Depois da divulgação da Medida Provisória que “flexibiliza” disciplinas
do Ensino Médio como Artes e Educação Física o Ministério da Educação tentou explicar dizendo que não era bem assim, depois de forte reação de educadores
e pedagogos. Mas está claro: não basta apenas o golpe político. É necessária
uma operação psicológica para anestesiar as outras amargas “flexibilizações”
que serão proximamente enfiadas goela abaixo da sociedade. Uma operação para
manter um sistema de comunicação projetado pela ditadura militar e mantido até
hoje – a concentração das informações para a opinião pública exclusivamente nas
mídias audiovisuais, especialmente a TV. Para isso é necessária a manutenção do
analfabetismo visual: a crença ingênua de que ver é um ato natural e fisiológico,
impossibilitando a educação do olhar e a percepção das intencionalidades por
trás das mensagens visuais. “Flexibilizar” as disciplinas Arte e Educação Física mostra que o “núcleo duro” de Poder, persistente há
décadas na política brasileira, não brinca em serviço. Sabe o que faz: o olhar e a autoconsciência
corporal estão conectados através da “propriocepção”, a base da alfabetização
visual.
Um grupo de
alunos estava fazendo apresentação oral de um trabalho de pesquisa para a
disciplina Estudos da Semiótica que ministrava na Universidade Anhembi Morumbi.
O tema era a influência dos líderes de opinião na opinião pública a partir da
referência teórica das pesquisas da Mass Communication Research de Paul
Lazarsfeld.
A certa altura,
foi mostrado um vídeo, desses inúmeros com a presidenta Dilma Rousseff que
circulavam nas redes sociais que pretendiam comprovar que ela não passava de
uma indigente mental: um pout pourri de frases desconexas, repetições,
falas que não diziam coisa com coisa, gaguejos etc. Era nítido nesses vídeos
que eram montagens, muitas delas criando um verdadeiro “efeito kuleshov” - experiência feita pelo teórico e cineasta
russo Lev Kuleshov mostrando que a interpretação que o espectador faz de uma
cena pode ser alterada através da montagem e justaposição arbitrária dos planos.
Intervi na apresentação, demonstrando como o vídeo era o resultado de um nítido trabalho de montagem. O vídeo em questão
tinha passagens de emendas toscas, pinçadas de trechos de vídeos originais. Foi
espantoso perceber a ingenuidade de alunos de segundo semestre de um curso de
comunicação que, supostamente, deveriam ser os mais atentos a esses detalhes.
Essa foi uma pequeno amostra
daquilo que podemos chamar de “analfabetismo visual” – a crença ingênua de que
a visão é natural e que a compreensão das mensagens visuais é vinculado
exclusivamente ao alfabetismo verbal. O analfabeto visual acredita estar
“olhando”, quando apenas está vendo. Limita a sua leitura ao nível representativo e literal das imagens (a
habilidade fisiológica da visão), sem compreender o nível abstrato (sintaxe, edição, montagem) da linguagem visual – o
“olhar”, a habilidade sensitiva e afetiva construída socialmente.
Equivale ao analfabeto
funcional: lê as palavras isoladamente, sem conseguir interpretar o que está
lendo.
O projeto audiovisual da Ditadura Militar
Em um país no qual a ditadura
militar implementou um projeto político de concentrar na televisão
(especificamente no monopólio da Rede Globo) a exclusiva fonte de informações
para os brasileiros, os doze anos de governos supostamente progressistas
perderam a oportunidade histórica de alterar esse quadro.
A oportunidade de inserir no
conteúdo de disciplinas como Artes ou especificamente dedicadas à Linguagem
Audiovisual, desde o ensino fundamental, as noções de sintaxe, gramática e
morfologia audiovisual. A partir da educação artística e fundamental do olhar,
avançar para sintaxe das histórias em
quadrinhos, para a linguagem do story board até chegar ao roteiro e toda
morfologia audiovisual de cinema e TV.
Somente em maio desse ano, no
governo já agonizante de Dilma Rousseff, as artes visuais foram incorporadas ao
currículo do ensino básico brasileiro. Para depois, o já empossado presidente
desinterino Michel Temer ameaçar com uma Medida Provisória (MP) “flexibilizar”
as disciplinas de Artes e Educação
Física no Ensino Médio – outro eufemismo é “opcionais”, o que na prática é o
convite à erradicação.
Depois da divulgação da MP e
a forte reação de professores e pedagogos, o Ministério da Educação emitiu nota
dizendo que não é bem assim e que nenhuma disciplina seria eliminada.
Para bom entendedor, meias
palavras bastam: esse verdadeiro núcleo duro do Poder na política brasileira
desde as últimas décadas (a recorrente eminência parda do PDS-PFL-PMDB desde a
ditadura militar, representada pelos seus vices – Sarney, Itamar Franco, Marco
Maciel e Michel Temer) sabe muito bem o que pretende. O núcleo é composto por
profissionais e não brincam em serviço.
Operação Psicológica
Enfiar goela abaixo da
opinião pública um programa como o “Ponte Para o Futuro”, com as medidas
neoliberais que estalarão como chicote no lombo daqueles que vivem da força de
trabalho, implica numa delicada “psy-op” (“Operação Psicológica” no jargão da
Inteligência e Espionagem) que envolve principalmente a grande mídia –
especificamente, a grande mídia televisual.
Essa operação psicológica é nada mais do que a
manutenção do analfabetismo visual. Situação que apenas confirma a sombria
conclusão do célebre documentário Muito
Além do Cidadão Kane: o Brasil mudou, o País se democratizou, mas os meios
de comunicação não – mantém não só a mesma configuração do período ditatorial
como dão continuidade ao projeto de concentrar nas mídias audiovisuais a única
fonte informação para os brasileiros – sobre o documentário clique aqui.
Em tal concentração, monopólio e exclusivismo
da linguagem visual na opinião pública, o analfabetismo visual é a pré-condição
necessária para que esse sistema de comunicação mantenha-se intacto – assim
como um “núcleo duro” de poder que seja capaz de convencer os brasileiros sobre
qualquer coisa: “golpes constitucionais”, “flexibilização” de direitos
adquiridos, “teto de gastos” etc.
Analfabetismo visual e verbal
O analfabetismo visual é
ainda mais insidioso do que o verbal, porque é silencioso: enquanto o
analfabetismo verbal imediatamente prejudica a socialização, o visual é
imperceptível. O analfabeto acha que está olhando (por considerar tudo natural
e representativo), porém apenas vê. Acredita que a imagem é um decalque do real e é
incapaz de perceber que suas impressões e juízos são decorrentes dos efeitos
psicológicos (comportamentais, Gestalt, cognitivos) da sintaxe da linguagem
visual.
Ana Mae Barbosa: a importância da leitura das imagens na educação |
Para Ana Mae Barbosa,
especialista em arte-educação, a presença das Artes desde o ensino básico
beneficiaria tanto professores como alunos: Primeiro, a leitura da imagem.
Preparar o indivíduo para decodificar imagens, encontrar o sentido escondido
por trás delas. Além de acostumar o indivíduo a contextualizar as imagens, onde
estão inseridas. Para ela, seria a porta aberta para a interdisciplinaridade, o
diálogo com outras disciplinas. A História, por exemplo – sobre isso clique aqui.
Esse “núcleo
duro” do Poder, perpetuador do projeto político da ditadura militar, sabe muito
bem que a sua continuidade depende da hegemonia de um sistema
de informação exclusivamente audiovisual. Por isso, o golpe não pode ser apenas
político. Tem que continuar na esfera educacional para garantir a perpetuação
do analfabetismo visual.
Analfabetismo visual e o ovo da serpente
O analfabetismo
visual sempre foi o combustível que potencializou manipulações históricas em
momentos políticos decisivos:
(a) A
mundialmente famosa edição tendenciosa do último debate entre Collor e Lula em
1989 no Jornal Nacional, perdida de vista por leigos incapazes de perceber a
edição e seleção de planos;
(b) A flagrante
montagem das imagens da pilha de dinheiro (tomadas de baixo para cima pelas
câmeras) apreendido pela Polícia Federal para uma suposta compra de um dossiê
pelo PT, cujo impacto levou a eleição para o segundo turno em 2006;
(c) E agora, na
reta final das eleições municipais, a edição do vídeo de 27 minutos com o
depoimento de Eike Batista à Operação Lava Jato – foi selecionada apenas a sequência
que envolve o nome do ex-ministro Guido Mantega, ignorando sequências decisivas
nas quais Eike Batista entrega uma lista com beneficiados de todos os partidos,
para depois ser devolvida pelos procuradores. Repercutido e martelado à
exaustão, o analfabeto visual ignora a intencionalidade e contextualização do
vídeo.
E como grand
finale, provando que essa psy-op é séria e profissional, ameaçam “flexibilizar”
também a disciplina Educação Física. Isto
é, intervir na autoconsciência corporal e cinestésica – a chamada
“propriocepção”, decisiva também na inteligência visual.
Sem falar que há
uma agenda ainda mais sinistra, porque internacional e imposta pelos bancos mundiais de financiamento: a agenda do controle populacional. Banir a
Educação Física em um momento no qual a obesidade
entre jovens de classes sociais inferiores cresce (o analfabetismo visual ainda se soma ao analfabetismo alimentar) é uma evidente política deliberada
para estimular doenças e mortes decorrentes da má alimentação.
Mais
uma vez, comprova-se que os doze anos de governos supostamente progressistas
nada mais fizeram do que chocar o ovo da própria serpente que iria devorá-los:
enquanto estimulavam a inserção da classe C na sociedade de consumo como
símbolo da conquista da cidadania, TVs e mais TVs de plasma e LED com grandes
telas de 32 ou 42 polegadas entravam nos lares de novos consumidores extasiados.
Através delas,
analfabeto visuais acompanharam a grande novela da caça aos corruptos, bem editada
e montada para olhos ingênuos.
O que lembra o sombrio aforismo de Walter
Benjamin no momento da ascensão do nazismo: “as massas assistem ao espetáculo
da sua própria destruição”.
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