Considerado por muitos o maior mistério não resolvido da Internet,
“Cicada 3301” consiste num conjunto de quebra-cabeças lógicos envolvendo
criptografia e esteganografia publicados na Internet desde 2012 com o suposto propósito de uma misteriosa organização recrutar as pessoas mais inteligentes
do planeta. Mas para quê? CIA? NSA? Uma Sociedade Secreta? O fato é que vem
mobilizando uma massa de jovens gênios matemáticos que tentam resolver um
labirinto de enigmas dentro de enigmas. Lembra a aventura de Alan Turing em
decifrar a máquina Enigma dos nazistas, porém sem o heroísmo e glória do
passado. Hoje, apenas um sintoma da filosofia minimalista do “I did It!” (“Eu
consegui!”) na cultura atual – lógica fetichista de delírio no vazio e
exaltação de uma façanha sem consequência. Se isso for verdade, Cicada 3301
pode ser uma armadilha: gênios matemáticos entregando o “modus operandi” hacker
ativista como Big Data para a futura Matrix. Uma Internet recém-senciente, como
uma gigantesca IA, ávida em prever cyber-ataques de possíveis dissidentes.
Desde 2003, o
site 4chan é um celeiro de trotes, protestos, fábrica de memes e
modinhas virais, uma mistura caótica de conteúdo ilegal e vandalismo onde todos
os usuários são anônimos. O site já enganou a apresentadora Ophra Winfrey sobre
a preocupante notícia sobre um suposto grupo de pedófilos “com 9.000 pênis para
molestar crianças”, invadiu o e-mail de Sarah Palin, derrubou sites da
indústria fonográfica e de lá também surgiu o grupo hacker-ativista Anonymous.
O 4chan
parece viver na beirada de um abismo sombrio e assustador chamado Deep Web
e Darknet, cujas profundezas seriam habitadas pela escória e vilania dos
códigos algorítmicos que tecem o conjunto da Internet.
Mas eis que há
quatro anos, vindo das profundezas dos abismos da Deep Web, de repente apareceu
no 4chan uma imagem que dizia: “Olá. Estamos procurando indivíduos
altamente inteligentes. Para encontra-los criamos um teste. Há uma mensagem
oculta dentro dessa imagem. Encontre-a, e ela colocará você no caminho de nos
encontrar. Estamos ansiosos para conhecer os poucos que conseguirão chegar ao
final. Boa sorte. 3301”.
Esse foi o
primeiro de uma série de complexos quebra-cabeças lógicos envolvendo
criptografia, segurança de dados e esteganografia – o uso de técnicas para
ocultar uma mensagem dentro da outra.
Depois de um
beco sem saída que levava para a imagem de um pato, descobriram um link para o Reddit
com imagens com símbolos estranhos, numerais maias chegando a um texto sobre o
Rei Arthur de onde se extraia um determinado número de telefone com uma
mensagem gravada com outro beco sem saída...
“Paciência é uma virtude”
Mas perceberam
que a altura e largura da imagem eram números primos que conduzia a um endereço
onde era encontrada a imagem de uma cigarra (“cicada” em inglês) e um
cronômetro em contagem regressiva. E uma mensagem: “paciência é uma virtude” –
lição muito repetida pelo Cicada 3301. Ao zerar o cronômetro, surgiram uma
série de coordenadas que levavam a 14 lugares, aparentemente aleatórios,
espalhados pelo planeta nessas regiões: Varsóvia, Paris, Seattle, Arizona,
Califórnia, New Orleans, Havaí e Sydney. Nos locais, cartazes colados em postes.
Para encurtar a
descrição dessa jornada cripto-esteganográfica, essas 14 mensagens resultaram
em duas, cada uma com um código para um obscuro manuscrito celta medieval
(Mabinogion) e um poema de William Gibson (escritor e criador do conceito
“cyberpunk”) chamado Agrippa, cujos códigos contidos nesses textos levaram a um
endereço na Darknet que, depois de um determinado número de acessos, saiu do ar
para sempre.
Até então,
circulou muita especulação - o que era tudo isso: um nerd graúdo zombando de
todos? Um ARG (jogo de realidade alternativa) de algo que ainda será lançado?
Recrutamento novos cérebros para a NSA, CIA ou de algum grupo cyber mercenário?
Ou toda essa massa de experiência e dados está sendo executada e aproveitada por algum banco que trabalha com
criptomoeda.
Cicada 3301: viralidade e replicação
O fato é que a
partir de 2014 os novos enigmas adotaram uma temática cada vez mais mística: um
livro ocultista de Aleister Crowley, um código cabalista de runas, um livro de
Ralph Emerson sobre auto-suficiência e transcendência e um estranho livro
chamado Liber Primus que diz que os números primos são sagrados e tudo é
criptografado – a última página fecha com um “quadrado mágico”, cheio de
números cuja soma de todas as linhas, colunas e diagonais dá 1033 (3301 ao
contrário) cujo significado não foi descoberto até agora...
O “Cicada 3301”
já foi chamado de “maior mistério da Internet” merecendo entrar na lista do Top
5 dos “Mistérios não resolvidos da Internet”, segundo o The Washington Post.
O que primeiro chama a atenção nesse episódio é a sua dupla dinâmica de
repercussão: viralidade e replicação.
Assim como previsto
em 1947 por Gordon Allport e Leo Postman em sua “Psicologia do Rumor” o
elemento ambiguidade é o fator multiplicador do alcance de um boato – a força
impulsionadora do Cicada 3301 é o significado ambíguo: verdade ou mentira?
Trolagem ou algo sério? O inesperado e o bizarro, aliás traço dominante dos
vídeos virais do YouTube aos memes nas redes sociais, parece ser o combustível
desse quebra-cabeças criptográfico.
Se a quebra da
criptografia da máquina Enigma do nazistas pelo matemático Alan Turing na
Segunda Guerra Mundial teve um propósito explícito e épico (a vitória dos
Aliados num divisor de águas na História), com o Cicada 3301 o combustível que
o alimenta também o dilui: a ambiguidade que o mergulha na banalidade de um
evento sem sentido.
Ao mesmo tempo o
seu poder de replicação: uma pesquisa rápida em sites nacionais e
internacionais sobre o episódio, percebe-se a replicação dos mesmos textos e
informações como, por exemplo, o suposto sumiço de pessoas nas redes após
resolver determinados enigmas propostos pelo Cicada 3301. Abduzidos pela
misteriosa organização? O novos recrutas foram para algum universo paralelo?
“I Did It!”
Mas o Cicada
3301 esconde um princípio minimalista que é a base da cultura narcisista e
niilista dos tempos atuais: a filosofia do “I did it” (eu consegui!). Em uma
série de crônicas de viagens do filósofo francês Jean Baudrillard sobre suas
impressões sobre a cultura e cotidiano dos EUA (América, Rocco, 1986),
ele definiu o espetáculo da Maratona de Nova York como o espetáculo do “I did
it” – milhares de pessoas correndo sozinhas, sem o espírito da vitória, apenas
para cumprir o trajeto e exausto despencar no gramado do Central Park e gritar:
“Eu consegui!”. Cumprir o trajeto da maratona apenas como exercício de
contraprova para si mesmo de que realmente existe.
Assim como
centenas de dezenas de pessoas escalando o Everest para provar a si mesmas que
pode fazê-lo – uma performance no vazio.
O Cicada 3301
parece ser um evento que se inscreve nessa mesma categoria: uma performance
intelectual e lógica fetichista, de delírio no vazio, da exaltação de uma
façanha sem consequência.
Marcus Wanner |
O vício de resolver coisas
Uma
sensibilidade neobarroca, uma espécie de labirinto medieval (diferente do
labirinto clássico grego onde o fio de lã é a solução para achar o caminho de
volta). O Cicada 3301 parece um labirinto maneirista como múltiplas
ramificações de uma árvore, propiciando o prazer em se perder e abandonar as
noções de verdade, fidelidade ou originalidade.
A revista Rolling
Stones de 15/01/2015 entrevistou dois hackers (Marcus Wanner e “Tekk” –
paranoico com o Cicada, não quis revelar seu verdadeiro nome) que pertenceram à
equipe #decipher, formada por prodígios da matemática entre 15 e 18 anos,
dedicados a decifrar os enigmas do Cicada.
“Resolver coisas
é uma espécie de vício”, diz Marcus, um garoto de quinze anos, escoteiro e
filho de um engenheiro elétrico e mãe católica devota em Virgínia, EUA. Marcus
viu na imagem enigmática no fórum 4chan a chance de escapar da rotina
casa-igreja-escoteiros.
Junto com Tekk,
afirmam se sentir cada vez mais paranoicos desde que tropeçaram no Cicada: “o
Cicada atrai um monte de malucos e de gente paranoica”, afirma Tekk.
Marcus completa:
“Passei a me sentir não mais em um jogo. Quanta informação nós doamos? Quão
perto estamos sendo monitorados? Quem está fazendo o rastreamento? CIA, NSA, um
grupo de hackers criminais procurando os peões de algum plano nefasto?” –
“Cicada: Solving the Web’s Deepest Mystery”, Rolling Stones – clique aqui.
Talvez nos depoimentos
desses jovens esteja o testemunho dessa cultura minimalista do “I did It” e uma
hipótese bem verossímil do propósito do Cicada 3301.
O vício em
resolver enigmas como fim em si mesmo, auto-referencial e tautista (autismo +
tatutologia) como uma linha de código recursivo e auto-referencial em uma
programação. Mesmo sem um propósito ou sentido, o enigma é irresistível: pede
uma urgente solução.
Cicada e a futura Matrix
O que revela uma
verossímil hipótese sobre o que é Cicada 3301: captura de Big Data para
análise, pesquisa, compartilhamento, armazenamento, transferência e informação
sobre privacidade de dados pelas grandes empresas.
O Google já faz
isso no dia-a-dia nas redes sociais e site de busca. Se os simples mortais
disponibilizam importantes informações de graça sobre seus hábitos, escolhas e
atitudes, o que dirá as informações sobre o modus operandi dos gênios
matemáticos, hackers e cyber-ativistas?
Com o Cicada
3301 temos a mão de obra perfeita: jovem, inteligente, viciada em “resolver
coisas” e, por isso, alheia a qualquer consequência ou implicação no mundo real
das abstrações matemáticas.
Como previu
sombriamente certa vez o criador da realidade artificial Jaron Lanier: num
futuro não muito distante, a Internet será incorporada a uma Super Inteligência
Artificial (a singularidade resultante de todos os dados escaneados e
rastreados nos hábitos dos usuários) infinitamente mais inteligente do que cada
um de nós – leia “The First Church of Robotics”, artigo de Lanier no New York
Times – clique aqui.
Afinal, como
disse certa vez um engenheiro do Google: “nós não estamos escaneando livros no
Google Books para pessoas lerem, mas para serem lidos por uma Inteligência
Artificial”.
Essa Internet
recém-senciente teria que, tal qual a Matrix, prever qualquer tentativa de
cyber-ataques contra ela mesma partindo de possíveis dissidentes. E aí entraria
o propósito de estratégias como Cicada 3301 – acumular e analisar dados para
futuramente antecipar o raciocínio lógico hacker contra ataques a toda e
qualquer variável criptográfica.
E então seríamos
no final escaneados, assim como o Google digitaliza os livros antigos, e viveríamos
para sempre como algoritmos no interior de um cérebro global.
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