Comparam a consumação do impeachment de Dilma Rousseff com as
circunstâncias do golpe militar de 1964. Lá estavam a força de armas e
coturnos. Aqui em 2016, todas as “data venias” dos rapapés de juízes, juristas
e parlamentares. Mas os eventos são incomparáveis: lá em 1964 tivemos a
tragédia de um evento histórico. Hoje, assistimos ao vivo pela TV a farsa de um
“não-acontecimento” que simulou ser um evento histórico. Desde a seminal Guerra
do Golfo em 1992, os não-acontecimentos dominam o horizonte de eventos das
sociedades, seja por guerras, atentados terroristas ou golpes parlamentares. Em
todos eles, um complexo jurídico-midiático inverte as relações de causa-efeito:
não se trata mais de acontecimentos que geram informação, mas o inverso – a
História transforma-se em “Psico-História”, para usar uma expressão de Isaac
Asimov. Compreender os mecanismos dos não-acontecimentos é fundamental para uma
ação política que vise não apenas ocupar as ruas. É urgente também ocupar o
contínuo midiático que compreende a zona virtual de interface entre a mídia e a realidade. Lá estão estão os “agentes Smiths” (repórteres e editores) a serem enfrentados por guerrilhas midiáticas.
“Golpe branco”,
“golpe frio”, “golpe parlamentar”, “golpe paraguaio”, “golpe constitucional”.
Uma variedade de termos e designações correm através da mídia para tentar
nomear o processo de impeachment contra Dilma Rousseff consumado em 31 de
agosto.
Diante da
perplexidade das esquerdas em procurar um termo que designe um processo de
derrubada de uma presidenta sem força bruta de exércitos ou derramamento de
sangue, a Direita reage, como proferiu o senador Cassio Cunha Lima (PSDB-PB) na
plenária do Senado: “como pode haver golpe se estão aqui representados os três
poderes?”.
O fato é que o
“golpe” foi televisionado ao vivo (só nas TVs fechadas, enquanto a maior
emissora da TV aberta, a Globo, ensinava a fazer ovo cozido) com analistas
políticos fazendo seus comentários assim como comentaristas analisam jogadas em
uma transmissão esportiva. A grande mídia passou uma estranha atmosfera de
normalidade. Soft Coup!
É claro que isso
se deveu a camadas e mais camadas de discursos e estratégias retóricas para
justificar a constitucionalidade de todo o processo. No final, a figura
aquilina do ministro do STF Lewandowski presidindo a votação final deu o verniz
jurídico necessário para o último ato.
Porém, tirando
essas camadas de manipulação da informação, retórica e ideologia, há um
fenômeno curioso: no final, a banalidade, a previsibilidade - o tic-tac das
etapas do processo transcorreram de forma perfeita, sem glórias ou tragédias –
a não ser, claro, a tragédia das consequências futuras para a Democracia.
O não-acontecimento
Tirada as
camadas dos vieses e manipulações, resta o fato em si: a natureza de
não-acontecimento do impeachment.
Muitos analistas
comparam o golpe militar há 52 anos com o atual impeachment. Lá, a força de
armas e coturnos. Aqui, a sutiliza de todas as “data venias” e rapapés de
juízes e advogados nas cortes refrigeradas em meio ao Planalto Central quente e
seco.
Lá no passado o
Exército, caminhões, tanques nas ruas e soldados. Aqui, a fina sintonia do
complexo jurídico-midiático. Enquanto em 1964 pessoas nas ruas foram pegas de
surpresas ao verem tanques de guerras e caminhões carregando soldados armados, agora
todo o enredo do impeachment estava previsto e o resultado mais do que
esperado.
Os dois eventos
distante 52 anos no tempo são incomparáveis, foram de natureza diversa: em
1964, um fato histórico; hoje, a banalidade de um não-acontecimento.
Há um ironia
objetiva no processo político do impeachment: não foi um acontecimento que
produziu informações, mas, ao contrário, as informações midiáticas que
determinaram acelerações e desacelerações, ditou o timing dos acontecimentos e
editou a atenção da opinião pública.
O ardil do acontecimento histórico
Guardada as
devidas diferenças, o atual impeachment somente pode ser comparado com outros
não-acontecimentos como a seminal Guerra do Golfo de 1992: as transmissões ao
vivo da CNN é que ditavam o timing e extensão dos acontecimentos –
enquanto dava audiência, a guerra era estendida para ajudar uma possível
reeleição do presidente George Bush pai. De repente, as areias do deserto se
transformaram em um gigantesco estúdio em live action para a CNN.
Hoje, esses
perfeitos estúdios foram os Supremos Tribunais e as plenárias do Congresso
Nacional.
O golpe militar
de 1964 trazia o ardil tradicional dos eventos históricos: fazer acontecer
mudanças essenciais sem darem a ideia de que aconteciam. Por isso, todo evento
histórico sempre apresentou um descompasso entre essência e aparência: na
aparência, a glória de atos heroicos, as tragédias dos gestos errados e a
fatalidade de destinos. Eventos inaugurais, divisores de águas, separação de
épocas. E na essência, as mudanças profundas e silenciosas, lentas, que de
repente podem explodir, como em um golpe militar sangrento.
Essa tensão
entre essência e aparência é o que sempre permitiu a existência do ofício do
historiador e do pensamento crítico – mostrar que a História é escrita pelos
vencedores, tentar descobrir o ardil do tempo histórico, as leis dos
acontecimentos.
A Psico-História
Nos atuais
não-acontecimentos tudo isso deixou de existir com a hipertrofia das mídias que
deixaram de ser testemunhas oculares da História – doravante, a “História”
transformou-se em “psico-história”, para usar uma expressão do escritor sci-fi
Isaac Asimov: a mídia molda a percepção da realidade ao transmitir certas
informações que se transformam em profecias autorrealizáveis – crises políticas
e econômicas.
No caso
brasileiro, era evidente o esgotamento de todas as forças de oposição aos
governos petistas – figuras politica e pessoalmente medíocres como Aécio Neves,
Alckmin, José Serra e todo o chamado baixo clero do Congresso. Por si mesmas,
incapazes de criar acontecimentos históricos como propostas, mobilizações
populares, incendiar as ruas e assim por diante.
Diante disso, a
grande mídia entrou no jogo e transformou-se no verdadeiro partido de oposição
ao criar um complexo jurídico-midiático quase seguindo os moldes norte-americanos
dos canais de transmissão ao vivo de julgamentos, recriação de julgamentos em
infográficos e transmissões online como, por exemplo, o Projeto Open Court.
Court
Entertainment! O que tornou muitos norte-americanos fissurados em crimes,
escândalos para depois chegar ao prazer da catarse punitiva ao assistir
julgamentos pela TV.
Vazamentos
diário das denúncias premiadas através da grande mídia se transformaram no
cotidiano dos brasileiros, re-injetando energia em um sistema político exaurido
pela inércia dos acontecimentos. O que colocou multidões nas ruas que apenas
replicavam slogans da publicidade (“O Gigante Acordou”, por exemplo) ou simulacros
de obras de artistas plásticos como o gigantesco pato da FIESP.
Mesmo
acompanhando os argumentos pró-impeachment nas redes sociais, é possível
perceber esse, por assim dizer, DNA da psico-história autorrealizável: os
textos são apenas pastiches ou mal ajambradas colchas de retalhos de slogans,
palavras de ordem ou frases prontas como “programas sociais inúteis”, “os
protestos começaram nas ruas”, “golpe constitucional” etc.
O efeito “Dunning-Kruger”
O que criou um
gigantesco Efeito Dunning-Kruger: indivíduos com pouco conhecimento sobre o
assunto acreditam saber mais do que especialistas por estarem constantemente
abastecidos midiaticamente por clichês, sofismas e frases prontas. O que
reforça ainda mais a ignorância, ao ponto de se tornar incapaz em reconhecer o
próprio erro, como demonstraram pesquisas na Universidade de Cornell em 1999 – clique aqui.
Os
acontecimentos históricos seguem uma linha euclidiana e acumulativa em direção
ao futuro. Enquanto os não-acontecimentos seguem em movimento helicoidal –
movem-se em uma sobreposição circular mas em movimento helicoide onde os
acontecimento se repetem como farsa mas ainda assim se movimentam no tempo.
“Se repetem como
farsa” quer dizer a habilidade do continuo midiático inverter as relações
causa-efeito produzindo pseudo-eventos que simulam ser históricos.
O Grau Zero da Política
Grau zero da
política, o paroxismo do niilismo: Esquerda e Direita se equivalem no Estado em
nada mais fazer do que adiar a catástrofe econômica e social, procurando enviar a
dívida para um espaço virtual, uma economia fictícia onde papéis e títulos se
transformam em riqueza negativa para a especulação.
Por vezes esse
niilismo assusta o sistema político como um fantasma entrópico, necessitando do
input do escândalo insuflado pelos vazamentos seletivamente editados –
os não-acontecimentos.
Atualmente a
única diferença entre Esquerda e Direita é essa: enquanto as esquerdas querem
que uma parte dessa riqueza negativa seja convertida em alguma concreção nos
programas sociais e de emprego, a Direita abomina tudo isso, fiel que está à
agenda do controle populacional forçado pelas agências financeira
internacionais – acabar com a pobreza deixando os pobres à mingua até o
genocídio final.
Esse darwinismo
social meritocrático talvez seja o único acontecimento verdadeiramente
histórico por confrontar o humanismo iluminista que fundamenta a Democracia
Ocidental.
Guerrilha midiática
Por outro lado,
compreender os mecanismo dos não-acontecimentos é de importância estratégica em
uma necessária trans-política à esquerda.
De nada adianta tomar as ruas,
como declarou Dilma Rousseff em seu discurso após a consumação do impeachment,
se o contínuo midiático continua simulando a História em uma infernal
sobreposição circular.
Assim como todo
o sistema financeiro especulativo, produtor da riqueza negativa, se fundamenta
no movediço solo da credibilidade (tudo pode ruir se um dia correntistas
desesperados quiserem sacar seus haveres simultaneamente), a grande mídia
igualmente se alimenta desse solo frágil.
Em postagem
anterior discutíamos como táticas de guerrilha midiática (trolagens e
pegadinhas, por exemplo) poderiam golpear e desmoralizar essa frágil
credibilidade sobre a qual se sustenta um monstro com pés de barro – sobre isso
clique aqui.
Portanto, ocupar
as ruas por si só não é o suficiente. É urgente ocupar o contínuo midiático que
compreende essa zona virtual de interface entre a mídia e a realidade – atrair
os “agentes Smith” (repórteres da grande mídia) em ciladas semióticas.
A ação política
tradicional é inócua diante da simulação dos não-acontecimentos. A simulação
somente pode ser combatida com uma nova simulação: as estratégias irônicas das
guerrilhas semióticas.
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