O terror independente “Deep Dark” (2015) é um exemplo de como arquétipos
são os principais elementos na composição atual de argumentos e roteiros para
filmes. Certa vez, diretor Michael Medaglia imaginou uma cena do buraco em uma
parede de onde saiam mensagens misteriosas.
Achou a cena interessante. E todo o resto da narrativa cresceu em torno
dessa imagem. Em muitos aspectos “Deep Dark” assemelha-se a “Quero Ser John
Makovich” de Spike Jonze ao colocar um buraco como um elemento fantástico,
misterioso e aterrorizante. Com isso, “Deep Dark” aproxima-se da recorrência
simbólica do buraco como símbolo mágico e sagrado em todas as culturas: da
China e Índia antigas, passando pelo surrealismo das obras de Salvador Dali até
chegar ao “Mar de Buracos” da animação “Yellow Submarine” dos Beatles. Filme
sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
Desde que Lewis
Carroll escreveu a história de uma menina chamada Alice cuja narrativa começa
com a protagonista caindo na toca de um coelho para conhecer um estranho mundo chamado
“País das Maravilhas”, a ficção Ocidental mergulhou junto no antiquíssimo
simbolismo dos buracos e cavernas como ante-câmeras de mundos e deuses.
Um simbolismo que
antecede o mundo helenístico grego onde as cavernas se transformaram, com
Sócrates e Platão, em parábolas da limitação que impede de ver a verdade, como
na platônica Alegoria da Caverna. E com o Catolicismo, a simbologia só piorou:
entrada para lugares infernais, pecado, castigo e punição.
Antes disso,
buracos e cavernas eram o início da jornada de encontro com deuses, mentores,
lugar de cura (como, por exemplo, no xamanismo indígena) e conexão com o mundo
transcendente que vai além dos nossos sentidos.
Na cinematografia,
as representações dos buracos e cavernas se infiltraram em filmes onde metrôs,
estacionamentos subterrâneos e becos escuros são os focos das narrativas. Ou
são locais onde esconde-se o mal (pense nos sinistros ovos que chocam monstros
no filme Alien ou serial killers que
perseguem vítimas em O Último Trem,
2008) ou então são passagens para mundos mágicos onde os sonhos podem se
realizar (Quero Ser John Malkovich -
1999).
Deep Dark, filme independente do diretor Michael
Medaglia, insere-se nessa simbologia pré-helenística sobre buracos, misturando
elementos de terror e comédia. O filme lembra muitos elementos do filme de
Spike Jonze Quero Ser John Malkovich:
Hermann, um escultor frustrado e fracassado artisticamente está prestes a se
matar quando encontra um estranho buraco falante em uma parede. Do buraco
ouve-se a voz de alguém ou de alguma cosia que poderá realizar todos os seus
sonhos.
A estranha
entidade que habita o buraco na parede poderá inspirá-lo a fazer sua maiores
obras-primas e fazê-lo alcançar o sucesso... assim como aquele buraco teria
inspirado no passado artistas do calibre de Pollock, Andy Warhol entre outros
da cena artística dos EUA.
Como no filme de
Spike Jonze temos um artista loser (em 1999 um titereiro e aqui um escultor) e
um estranho buraco que pode levar a realização dos sonhos mais selvagens e
também dos maiores pesadelos.
O Filme
“Eu me lembro que
a primeira ideia veio da cena que imaginei de alguém que encontra uma corda
saindo de um buraco na parede de seu novo apartamento. Ele puxa a corda e na
ponta encontra um bilhete com uma mensagem importante para ele. Achei essa cena
interessante e o resto da história cresceu em torno disso”, explicou Michael
Medaglia sobre o processo criativo do argumento de Deep Dark – leia a entrevista completa aqui, em inglês.
Temos aqui o
exemplo de como simbologias arquetípicas são capturadas em processos de
criação. Os arquétipos surgem primeiro e a narrativa é um pretexto para a
simbologia ser desdobrada.
Hermann (Sean McGrath)
é um artista que acredita que nasceu para ser destinado a alguma coisa de
importante: com sua arte fazer as pessoas ver cosias diferentes, tocá-las e ver
a si mesmas de forma diferente, mas... algo não deu certo. Quase chegando 30
anos mora na casa da mãe e vive no porão montando móbiles e instalações que
tenta emplacar em alguma exposição.
Mas nada da certo,
além de ser ver humilhado pelo sucesso de outros artistas carreiristas e
oportunistas e sem talento. Como a sequência impagável do artista rival que
inventou o conceito de “arte instantânea”, ganhando contrato exclusivo de uma
galeria. Para o desespero de Hermann.
O auge do
infortúnio vem quando sua mãe decide alugar seu quarto para um estranho, para
poder lidar com as despesas domésticas. Desesperado, liga à contragosto para
seu tio Félix (John Nielsen - um artista “picareta” bem sucedido) pedindo
conselhos. Félix deixa-o morar em um velho apartamento da sua propriedade, para
onde Hermann se muda com seus móbiles e instalações.
Hermann recebe um
ultimato de Devora Klein (Anne Sorce), proprietária da Galeria: ele terá duas
semanas para fazer algo de brilhante, senão será expulso da galeria. Hermann
então se tranca no sujo e velho apartamento. Como nada dá resultado, entra em
desespero e à beira do suicídio se depara com a cena arquetípica imaginada pelo
diretor descrita acima.
E a mensagem do
bilhete é “seja gentil... quer conversar comigo?”. A partir desse momento
começa entre ambos (Hermann e o buraco) um relacionamento perturbador e
sedutor, com sequências incrivelmente bizarras e macabras, chegando às
fronteiras da perversão sexual.
A voz é feminina e
sexy – feita por Denise Poirier. O buraco quer ser tocado sensualmente e
beijado. Em troca, dá a Hermann estranhas bolas viscosas que são penduradas em
seus móbiles e instalações. O que torna seus trabalhos inacreditavelmente
atraentes e irresistíveis para as pessoas.
Os simbolismos dos buracos
Em uma das cenas,
um móbile provoca uma verdadeira orgia entre o público da galeria – empresários
e ricaços. O que lembra a sequência-chave do filme Perfume: A História de Um Assassino (2006) onde o perfume jogado
pelo protagonista na multidão que vem assistir ao seu enforcamento produz uma
orgia generalizada, salvando-o da morte – sobre esse filme clique aqui.
Medaglia mantém as
rédeas curtas nas performances dos atores e na narrativa, evitando que o filme
caia no terror gratuito ou na comédia surreal. Na medida certa, o filme
consegue explorar a essência do sentimento do sagrado e do mistério diante do
Estranho e do Fantástico.
Rudolf Otto
escrevia que o Estranho e o Fantástico produzem a essência do sentimento do
sagrado: o mysterium tremendum fascinans
et augustum – a experiência “numinosa”. Isto é, atemoriza, mas, ao mesmo
tempo fascina e seduz. Hermann vê no buraco da parede a chance da sua vida:
sucesso e carreira. Mas o Estranho ao mesmo tempo o seduz, fascina, apesar do
estranho fenômeno causa-lo repulsa e estranheza.
A recorrência dos buracos na cultura: o disco de jade chinês, o surrealismo de Dali e o "Mar dos Buracos" do "Yellow Submarine" dos Beatles |
Medaglia consegue
expressar no filme essa fina ambiguidade, evitando que o protagonista caia na
pura manipulação e oportunismo em busca do sucesso – Hermann também está
fascinado pelo estranho fenômeno metafísico em pleno apartamento onde habita.
Da Índia primitiva aos Beatles
No filme, o buraco
na parede transforma-se no personagem central, que produzirá as sequências mais
bizarras misturando o terror e o fantástico.
Em todas as
culturas, o arquétipo do buraco é um importante símbolo que possui dois
aspectos principais que são bem explorados em Deep Dark: o nível biológico, o poder de fertilização relacionado a
rituais de fertilidade – a identificação com o órgão sexual feminino. E em um
nível espiritual como um portal para o Outro Mundo- a adoração por pedras
furadas é muito comum em diversas culturas.
Na Índia primitiva
acreditava-se que os buracos era portais para outros mundos e atravessá-los
livraria a alma do ciclo do Karma; o
ideograma Pi entalhado no disco de
jade chinês com um buraco no meio como símbolo do céu representando o brilho
espiritual do céu que penetra no mundo; a obsessão do pintor surrealista
figurar buracos como formas regulares ou janelas; a sequência do “Mar dos
Buracos” na animação Yellow Submarine
dos Beatles – são exemplos da recorrência desse arquétipo em todas as culturas.
Mas em Deep Dark o buraco na parede é aquilo
que poderá livrar o protagonista do seu Karma;
mas também poderá realizar os piores pesadelos.
Ficha Técnica |
Título: Deep
Dark
|
Diretor: Michael Medaglia
|
Roteiro: Michael Medaglia
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Elenco: Sean McGrath, Denise Poirier,
Anne Sorce, Monica Graves, John Nielsen
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Produção: Polluted Pictures, Vitamin M
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Distribuição: Uncork’d Entertainment
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Ano: 2015
|
País: EUA
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