Em seu editorial “Fascistas à Solta” de 02/09 o jornal "Folha de São
Paulo" exige a repressão mais dura aos “fanáticos por violência”, jovens
desarmados que insistem em gritar “Fora Temer” nas ruas. Como explicar um jornal que um dia foi sintonizado
com o espírito do seu tempo, quando deu visibilidade às “Diretas Já” e
tornou-se modelo de modernização do Jornalismo, como pode a “Folha” terminar
dessa maneira? Naquele momento jovens ocupavam as ruas exigindo eleições
diretas. Por que hoje a mesma Folha, orgulhosa da “revolução gerencial da mídia
brasileira” do "Manual de Redação", é incapaz de perceber o limiar de uma nova
geração que também clama por eleições diretas? A Folha, no meio impresso,
padece do mesmo mal da Globo, no meio audiovisual: o tautismo (autismo +
tautologia). E a origem desse tautismo pode estar no próprio Projeto Folha iniciado em
1984 cuja contradição era confundir o conceito de opinião pública com uma
relação privada de consumo com seus leitores.
Esse episódio
ficou conhecido como “O Encontro de Nova York”. Eram meados dos anos 1970 e o
Golpe militar de 1964 já mostrava sinais de esgotamento quando o general Geisel
iniciou o processo de abertura e reduziu a força dos militares. Nesse momento
se encontraram em Nova York o jornalista Claudio Abramo, Otávio Frias Filho e o
seu pai. Conversaram por horas sobre o que seria o Brasil dali para frente e
Abramo expos a necessidade de o jornal Folha de São Paulo mudar para acompanhar
os novos tempos – um novo jornalismo que apostasse na redemocratização, o que
significaria uma oportunidade de ampliação de mercado.
Frias Filho teve
na época a sensibilidade de perceber os novos tempos que estavam por vir e a
necessidade de mudanças.
Era o início do
chamado Projeto Folha, conjunto de medidas que modernizaram o jornalismo
brasileiro – um projeto editorial que estabelecia novas bases doutrinárias com
a publicação do Manual de Redação que sistematizou normas de escrita e
conduta; e a implantação de instrumentos de controle de produção.
O Projeto ganhou
força na campanha das Diretas Já e a incessante cobertura da Folha, enquanto o
restante da grande imprensa tentou ignorar até o penúltimo momento.
Mais de 30
décadas depois, vemos esse mesmo jornal investir furiosamente contra os
manifestantes anti-Temer em um editorial que os qualifica de vândalos,
baderneiros e fascistas, além de exigir que a polícia “reprima” mais duramente
os “grupelhos extremistas” e “fanáticos por violência” – leia o editorial aqui.
E mais: a sede
do jornal teve que ter sua sede protegida pela polícia diante da ameaça de
manifestantes que prometiam um escracho contra o jornal.
Por que um
jornal que conseguiu captar o espírito do seu tempo ao apoiar as Diretas Já,
reinventou-se e passou a ser influente e admirado, termina dessa maneira?
Naquele momento
jovens ocupavam as ruas exigindo eleições diretas. Por que hoje a mesma Folha,
orgulhosa da “revolução gerencial da mídia brasileira” do Manual da Redação por
três décadas, é incapaz de perceber o limiar de uma nova geração que também
clama por eleições diretas?
Tautismo e o Projeto Folha
Será que podemos
dizer que Folha envelheceu junto com o seu leitor e toda uma geração de
políticos como o desinterino Michel Temer?
Arrisco a dizer
que a Folha, no meio impresso, sofre do mesmo mal que a Globo, no meio
audiovisual: o tautismo. Para aqueles não familiarizados com esse conceito, o
tautismo (autismo + tautologia) se refere ao mal de todos os sistemas que se
hipertrofiam – tornam-se ao mesmo tempo redundantes e cegos ao mundo exterior. Tornam-se
tão grandes e complexos que se auto-organizam e se fecham ao mundo exterior.
Ou detalhando
melhor, até há alguma troca de informações com aquilo que está fora do sistema,
mas o input é traduzido a partir a partir de uma descrição que o sistema
faz de si mesmo – sobre isso clique aqui.
O tautismo já
existia em germe no Projeto Folha desde o seu início em 1984. Na sua superfície
doutrinária, o Projeto se preocupava com o apartidarismo, o pluralismo e o
profissionalismo. Mais além, o Projeto adotou radicalmente a opção de
administrar a Redação como uma empresa industrial moderna.
Porém, havia uma
contradição interna: a Folha apresentava-se como um jornal com independência
editorial por praticar um jornalismo que não presta contas a ninguém salvo ao leitor. A versão do Projeto Folha de
1985 definia a base sociológica do jornal como “um grupo heterogêneo
constituído”, ou seja, a própria sociedade e a opinião pública. Porém surge a
contradição: como a Folha queria estabelecer uma ponte entre esfera pública e
sociedade civil se a única realidade social que reconhecia era na realidade seu
grupo de leitores?
Obsessão em falar de si mesma
Nas campanhas
publicitárias, a Folha apresentava-se como “de rabo preso com o leitor”. A
confusão que a Folha fazia entre uma relação privada com seus leitores e a
opinião pública somente se equiparava com a obsessão do Projeto e do próprio
jornal no dia-a-dia falar de si mesmo.
Umberto Eco
acreditava que os sistemas audiovisuais, principalmente a TV, estava deixando
de ser uma janela aberta para o mundo para se configurar naquilo que chamava de
“Neotevê”: uma televisão que passaria a maior parte do tempo falando de si
mesma e do seu contato com o receptor - sobre isso clique aqui.
Ora, essa
descrição de Eco, uma das bases teóricas para o diagnóstico do tautismo dos
sistemas contemporâneos, pode ajudar a compreender as consequências dessa
contradição interna do Projeto Folha desde o início.
Quanto mais as
fases do Projeto Folha se sucediam, o jornal parecia se interessar apenas em
falar muito mais de si mesmo do que do mundo exterior. Chamava isso de “transparência”
e “respeito ao leitor”. Mas essa relação privada com o leitor que se camuflava
como pública era o tautismo em germe.
A divisão do
jornal em cadernos chegava ao paroxismo da publicação de cadernos especiais
onde se explicava o novo projeto gráfico do jornal ensinando didaticamente para
o leitor a função de cada centímetro por coluna da edição.
A instituição do
Ombudsman, para gerar credibilidade ao veículo por supostamente reproduzir o
ponto de vista e a voz do leitor, apenas reforçou ainda mais a metalinguagem e
auto-referência do veículo. Além de ser um exemplo relação autista com o mundo
externo: o ombudsman seleciona os textos a serem publicados, já que não há
espaço para tudo que é enviado pelos leitores. Por isso, escolhe os assuntos
que deseja discutir em cada edição.
Números aos invés dos fatos
De eleições
passando por debate políticos na TV até chegar a jogos de futebol, a Folha
começou a basear seus textos informativos, análises e comentários aos números
gerados pelo Datafolha. Qual a
porcentagem de posse de bola no jogo da seleção brasileira? Percentualmente,
qual a área do campo mais acionada por cada jogador dos time?
De repente
tínhamos comentaristas não mais preocupados em discutir o jogo ou as informações
das suas fontes. Passaram a comentar os números do Datafolha e não mais os
fatos em si.
Era como se os
números atribuíssem a aura de imparcialidade e credibilidade a textos
jornalísticos cada vez mais tautistas e ausentes do mundo real. É inegável que
essa obsessão por metalinguagem e auto-referência era uma estratégia de
marketing institucional e fortalecimento da marca Folha no mercado.
O jornalista “Perfil Folha”
Tanto que acabou
por contaminar os próprios jornalistas que passaram a ostentar orgulhosamente
um chamado “perfil Folha” - ouvi essa expressão do próprio Carlos Eduardo Lins da Silva, um dos principais responsáveis do Projeto Folha.
Arrogância, pedantismo,
discurso messiânico como porta-vozes de tudo o que seria de mais moderno (por
exemplo, Matinas Suzuki em um afetado texto sobre a Copa do Mundo de 1986, previa
que na África estaria tudo de mais moderno no futebol...) e yuppismo cultural
eram marcas registradas dos jornalistas da Folha, apesar da alta rotatividade
dos quadros da Redação, barateamento da mão de obra e precarização do trabalho
com a contratação de freelas fixos.
Mas apesar desse
tautismo incipiente era inegável que a Folha conseguia sintonizar-se com o
espírito da época, principalmente os debates artísticos e intelectuais. Como
professor universitário, ficava surpreso com o sincronismo entre o que era
discutido em sala de aula para, na mesma semana, temas correlatos aparecerem em cadernos como o Folhetim
e mais tarde o Caderno Mais.
Além de
representar interesses de classe e uma elite predatória que não quer abandonar
seus privilégios, o assombroso editorial da Folha representa o desdobramento
final do Projeto Folha e a sua dialética: o tautismo. Após décadas de
metalinguagem, auto-referência e comunicação
fática (confundir a relação com o leitor como fosse a opinião pública),
a Folha chega ao destino fatal do Projeto.
A Folha sofre do
mesmo mal da Globo, mídias terminais (impresso e audiovisual) que se fecham em
si mesmas para tentar se salvar do próprio futuro.
Postagens Relacionadas |