, numa era de modernidade
líquida, como denominava o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Parece que as
seitas estão deixando os seus nichos místicos e religiosos para se espalharem
no mundo secular corporativo e das empresas de marketing de nível e de rede.
O que dizer então de corporações nas quais são afixados
nas paredes quadros com “Objetivos, Valores, Princípios e Missão” da empresa –
noções tão escorregadias e motivacionais que servem para qualquer interpretação
pelo CEO da vez. Ou ainda de reuniões motivacionais com direito a roda, mãos
dadas e todo mundo gritando e repetindo juntos: “Herbalife!”.
Em postagem anterior o Cinegnose detalhou os dez sinais de que você pode estar, sem saber,
participando de uma seita ou culto – clique aqui. Cada um desses sinais pode
ser confirmado na produção Netflix Rebirth
(2016), dirigido e escrito por Karl Mueller. Um thriller psicológico que parece
continuar a tendência de filmes recentes sobre o tema como Martha Marcy May Marlene (2011), Sound of My Voice (2011), O Mestre (2012), The Invitation (2015), entre outros.
Mas Rebirth faz
também competentes alusões e releituras de sequência de Vidas em Jogo (The Game,
1997), cenas abusivas em sala de aula como em Whiplash (de onde emula a insistente trilha de bateria que
acompanham as cenas tensas) e o mergulho no interior de uma seita terrorista antissistema
de Clube da Luta, permeado com muitos
momentos em que entramos numa atmosfera similar à série de Charlie Brooker, Black Mirror.
A liquidez da ideia de seita
O foco de Mueller é idêntico ao de Vidas em Jogo: um protagonista, bem-sucedido e vivendo uma típica
vida de subúrbio de classe média alta, é convidado a participar de uma espécie
de um “seminário motivacional” (pelo menos ele acredita nisso) no qual aos
poucos os limites entre um jogo de autoconhecimento e transformação pessoal
conhecido como “Rebirth” começa a se confundir com a realidade, tornando-se
ameaçador e abusivo. Ou não? Ou se tudo não passa de resistência de um
psiquismo reacionário de alguém ainda apegado ao materialismo e ao emprego que tanto
odeia?
O
interessante em Rebirth é essa
“liquefação” da ideia de seita nos tempos atuais: de alguma coisa sectária,
estranha, para coisas na atualidade aparentemente amigáveis, com um discurso a
primeira vista humanista de crítica à sociedade, prometendo ao egresso
crescimento, autoconhecimento. Mas, por outro lado, dinheiro e conquistas
materiais, como qualquer iniciativa do mundo materialista que tanto criticam.
Uma
linguagem que lembra em muitos aspectos a orwelliana “novilíngua” baseada em
verdadeiros oxímoros: você é livre para sair da seita, mas... jamais sairá;
você se libertará da prisão do materialismo... mas poderá ganhar dinheiro com
isso, e assim por diante.
Mas a
grande virtude de Rebirth é mostrar
com o fenômeno atual da liquefação das seitas é o outro lado da moeda do tédio
e insatisfação com as nossas vidas familiares e profissionais. Basta uma
escapadela da rotina (assim como a infidelidade no casamento) em um final da
semana, para encontrar uma seita que dirá exatamente aquilo que você sempre
sentiu... até aqueles dez sinais te envolverem a tal ponto que ficção e
realidade, dentro e fora, verdade e mentira se misturarem a tal ponto que as
diferenças se tornam irrelevantes.
O Filme
Kyle (Fran Kranz) é um típico personagem de
classe média alta vivendo em uma grande casa de subúrbio com sua esposa e
filha. Trabalha como um analista de redes sociais para um banco. O filme abre
mostrando a monótona e previsível vida de Kyle – confortável, afluente, porém
entediada.
Mas
logo tudo é interrompido com a inesperada visita de um antigo amigo de
faculdade chamado Zack (Adam Goldberg). Zack pede para Kyle cancelar todos os
compromissos de final de semana para participar com ele em algo chamado
“Rebirth” (“Renascer”), que ele só descreve como “uma experiência”. Depois de
sucumbir a sentimentos nostálgicos dos tempos universitários (sem falar na
atração por um evento inesperado na sua vida monótona) Kyle aceita o convite do
amigo.
Logo
as coisas ficam estranhas: Kyle descobre que o hotel em que se hospeda está
cheio de pistas que o conduz a um ônibus lotado no qual todos devem entregar
seus celulares e usar vendas nos olhos até chegarem ao destino – um grande
sobrado aparentemente abandonado.
Kyle e
os outros passageiros são levados a um porão onde um homem (Steve Agee) faz um
discurso anti-establishment (todos estão alí para deixarem de ser “zumbis” nas
suas vidas) sobre a filosofia “Rebirth”. São explicadas as regras, lembrando
muito a sequência de Tyler Durden em O Clube da Luta. Porém, sem luta e
violência.
Aliás,
as únicas ameaças que Kyle confrontará serão as manipulações psicológicas e uma
tensa atmosfera sexual e de imprevisibilidade – uma linda mulher que o atrai à
“sala dos desejos”, para depois entrar em uma sala na qual um grupo de apoio é
atormentado psicologicamente por um outro líder.
Todos
repetem para Kyle uma das regras de Rebirth: “você poderá sair quando quiser”.
Mas ele se perde em salas e corredores escuros e labirínticos. E ninguém parece
disposto a informar onde é a saída de volta para o ônibus que trouxe todos para
lá.
O que
parecia mais um seminário motivacional que ocuparia um final de semana,
torna-se para Kyle um jogo perigoso no qual a cada pergunta que faça, todos os
líderes do Rebirth respondem com outras perguntas. O jogo é claro: torna-lo tão
paranoico que não consiga distinguir realidade da fantasia, até quebrar todas
as resistências. Principalmente porque falsas pistas parecem ser espalhadas
para que Kyle entre sempre em novas salas com situações cada vez mais bizarras.
Uma sociologia das seitas
Seitas
e cultos passaram a ser objetos de estudos sociológicos a partir dos estudos de
Howard Becker na década de 1930. Usualmente eram identificados três tipos de
comportamentos religiosos: na igreja, em grupos sectários e cultos místicos.
Mas Becker encontrou um quarto tipo que surgia naquele momento: “sectos” que
cultivavam crenças de natureza pessoal ou privada.
Esses
“sectos” coincidiam com o crescimento das filosofias de autoajuda a partir da
crença na salvação pelo desenvolvimento das potencialidades individuais. Seitas
que começaram a explorar cada vez mais estranhas misturas de noções dispersas
da psicologia, psicanálise, misticismo e esoterismo. E na atualidade, com o
acréscimo da vulgarização de conceitos das neurociências.
Não
tardou para essas verdadeiras seitas motivacionais se transformarem no
paroxismo de uma sociedade competitiva: das crenças de cunho pessoal para o
sucesso, transformaram-se em ferramentas corporativas e de marketing – das
técnicas motivacionais em organizações até as estratégias de marketing de rede
e pirâmides de vendas de produtos mais variados.
Exercício metalinguístico – alerta de spoilers à frente
Nessa
perspectiva, o filme Rebirth torna-se
interessante e diferente de outras produções em torno do tema. Em um exercício
metalinguístico, a narrativa repentinamente se torna parecida com os vídeos
promocionais de Tom Cruise para a seita Cientologia. Acompanhamos a liquefação
da seita Rebirth – de discurso antissistema contra a suposta “sociedade zumbi”
se converte em mais uma ferramenta mercadológica em uma sociedade em que tudo
está à venda. Até o discurso anti-tudo.
Rebirth didaticamente apresenta todas as
estratégias de envolvimento de uma seita: exclusivismo (nós temos a Verdade,
eles são zumbis), temor e intimidação (“breaking sessions”, isolamento,
humilhação), “Love Bombing” (tensão sexual, novos amigos e amor condicional),
controle de informação (celulares apreendidos), linguagem carregada de jargões
(“feto”, “zumbis” etc.), controle do tempo (olhos vendados) etc.
Por
isso, Rebirth nos dá o que pensar:
até que ponto todas essas técnicas de manipulação das seitas já foram
incorporadas (ou liquefeitas) nas empresas e estratégias de vendas?
Ficha Técnica
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Título: Rebirth
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Diretor: Karl Mueller
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Roteiro: Karl
Mueller
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Elenco: Fran Kranz, Adam
Goldberg, Nicky Whelan, Andrew J. West, Kat Foster
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Produção: Campfire,
Heretic Films
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Distribuição: Netflix
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Ano: 2016
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País: EUA
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