O misterioso Triângulos das Bermudas foi pouco explorado pelo cinema,
restringindo-se a filmes e séries de baixo orçamento para a TV. Mas “Triângulo
do Medo ” (Triangle, 2009) do inglês Christopher Smith fez mudar esse cenário –
mais três filmes sobre o tema estão atualmente em produção. Além de se inspirar
em “O Iluminado” de Kubrick e num antigo filme francês chamado "La Jetee" (que
inspirou Terry Gilliam a fazer “Os Doze Macacos”), “Triângulo do Medo” renova
as teorias sobre as estranhas anomalias que aconteceriam naquela região: não
mais fenômenos paranormais ou extraterrestres – agora, o Triângulo das Bermudas
seria uma gigantesca “caixa de Schrödinger”: fenômeno quântico onde diferentes
versões de nós mesmos se sobrepõem de forma catastrófica. “Triangle” se inspira
nas hipóteses discutidas pela Física atual como a “Interpretação dos Muitos
Mundos” e a do “Mundos em Choque”. Filme sugerido pelo nosso leitor João Carlos.
O Triângulo das
Bermudas é um dos mais conhecidos temas para os teóricos da conspiração. Chamado também de “Triângulo do Diabo” é uma área oceânica cujos vértices do
triângulo compreendem Flórida, Ilhas Bermudas e Porto Rico. Anos após anos são
relatados casos de desaparecimento de navios e aviões em misteriosas
circunstâncias como abruptas alterações climáticas e anomalias eletromagnéticas
que fazem enlouquecer bússolas e GPS.
As teorias sobre
as estranhas anomalias dessa região costumam centrar em fenômenos paranormais
ou causas extraterrestres.
Até pouco tempo
o cinema pareceu ignorar o assunto, restringindo-se a citações em passagens
como no filme Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), onde em uma
sequência vemos os ETs devolvendo aviões abduzidos no Triângulo das Bermudas.
No campo
audiovisual o tema tem se restringido a diversos filmes de baixo orçamento
feitos para TV e algumas séries.
Desde Triângulo
do Medo (2009) as coisas parecem estar mudando. Segundo The Hollywood
Reporter mais três filmes sobre o tema estão em fase de produção: um pela
Universal Pictures, outro pela Skydance Productions e o terceiro pela Warner
Bros. intitulado The Bermuda Triangle.
Um novo Triângulo das Bermudas
Triângulo do Medo é um thriller
psicológico britânico escrito e dirigido por Christopher Smith sobre uma mãe
solteira que parte para um passeio com diversos amigos em um veleiro. São forçados
a abandonar o barco depois de uma estranha tormenta, quando salvam-se ao
embarcar em um navio aparentemente abandonado e à deriva. Aos poucos cresce a
suspeita de serem perseguidos por alguém ou alguma coisa.
O filme não fala
explicitamente em “Triângulo das Bermudas”, mas há inúmeras referencias, a
começar o nome do veleiro, “Triangle”.
O filme parece
colocar esse clássico tema das teorias conspiratórias em um novo patamar, daí
talvez o súbito interesse dos grandes estúdios – não mais fenômenos paranormais
ou abduções alienígenas (temas batidos na cinematografia do terror e suspense),
mas agora uma intrigante narrativa sobre anomalias temporais (que lembra
bastante o filme cult Donnie Darko) que aproxima-se das discussões da Física
Quântica como as hipóteses da MWI (Interpretação dos Muitos Mundos) e do MC
(Interpretação dos Mundos em Choque) – sobre esses conceitos clique aqui.
Por assim dizer,
Triângulo do Medo atualiza de forma elegante e instigante as velhas
teorias sobre as anomalias das Bermudas. O que torna o filme ainda mais
atraente é que esse viés quântico através da qual o filme explora a questão do Tempo
vem sob uma avalanche de referencias nas quais o diretor é obcecado: o filme O
Iluminado de Kubrick e um filme curta francês antigo chamado La Jetee
( clique aqui - no qual o filme Os Doze Macacos de Terry Gilliam se
inspirou) que nos anos 1960 já explorava a noção do Tempo em circuito fechado
como um eterno retorno no qual somos prisioneiros.
O Filme – aviso de spoilers à frente
Para fazer uma
resenha desse filme e explorar a riqueza temática que ele provoca é impossível
não recorrer a spoilers. De qualquer forma, acredito que Triângulo do Medo
deve se tornar uma matriz de como o cinema dos próximos anos abordará os
enigmas sobre o Triângulo das Bermudas.
A narrativa se
concentra em Jesse (Melissa George) garçonete e mãe solteira de um filho
autista. Ela se prepara para o seu primeiro momento de lazer depois de uma
maratona de dedicação ao filho. Ela vai embarcar em um veleiro do amigo Gregg e
seus amigos de infância. A viagem é inicialmente monótona mas logo uma tormenta
surge do nada depois de uma inesperada mudança climática. O veleiro não resiste
às ondas gigantescas e todos terminam agarrados ao casco virado da embarcação,
até passar um enorme transatlântico.
Conseguem subir
no navio mas logo percebem que há algo errado: o navio parece estar totalmente
deserto enquanto Jesse tem constantes sensações déjà-vu. Para piorar a
situação, um assassino mascarado começa a persegui-los com uma espingarda.
Os corredores do
navio são intermináveis e em estilo kubrickiano de O Iluminado com salas
estranhamente desertas em art déco. Parece que alguém do futuro está tentando
matá-los – além dos déjà-vus, o molho de chaves da casa de Jesse encontrado em
um dos corredores é uma pista disso.
Logo o
espectador percebe estar enredado em uma bizarra narrativa: após Jesse
conseguir matar o estranho atirador mascarado, depois de todos os seus amigos
serem massacrados, ela testemunha do convés suas “réplicas” aproximando-se do
navio, para repetir toda trama – novamente embarcarem no navio para recomeçar o
mesmo encadeamento de eventos que fatalmente terminarão nos eventos que Jesse
acabou de protagonizar.
Um tempo aparentemente
cíclico de criação de duplicatas que repetem a mesma situação ad infinitum
como, por exemplo, na impactante sequência de uma pilha de cadáveres idênticos
em um dos convés do transatlântico.
Tempo cíclico e tempo helicoide
Jesse descobrirá
que esse atirador mascarado é ela mesma no futuro e cai em si que terá de dar
continuidade a essa cadeia de eventos. Claro que Jesse tentará criar um nível
meta para escapar do aparente determinismo circular que parece aprisionar a
todos: tentará alertar as duplicatas que embarcam no navio, impedir as outras
versões dela mesma mascarada de massacrar os amigos.
Em algum lugar
na cadeia de eventos, alguma versão de Jesse decidiu que a única maneira de
voltar para casa seria matando a todas as réplicas que embarcassem.
Mas o
interessante na cadeia temporal de eventos é que ela não é uma sobreposição
circular, mas helicoide: os acontecimentos se repetem, mais ainda assim se
movimentam para frente no tempo.
Para desespero
da protagonista, aos poucos também descobrirá que cada atitude de
livre-arbítrio para escapar do determinismo temporal, já foi tomada
anteriormente por outra versão de Jesse, sobrepondo-se ao infinito.
Mundos paralelos em choque
Triângulo do Medo é inovador por
aproximar as supostas anomalias do Triângulos das Bermudas ao estranho mundo da
física quântica das hipóteses dos múltiplos mundos e dos mundos em choque.
O roteiro de
Christopher Smith parece se inspirar ou, no mínimo, lembra muito essas hipóteses
atualmente defendidas por filósofos como Nick Bostrom (Oxford University) e
físicos como Howard Wiseman e Michael Hall ( Griffith University da Austrália).
A hipótese dos
Mundos Paralelos ou “Muitos Mundos” baseia-se na chamada “Interpretação de
Copenhagen” de 1957 que considerava a mecânica quântica a partir do “colapso da
função de onda”.
O melhor exemplo para explicar isso é a
paradoxal experiência proposta pelo austríaco Schrödinger: um gato está preso
numa caixa que contém um recipiente com material radioativo e um contador
Geiger. Se o material soltar partículas radioativas e o contador detectar,
acionará um martelo que, por sua vez, quebrará um frasco com veneno, matando o
bichano.
De acordo com as leis da física quântica, a
radioatividade pode se manifestar tanto como onda quanto partícula. Ou
seja, na mesma fração de segundo, o frasco de veneno quebra e não quebra,
produzindo duas realidades probabilísticas simultâneas. Segundo o raciocínio,
as duas realidades aconteceriam simultaneamente dentro da caixa, até que fosse
aberta – a presença de um observador e a entrada da luz intervindo nas
partículas acabariam com a dualidade.
Ambas realidades existem
simultaneamente dentro da caixa. Mas existe a chamada “decoerência quântica”
que garante que essa situação “decaia” para um dos resultados: vivo ou morto.
Isso impede que os “dois gatos” das situações diferentes interajam entre si.
Físicos com Wiseman acreditam
que cada situação diferente cria um universo particular, mundos paralelos em
número infinito. Para ele, todos os estranhos fenômenos quânticos no mundo
microfísico se explicariam pelo choque desses mundos paralelos.
Triângulo do Medo leva esses paradoxos do
mundo microfísico para o macrofísico. E como se o Triângulo das Bermudas fosse
uma gigantesca caixa de Schrödinger e diversas versões do mesmo gato
interagissem entre si de forma catastrófica.
Filmes atuais como Coherence (2013) exploram essa
possibilidade: em um jantar todos os participantes descobrem estar numa espécie
de caixa de Schrödinger, tendo que lidar com suas próprias duplicatas de
universos alternativos que inexplicavelmente estão se encontrando – sobre o
filme clique aqui.
A “segunda chance” e o pessimismo gnóstico
Essa possibilidade do
encontro de mundos alternativos onde talvez tenhamos feito escolhas melhores do
que onde nos encontramos, conduz ao velho tema da segunda chance, tão explorado
pelo cinema. Jesse tem a esperança de retornar nessa sobreposição helicoidal do
tempo para consertar tudo, fazer as melhores opções. Assim como no filme Another Earth (2011) quando uma
duplicata da Terra surge nos céus, trazendo esperança para muitos que lá exista
uma versão melhor de nós mesmos – sobre esse filme clique aqui.
Mas eis que Triângulo do Medo dá o toque do pessimismo
gnóstico: Jesse também está condenada ao esquecimento pelo sono. No final, após
retornar para casa e matar a sua outra versão que maltratava o filho autista,
ela cochila no táxi que a leva para o veleiro no qual partirá novamente para o
passeio fatal. Acorda e nada lembra, a não ser déjà-vus. E tudo recomeçará do
zero...
É o velho tema gnóstico da
prisão no mundo físico através do sono, morte e esquecimento: a morte não é a
libertação, nem o sono cria fantasias de fuga. Fazem apenas nos esquecer e
acreditar na ilusão de que cada dia é um novo dia e que cada reencarnação seja uma nova
vida com esperanças renovadas.
Ficha Técnica |
Título: Triângulo
do Medo (Triangle)
|
Diretor:
Christopher Smith
|
Roteiro: Christopher Smith
|
Elenco: Melissa George, Joshua McIvor,
Jack Taylor, Micheal Dorman
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Produção: Icon Entertainment, Framestore, UK Film Council
|
Distribuição:
Icon Home Entertainment
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Ano:
2009
|
País: Reino
Unido, Austrália
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