domingo, junho 03, 2018

Curta da semana: "The Cut-Ups" - o filme que fez pesoas fugirem desorientadas do cinema


Esse curta metragem é para cinéfilos aventureiros e corajosos. Numa parceria entre o escritor norte-americano “beatnik” William Burroughs e o distribuidor de filmes de terror B Anthony Balch, o curta “The Cut-Ups” (1966) foi exibido por duas semanas em Londres naquele ano, causando uma “desorientação de sentidos” na plateia pega de surpresa. Pessoas corriam da sala de projeção largando seus pertences, com sensações de náusea, nojo e desorientação. Burroughs conhecia a técnica dadaísta do “cut-up” (recorte) de justaposição aleatória de recortes. Então, o escritor resolveu aplicar em outras mídias como fitas de áudio e cinema. Para ele,  a técnica (muito usada depois por compositores do rock como David Bowie) ajudaria a nos libertarmos das formas de controle da linguagem que nos tranca em formas tradicionais de pensamento. Seria a saída para uma questão semiótica: se o que chamamos de real é apenas o signo do real, o que existe lá fora, para além dos signos?

Quando se estuda Semiótica passa-se então a compreender a angústia de artistas, em particular poetas e escritores: se quando olhamos para o mundo não vemos ou sentimos o real, mas os signos do real, o que então existe lá fora? O que existe fora das fronteiras dos signos? Como apreender através dos signos aquilo que existe fora dele? Se para a Semiótica o mundo como compreendemos é constituído por rede intransitiva de signos, o que há fora dessa rede?

Como então apreender o inapreensível. Como conhecer o incognoscível? Essa angústia toma os artistas desde o movimento do Romantismo nos séculos XVIII-XIX: como nomear uma realidade difusa, fluida e relativa através de conceitos e palavras cujos sentidos se organizam por meio de pares opostos (plenitude/vazio, belo/feio, bom/mau etc.)?

Na verdade, uma questão que já estava lá no Gnosticismo de pensadores como Basilides que propunha para escapar dessa rede um singular estado de consciência: o silêncio, o estado de “suspensão”, o esvaziamento da mente por meio da suspensão de toda atividade dos mecanismos de abstração da linguagem - diz-se que os discípulos de Basilides eram obrigados, como ritual de iniciação, a ficarem em silêncio por três anos...

Tristan Tzara e Wiiliam Burroughs

Escritores de vanguarda como o beatnik e transgressor norte-americano William Burroughs (1914-1997) argumentava que a linguagem era uma forma de controle que nos trancava em formas tradicionais de pensamento.

Ou ainda, um pouco mais atrás no tempo, Tristan Tzara (1896-1963) um dos iniciadores do movimento Dadaísta), acreditava que fora da linguagem estava o absurdo do mundo que os signos encobriam.

Mas se o gnóstico Basilides propunha o silêncio, ao contrário, Tzara propunha o non sense, a desconstrução da linguagem por meio da técnica do “Cut-UP” (“recorte”) que e em 1920 sugeriu no texto “Como fazer um poema dadaísta”:

Pegue um jornal
Pegue tesouras
Escolha do jornal algum artigo do tamanho que você gostaria para o seu poema
Recorte o artigo
Em seguida, cuidadosamente recorte as palavras que formam esse artigo e as coloque em uma sacola
Sacuda-a gentilmente
Na sequência pegue cada recorte, um seguido do outro
Copie [as palavras] conscienciosamente na ordem em que elas deixaram a sacola
O poema se assemelhará a você
E aí está você – um autor infinitamente original, de sensibilidade encantadora, embora não apreciado pelo vulgar rebanho

O Curta


William Burroughs foi um dos artistas que resgatou essa técnica a partir de 1959. Via no cut up uma forma de neutralização dos controles da linguagem com novas e inesperadas justaposições. Mais além, Burroughs começou a utilizar a técnicas em outras mídias como fitas de áudio. Até chegar ao cinema.

O curta The Cut-Ups (1966) é provavelmente a incursão mais conhecida de Burroughs em um filme experimental. Produzido em parceria com o distribuidor de filmes B de horror, Anthony Balch, o filme causou uma grande controvérsia.

O curta foi exibido pela primeira vez na Cinephone, Oxford Street, Lodres, em 1966. A projeção provocou no público uma profunda confusão sensorial com reações que foram do nojo, náuseas e desorientação. As pessoas simplesmente fugiam do cinema, deixando para trás coisas estranhas como sacos, calças, sapatos e casacos. Evidências de uma completa “desorientação dos sentidos”, como Burrough avaliou na época.

The Cut-Ups apresenta planos de câmera aleatórios e repetitivos de Burroughs e de um artista surrealista canadense chamado Brion Gysin, em Nova York, Londres e Tânger, Marrocos, entre 1961 e 1965. Tudo é non sense com pouca consideração para sintaxe ou conteúdo das imagens.

E o áudio é uma conversa cut-up entre eles com palavras como “Sim”, “Olá”, “O mesmo para você”, “Veja esse retrato”, “Será que ele está persistindo?” etc., em loop de novo e de novo...


O curta é uma experiência hipnotizante. A mente tenta dar um sentido ao fluxo caótico de imagens. Parece que assistimos a imagens oníricas que de alguma forma entraram em curto-circuito.

Muitos espectadores declararam que se sentiram doentes, outros apavorados. E muitos pedindo o dinheiro do bilhete de volta.

The Cut-Ups ficou em exibição por duas semanas, repetindo-se as mesmas reações de desorientação (a reação mais instintiva) e indignação pelo dinheiro desperdiçado (a reação racionalizante que procura dar um sentido financeiro, já que o cinematográfico não foi possível).

Cinema como experiência sensorial


Os primeiros teóricos do cinema como Eisenstein, Lindgren e Arnheim acreditavam que para o cinema ser aceito como arte deveria evitar ser uma mera representação a realidade. Liberá-lo da necessidade de contar uma estória. Surrealistas e dadaístas, e em certa medida até Chaplin ao questionar a necessidade de sonorização e realismo, acreditavam que o cinema deveria ser uma experiência muito mais sensorial do que narrativa.


Isso já estaria evidente com a reação do público ao assistir à primeira projeção cinematográfica dos irmão Lumière: A Chegada de um Trem à Estação da Ciotat (1985) – muitos espectadores fugiram para o fundo da sala com medo de serem atropelados.

Mas a narrativa se sobrepôs às experiências sensoriais. Mesmo quando os nossos sentidos são explorados (3D, 4D, Dolby Stereo, Imax etc.), ainda são submetidos à necessidade narrativa. Que, como vimos em postagem anterior aqui no Cinegnose, é submetida ao clichê de “quebra-da-ordem-retorno-à-ordem” para amarrar o nosso retorno à vida cotidiana, assim que sairmos do cinema – sobre isso, clique aqui.

Vertigem, náusea, desorientação e medo talvez sejam tudo aquilo que nos espera fora da rede dos signos que orientam o nosso senso de realidade. São nossos mecanismos de defesa orgânicos e racionais.

A experiência é: superado esse estágio inicial, o que encontraremos?

Assista ao curta abaixo por sua conta e risco. Mas não digam que esse humilde blogueiro não avisou...

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