O programa Excel produz “cabeças de planilha”. E o PowerPoint produz o quê? Uma pequena amostra foi dada na delação-show protagonizada pelo procurador Deltan Dallagnol ao dizer: “provas são fragmentos da realidade que geram convicção”. O PowerPoint invadiu a estrutura mental, de decisão e compreensão da realidade. A princípio, qualquer coisa pode ser “bullet-izabel” (“itemizável”). É a pré-formatação da realidade, uma verdadeira estrutura de decomposição do real. Tão fragmentadas e genéricas como as supostas provas contra o “general do maior esquema de corrupção da História”. O PowerPoint se expandiu a todos os setores da sociedade, das empresas ao Estado e à escola onde alunos vão deslizando o olhar por tópicos através dos quais o efeito de conhecimento se confunde com o próprio conhecimento. Cria a linguagem powerpointiana: ilusão, simplificação, distração e anestesia.
Um fantasma
assombra escolas, universidades, corporações e, agora, o Ministério Público
Federal: o PowerPoint. A performance do procurador Dallagnol tentando coordenar
sua fala com as dezenas de slides da sua denúncia contra “o general do maior
esquema de corrupção da História” é reveladora. Não só de uma bizarra peça
acusatória muito mais baseada em “convicções” do que em “provas cabais”. Mas
daquilo que poderíamos chamar de “cultura PowerPoint” que assombra cada sala de
aula ou auditório de apresentações.
Os procuradores
federais, jovens concurseiros que, com muito esforço, traçaram seus caminhos da
sala de aula dos cursos de Direito para a promoção em concursos públicos,
certamente estudaram em muitos quadros sinópticos impressos em slides de PowerPoint. Moldaram seus raciocínios e matéria de estudos através de bullet-izable
(itemizáveis), gráficos espaguete com muitas setas e linhas e tabelas e mais
tabelas onde as letrinhas pequenas espremidas em células hifeniza as palavras
tornando a leitura ainda mais irritante.
E também
certamente Dallagnol demonstrou o atavismo das apresentações em grupo do seu passado
de estudante na Universidade, onde o aluno, tímido e ofuscado pela luz do data
show, apenas lê aquilo que já está no slide.
Mortes por PowerPoint
A cultura PowerPoint
(no qual o software torna-se vício, muleta para um discurso vazio ou camisa de
força intelectual) já criou sérios estragos.
Por exemplo,
para o especialista em infografia Edward Tufte, slides de apresentações dos
engenheiros da NASA ajudaram a esconder informações essenciais que teriam
evitado a explosão do ônibus espacial Columbia em 2003 – leia “PowerPoint Makes
You Dumb”, New York Times – clique aqui.
Outro artigo também
do New York Times (“We Have Met the Enemy and He is PowerPoint”) apontou
que até os militares norte-americanos estão questionando o uso excessivo do
Power Point como instrumento de informação e treinamento. A ponto do General
McBaster acusar o programa como um “inimigo interno”. Para ele, “o Power Point
nos torna estúpidos porque cria a ilusão da compreensão e controle”.
O artigo não
perdoa o uso abusivo do programa pelos oficiais nas campanhas do Afeganistão e
Iraque e relata o livro Fiasco de Thomas Ricks que conta a pitoresca
história de um slide que se tornou um meme na Internet - assim como os slides
do procurador Dallagnol. Criado por um oficial para retratar a complexidade da
estratégia militar americana, mais parecia um prato de espaguete. “Quando
entendermos esse slide, teremos ganho a guerra”, disse o oficial fazendo a sala
onde fazia a apresentação explodir em gargalhadas. O incidente tornou-se uma
piada recorrente no Pentágono, Iraque e Afeganistão - veja abaixo o slide.
A questão hoje é
chamada de “mortes por PowerPoint”, devido às vidas que se perdem pela falta de
precisão e profundidade das informações transmitidas durante apresentações nos
departamentos militares.
PowerPoint Rangers
McBaster acusa que
os oficiais juniores (os quais chama de “PowerPoint Rangers”) passam mais tempo
na preparação de slides para uma reunião do Estado Maior ou para um briefing do
líder de pelotão no Afeganistão, do que tomando decisões. “O programa abafa a
discussão, pensamento crítico e reflexivo de tomada de decisão”, alertou o
general. – clique aqui.
Franck Frommer
no seu livro El Pensamiento PowerPoint – indagación sobre este programaque
te vuelve estúpido (Ediciones Peninsula, 2011) afirma que nele interessa
mais a exibição do que a demonstração e busca hipnotizar o público e limitar a
capacidade de raciocínio. Segundo Frommer, usam-se slogans e verbos no
infinitivo. Muitas vezes se incorporam imagens que não têm nada a ver com o que
se diz, simplesmente adorno estético. Exige-se uma sala escurecida com gente
atenta, consumindo 15 slides a cada meia hora. Quando abandonam a sala,
praticamente os haverá esquecido.
Frommer acredita
que em si o PowerPoint não é bom e nem mal. Ele está interessado no que chama
de “contaminação do discurso” pelo programa.
Mas por que esse
programa contaminou de tal maneira escola, universidades, corporações e, agora,
o Judiciário? – podemos imaginar em um futuro próximo advogados apresentando
argumentos em slides ao invés de peças processuais.
Pré-formatação da realidade
O PowerPoint foi
criado em 1987 por Robert Gaskins como um programa para ajudar a imprimir
slides em transparências de retroprojetor. Logo, Bill Gates mostrou suas garras
e comprou o programa. Em 29 anos de existência, o próprio Gaskins tem queixa em
relação ao destino do PowerPoint – “muita gente deixa de gerar documentos
completos para resumi-los em slides”.
O certo é que o
PowerPoint invadiu a estrutura mental, de decisão e compreensão da realidade. A
princípio, qualquer coisa pode ser bullet-izabel. É a pré-formatação da
realidade, uma verdadeira estrutura de decomposição do real. E o que é pior:
através de templates sempre disponíveis, pagos ou gratuitos baixados diretamente
da Internet.
Na origem, o
PowerPoint é útil para ilustrar ou chamar a atenção do público a determinados
tópicos. Mas jamais um slide pode sintetizar um raciocínio medianamente
abstrato.
Sedução pelo PowerPoint
Porém o programa
se torna sedutor porque, num piscar de olhos, pode atender a quatro funções
ideológicas: ilusão, simplificação, dissuasão e anestésico.
(a) Ilusão: no
meio acadêmico é conhecida essa varinha de condão. Com um bom conjunto de
slides pode-se falar sobre qualquer coisa. Mesmo que o professor não tenha
“aderência” (ótimo eufemismo da gestão acadêmica) à disciplina, pegue o
conteúdo de um livro qualquer da bibliografia básica e converta em tópicos. Se
tiver sorte, pode encontrar aulas prontas em sites como slideshare... No
momento da ação, basta ler os slides apenas conjugando os verbos que estão no
infinitivo para dar alguma impressão de espontaneidade.
(b)
Simplificação: setas, linhas e palavras realçadas por balões que mais parecem
aqueles “booms!” da série Batman mascaram a inexistência de abstrações,
conexões e linhas de raciocínios. O PowerPoint tende a confundir efeito de
conhecimento com o próprio conhecimento. Nos cursos escolares ou
universitários, o fenômeno do
“apostilamento” (substituição dos livros por apostilas descartáveis) tende a
piorar: a transformação dos conteúdos em slides bullets-izabels.
(c) Distração:
pode ser uma boa e inofensiva ferramenta para os tímidos quebrarem o gelo ou
troca de marcha em um discurso. Mas, por outro lado, pode se converter em
ferramenta ideológica poderosa: desviar atenção da falta de conteúdo do emissor
para os itens e imagens dos slides. E se ainda tiverem efeitos de animação,
tanto melhor. Ou ainda, como aponta Franck Frommer, o conferencista passa a não
se sentir responsável pelo que diz. O orador simplesmente repete o que está no
slide que passa a se tornar mais do que uma muleta – o efeito de conhecimento
vira a “prova” de uma “convicção”.
(d) Anestésico: Numa
apresentação em uma sala escura, tudo o que devemos fazer é olhar os slides sem
nos preocuparmos com a profundidade da argumentação. Os bullets itens
simplificam o pensamento, mastigam informações. Resultado: anula-se o
intercâmbio, não há interação. Os slides, em si, parecem a prova do
conhecimento ou mesmo de uma peça processual, como nos quis mostrar o bravo
procurador Dellagnol.
Um dos clichês
da criatividade é “pensar fora da casinha”. Tão valorizado pelo atual ideário
meritocrático (“fazer a diferença” etc.) é paradoxal que, ao mesmo tempo, o
mundo fale para pessoas enredadas numa imensa tigela de espaguete mental de
setas, balões, linhas e bullets de uma linguagem que foi além da orwelliana.
Agora é powerpointiana.
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