Esse curta metragem é para cinéfilos aventureiros e corajosos. Numa
parceria entre o escritor norte-americano “beatnik” William Burroughs e o
distribuidor de filmes de terror B Anthony Balch, o curta “The Cut-Ups” (1966)
foi exibido por duas semanas em Londres naquele ano, causando uma
“desorientação de sentidos” na plateia pega de surpresa. Pessoas corriam da
sala de projeção largando seus pertences, com sensações de náusea, nojo e desorientação.
Burroughs conhecia a técnica dadaísta do “cut-up” (recorte) de justaposição
aleatória de recortes. Então, o escritor resolveu aplicar em outras mídias como
fitas de áudio e cinema. Para ele, a
técnica (muito usada depois por compositores do rock como David
Bowie) ajudaria a nos libertarmos das formas de controle da linguagem que nos
tranca em formas tradicionais de pensamento. Seria a saída para uma questão
semiótica: se o que chamamos de real é apenas o signo do real, o que existe lá
fora, para além dos signos?
Quando
se estuda Semiótica passa-se então a compreender a angústia de artistas, em
particular poetas e escritores: se quando olhamos para o mundo não vemos ou
sentimos o real, mas os signos do real, o que então existe lá
fora? O que existe fora das fronteiras dos signos? Como apreender através dos
signos aquilo que existe fora dele? Se para a Semiótica o mundo como
compreendemos é constituído por rede intransitiva de signos, o que há fora
dessa rede?
Como
então apreender o inapreensível. Como conhecer o incognoscível? Essa angústia
toma os artistas desde o movimento do Romantismo nos séculos XVIII-XIX: como
nomear uma realidade difusa, fluida e relativa através de conceitos e palavras
cujos sentidos se organizam por meio de pares opostos (plenitude/vazio,
belo/feio, bom/mau etc.)?
Na verdade, uma questão que já estava lá no Gnosticismo
de pensadores como Basilides que propunha para escapar dessa rede um singular
estado de consciência: o silêncio, o estado de “suspensão”, o
esvaziamento da mente por meio da suspensão de toda atividade dos mecanismos de
abstração da linguagem - diz-se que os discípulos de Basilides eram obrigados,
como ritual de iniciação, a ficarem em silêncio por três anos...
Tristan Tzara e Wiiliam Burroughs |
Escritores de vanguarda como o beatnik e transgressor norte-americano
William Burroughs (1914-1997) argumentava que a linguagem era uma forma de
controle que nos trancava em formas tradicionais de pensamento.
Ou ainda, um pouco mais atrás no tempo, Tristan Tzara (1896-1963) um dos
iniciadores do movimento Dadaísta), acreditava que fora da linguagem estava o
absurdo do mundo que os signos encobriam.
Mas se o gnóstico Basilides propunha o silêncio, ao contrário, Tzara
propunha o non sense, a desconstrução da linguagem por meio da técnica do “Cut-UP”
(“recorte”) que e em 1920 sugeriu no texto “Como fazer um poema dadaísta”:
Pegue um jornal
Pegue tesouras
Escolha do jornal algum artigo do tamanho que você gostaria para o seu poema
Recorte o artigo
Em seguida, cuidadosamente recorte as palavras que formam esse artigo e as coloque em uma sacola
Sacuda-a gentilmente
Na sequência pegue cada recorte, um seguido do outro
Copie [as palavras] conscienciosamente na ordem em que elas deixaram a sacola
O poema se assemelhará a você
E aí está você – um autor infinitamente original, de sensibilidade encantadora, embora não apreciado pelo vulgar rebanho
O Curta
William
Burroughs foi um dos artistas que resgatou essa técnica a partir de 1959. Via
no cut up uma forma de neutralização dos controles da linguagem com novas e
inesperadas justaposições. Mais além, Burroughs começou a utilizar a técnicas
em outras mídias como fitas de áudio. Até chegar ao cinema.
O curta The Cut-Ups (1966) é provavelmente a
incursão mais conhecida de Burroughs em um filme experimental. Produzido em
parceria com o distribuidor de filmes B de horror, Anthony Balch, o filme
causou uma grande controvérsia.
O curta foi
exibido pela primeira vez na Cinephone, Oxford Street, Lodres, em 1966. A
projeção provocou no público uma profunda confusão sensorial com reações que
foram do nojo, náuseas e desorientação. As pessoas simplesmente fugiam do
cinema, deixando para trás coisas estranhas como sacos, calças, sapatos e
casacos. Evidências de uma completa “desorientação dos sentidos”, como Burrough
avaliou na época.
The Cut-Ups apresenta planos de câmera aleatórios e repetitivos de
Burroughs e de um artista surrealista canadense chamado Brion Gysin, em Nova
York, Londres e Tânger, Marrocos, entre 1961 e 1965. Tudo é non sense com pouca consideração para
sintaxe ou conteúdo das imagens.
E o áudio é
uma conversa cut-up entre eles com
palavras como “Sim”, “Olá”, “O mesmo para você”, “Veja esse retrato”, “Será que
ele está persistindo?” etc., em loop de novo e de novo...
O curta é
uma experiência hipnotizante. A mente tenta dar um sentido ao fluxo caótico de
imagens. Parece que assistimos a imagens oníricas que de alguma forma entraram
em curto-circuito.
Muitos
espectadores declararam que se sentiram doentes, outros apavorados. E muitos
pedindo o dinheiro do bilhete de volta.
The Cut-Ups ficou em exibição por duas
semanas, repetindo-se as mesmas reações de desorientação (a reação mais
instintiva) e indignação pelo dinheiro desperdiçado (a reação racionalizante
que procura dar um sentido financeiro, já que o cinematográfico não foi
possível).
Cinema como experiência sensorial
Os primeiros
teóricos do cinema como Eisenstein, Lindgren e Arnheim acreditavam que para o cinema ser aceito como arte
deveria evitar ser uma mera representação a realidade. Liberá-lo da necessidade
de contar uma estória. Surrealistas e dadaístas, e em certa medida até Chaplin
ao questionar a necessidade de sonorização e realismo, acreditavam que o cinema
deveria ser uma experiência muito mais sensorial do que narrativa.
Isso já
estaria evidente com a reação do público ao assistir à primeira projeção
cinematográfica dos irmão Lumière: A
Chegada de um Trem à Estação da Ciotat (1985) – muitos espectadores fugiram
para o fundo da sala com medo de serem atropelados.
Mas a
narrativa se sobrepôs às experiências sensoriais. Mesmo quando os nossos
sentidos são explorados (3D, 4D, Dolby Stereo, Imax etc.), ainda são submetidos
à necessidade narrativa. Que, como vimos em postagem anterior aqui no
Cinegnose, é submetida ao clichê de “quebra-da-ordem-retorno-à-ordem” para
amarrar o nosso retorno à vida cotidiana, assim que sairmos do cinema – sobre
isso, clique aqui.
Vertigem,
náusea, desorientação e medo talvez sejam tudo aquilo que nos espera fora da
rede dos signos que orientam o nosso senso de realidade. São nossos mecanismos
de defesa orgânicos e racionais.
A
experiência é: superado esse estágio inicial, o que encontraremos?
Assista ao curta abaixo por sua conta e risco. Mas não digam que esse humilde blogueiro não
avisou...