terça-feira, dezembro 22, 2015

Pôsteres de "Central do Brasil" e "Que Horas Ela Volta?": coincidência ou sincronicidade?


Uma incrível semelhança entre os pôsteres promocionais dos filmes brasileiros “Central do Brasil” (1998) de Walter Salles e “Que Horas Ela Volta?” (2015) de Anna Muylaert. O “Cinegnose” não acredita em coincidências, mas em sincronicidades: os dois filmes são apontados como obras-símbolos de duas eras: o primeiro filme, a era FHC; o segundo, a era Lula. Por que os dois pôsteres recorrem à mesma composição imagética? Há algo que os une, mesmo com um intervalo de 17 anos: como filmes-símbolos de cada época, representam iconicamente passado versus futuro; novo versus velho. Além de cada um desses filmes expressarem as condições pelas quais foram produzidos: em 1998 uma co-produção Brasil/França e em 2015 uma produção Globo Filmes.

Podemos considerar o filme um documento primário de uma época. Através de imagens e movimento expressam o imaginário e sensibilidade de cada época. E também as condições de produção através das quais foi realizado.


O que dizer então da semelhança entre os pôsteres promocionais de dois filmes brasileiros distantes 17 anos no tempo: Central do Brasil (1998) de Walter Salles, e Que Horas Ela Volta? (2015) de Anna Muylaert. Quem apontou essa “coincidência” foi o crítico Ricardo Calil do blog O Videota – clique aqui.

Para o crítico, essa “coincidência” se juntaria a ainda duas outras: a temática (os dois filmes tratam de relações maternais não biológicas construídas por circunstâncias sociais) e simbólica – os filmes são apontados como obras-símbolo: Central do Brasil a era FHC; e Que Horas Ela Volta, a era Lula.

Como os leitores desse blog devem saber, o “Cinegnose” não acredita em coincidências, mas em sincronicidades. Cada um desses filmes certamente foi uma síntese do imaginário da sua época – Central do Brasil que pelo seu realismo foi considerado “o retrato da tragédia brasileira”; e Que Horas Ela Volta?, um novo Brasil onde os nordestinos não vem mais para o Sul como mão de obra barata, mas para estudar. E as tensões entre classes sociais que essa nova realidade produz.

No site oficial do filme de Walter Salles, a protagonista Dora (Fernanda Montenegro) é descrita como “uma camelô de sessenta e poucos anos que luta para sobreviver no Brasil do ‘real’... optou pela malandragem como forma de sobrevivência e não se arrepende disso”. Dora aproveitava-se do analfabetismo dos passageiros da Central do Brasil para escrever cartas para eles e não enviá-las para ficar com o dinheiro dos selos.


O trajeto de Dora levando o menino Josué do Rio de Janeiro para o interior nordestino (road movies é o estilo de Walter Salles) revelava a dura vida das pessoas que migram pelo país na busca de uma vida melhor ou para reaver parentes deixados para trás.

Retórica Visual

A cabeça de Dora no colo do menino Josué era a compaixão do futuro em relação àquele país de 1998, quebrado e estagnado economicamente e de joelhos diante do FMI.

Agora, a mesma retórica visual aparece no pôster de Que Horas Ela Volta?, desta vez com os sinais trocados – Val, a empregada doméstica alienada e oprimida pelas regras de segregação de uma casa de classe média paulistana, olha com carinho o filho de seu patrão. Lá em 1998, o futuro olhava o presente; em 2015, o passado obstinadamente tenta resistir ao futuro.

 Filmes distantes no tempo estão entrelaçados por essa sincronia: Velho/Novo, Passado/Futuro. Ao abordar a transformação moral de Dora na sua viagem ao interior profundo do Nordeste, Walter Salles apontava para o futuro representado pelo menino Josué em busca do seu pai. Josué, o futuro, acaricia o velho Brasil representado por Dora.

E esse futuro está em 2015, agora invertido, onde Val tenta resistir à filha Jéssica que confronta a velha ordem estagnada que tenta se sustentar  num País que se torna sócio-economicamente mais dinâmico.

No pôster de 1998 Dora é o personagem que saiu do Brasil hiper-inflacionário onde as pessoas não viam o amanhã: viviam o dia-a-dia de pequenos trambiques ou grandes golpes pensando suas vidas a curtíssimo prazo. E no pôster de 2015, um Brasil meritocrático onde a divisão de classes luta para deixar de ser divisão em castas. A escolha de uma mesma cena para os pôsteres não foi mera coincidência.


São filmes que se tornaram autoconscientes da sua importância histórica: lá na década de 1990, o pontapé que faltava para oxigenar o cinema brasileiro pós-derrocada do Cinema Novo com a ditadura militar e Embrafilme. De certa forma, Central do Brasil abriu as portas para a produção cinematográfica brasileira de qualidade: Cidade de Deus de Fernando Meirelles, e Tropa de Elite de José Padilha, foram consequências do sucesso de Salles.

  E agora em 2015, Que Horas Ela Volta? expressou o neodesenvolvimentismo da era Lula onde uma relativa mobilidade de classes mostrou o quanto a velha ordem do quarto de empregada/entrada de serviço estava velha.

Condições de produção

Também Central do Brasil e Que Horas Ela Volta? foram filmes que expressaram claramente suas condições de produção.

Desde o início Central do Brasil foi um filme internacional, uma coprodução Brasil e França – o filme foi escolhido pelo Ministério da Cultura francês para receber financiamentos da Fons Sud Cinema.


O resultado foi um filme voltado para o mercado internacional, com um roteiro estruturado numa imagerie arquetípica (a estrada, paisagens desoladas – o deserto - , um protagonista buscando uma segunda chance e uma criança atrás das suas raízes) e uma percepção cinematográfica do Brasil bem ao gosto das audiências estrangeiras: locações exóticas, pobreza e gente sofrida mas com esperanças em um país distante no Terceiro Mundo. Salles procurou traduzir a realidade brasileira através de uma mitologia universal.

Graças a essa estratégia, o filme concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, recebendo o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e o Urso de Outro e de Prata para Melhor Filme e Atriz – Fernanda Montenegro.

Produzido pela Globo Filmes, Que Horas Ela Volta? também ambicionava o mercado internacional. Como vimos em postagem anterior, o roteiro permitiu uma dupla leitura: uma para o mercado interno (suposta crítica social) e outra para o mercado externo com o título The Second Mother – um drama familiar de pais ausentes onde uma empregada doméstica assume o papel afetivo da mãe biológica.

Mas, audiências estrangeiras querem consumir o exótico e o diferente: parece que o filme foi um drama urbano demais para uma produção cinematográfica egressa de um país emergente – o público estrangeiro espera, no mínimo, exotismo.

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