Até aqui nos filmes de terror o Mal, fantasmas e maldições sempre se
espalharam principalmente por meio de linhas telefônicas, monitores de TV e
ondas de rádio. Isso sem falar das contaminações biológicas pelo sangue ou ar.
Ou seja, o Outro Mundo sempre nos alcança no mundo cinematográfico através das
tecnologias analógicas e meios físicos. O que dizer então de filmes recentes
onde o sobrenatural manifesta-se através das tecnologias digitais como Internet
e dispositivos móveis? É verossímil espíritos agirem através de sinais
fragmentados e binários? Se os fenômenos ocultos, mágicos ou espirituais
baseiam-se em um princípio de semelhança (o Outro Mundo precisa sempre de um
meio físico ou contínuo para estabelecer uma ponte com o mundo físico), seria
possível fantasmas ou forças espirituais manifestarem-se por meio das mídias digitais?
Em postagem
anterior sobre o filme The Zohar Secret,
discutíamos como a partir do Império Romano e a instituição da Igreja Católica
como a nova religião oficial, os fenômenos ocultos e místicos foram relegados
ao mal e a demonização. Baseando-se unicamente na Teologia e na fé a Santíssima
Trindade, relegou todos os fenômenos místicos ao campo do Mal levando a séculos
de combate às “heresias” e a instituição dos tribunais de Inquisição na Idade
Média.
A descoberta da eletricidade nas suas diversas
formas (contínua, alternada, raios catódicos, ondas hertzianas,
eletromagnetismo etc.) nos séculos XVII-XVIII inesperadamente tirou os
fenômenos ocultos do campo religioso para o científico. A Era da Informação
trouxe o encontro entre eletricidade, informação e espiritualismo.
Pesquisadores como
Erik Davis acreditam que o
Espiritualismo foi a primeira religião da Era da Informação. Os fenômenos
mediúnicos, mesas girantes, escritas automáticas etc. estudados por Alan Kardec
e pela Teosofia de Madame Blavatsky e Leadbater no século XIX, surgem
simultaneamente à descoberta do eletromagnetismo e na transformação da
eletricidade em informação com o telégrafo. Os próprios fenômenos paranormais começam
a ser interpretados como fenômenos eletromagnéticos de comunicação spiritual –
leia DAVIS, Erik, Techgnosis – myth,
magic and mysticism in the age of information, New York: Serpent Tail,
2004.
Com a literatura
gótica no século XIX o oculto, o místico e o fantástico saem do campo religioso para ingressarem no científico (Frankenstein de Mary Shelley) ou na luta
da ciência vitoriana contra o Mal - Drácula de
Bram Stoker.
Ciência, espiritualismo e filmes de terror
Nessas antigas
conexões entre o Gótico, a ciência e o espiritualismo talvez estejam as raízes
de um tema recorrente nos filmes de terror – a transmissão do Mal através da
eletricidade e eletromagnetismo: televisão (ondas hertzianas ou raios
catódicos) como no filme Poltergeist,
telefone com chamadas de mortos ou do futuro (Uma Chamada Perdida, 2003), fitas VHS (O Chamado, 2002), ondas de rádio (Pontypool, 2008), gravadores que captam vozes de espíritos (Vozes
do Além, 2005) ou a própria eletricidade (Choque
Mortal, 1998 onde um impulso inteligente de eletricidade toma conta das
casas).
Mas em todos esses
filmes há um outro ponto comum: entidades espirituais transportam-se ou
comunicam-se por meio das tecnologias analógicas, isto é, por meio de sinais
que analogamente imitam a fonte – o espiritual, o Mal etc.
O que podemos
dizer sobre filmes atuais onde o Mal ou entidades espirituais manifestam-se por
meio de tecnologias digitais? Em filmes como Tron (1982 e 2010), Pulse
(2006) ou Unfriended (2015) o
espírito humano ou do além manifestam-se através de bytes ou sinais
descontínuos – em Tron um usuário é
digitalizado para o interior de um computador onde encontra programas malignos,
em Pulse onde um misterioso sinal na
Internet proveniente do além que pretende controlar as pessoas levando-as ao
suicídio e em Unfriended um espírito
de alguém que se matou vítima de cyberbullying busca vingança nas redes sociais.
Se pensarmos que
os fenômenos ocultos, mágicos ou espirituais baseiam-se por um princípio de
semelhança (o Outro Mundo precisa de algum liame físico ou contínuo para
estabelecer uma ponte com o mundo físico), seria possível fantasmas ou forças
espirituais manifestarem-se por meio da digitalização? Espíritos podem ser
convertidos em bytes? Ou apenas poderiam manifestar-se nesse mundo por meio de
fenômenos físicos por interpretação analógica?
Um horror verossímil?
Em um mercado
saturado como é o dos filmes de horror que já mexeu com as criaturas mais
assustadoras dos mais diversos estilos e nas mais diversas tecnologias, por que
não abordar uma que tenha origem nas mídias digitais? Claro, estamos no mundo
da ficção e gostamos de bons momentos de sustos e tensão, mas os ambientes
digitais permitem criar um horror verossímil?
Para penetrarmos
nesse tema tão estranho vamos fazer uma breve introdução sobre as noções de
“analógico” e “digital” e uma rápida passagem pela, por assim dizer, semiótica
da comunicação espiritual.
A Magia ou a
Grande Ciência Sagrada é uma forma de Ocultismo onde estuda-se os segredos da
Natureza conectando-se com as faculdades internas espirituais e ocultas
humanas. A descoberta da eletricidade como uma energia livre existente na
Natureza seria a descoberta dessa manifestação física da própria
espiritualidade.
Essa manifestação
se basearia no princípio da semelhança
– a eletricidade seriam ondas análogas as que cruzam as águas de um rio ou os
sons que atravessam o ar. Formas fluidas que se assemelhariam aos espíritos,
assim como a fumaça do charuto do médium ou “mula” em terreiro de umbanda ou
líquidos condutores como a cachaça, a água benta, água da pia batismal ou a
água do rio onde os iniciados serão batizados.
Semioticamente
estamos lidando com signos indiciais, signos que estabelecem uma representação
por contiguidade. Isto é, signos que criam um vínculo físico e/ou existencial
com o objeto, no caso a dimensão espiritual. Rituais, feitiços e orações seriam
“magias simpáticas” - baseiam-se no
princípio de semelhança por manipularem signos que são liames físicos ou
condutores por meio de mídias que imitam a forma ou a natureza das entidades
espirituais.
Assim como o
impulso elétrico que viaja pelas linhas telefônicas imita as ondas sonoras que
entram no bocal do fone ou como o pó de óxido de ferro na superfície da fita
cassete imita o relevo dos graves, médios e agudos das ondas sonoras.
Magia e tecnologia analógica
Por isso, a magia
simpática relaciona-se com a tecnologia analógica: representação em forma de
onda que tem como premissa a dinâmica física – baseia-se na proporcionalidade
entre as alterações físicas e nas alterações nos signos que a representam por
meio de uma curva contínua.
Ao contrário, no
digital não temos uma representação mas uma transcrição baseada em símbolos
arbitrários, descontínuos, de um a zero que são agrupados em caracteres
alfanuméricos.
Sem o liame físico
que a magia simpática e os signos indiciais oferecem ao mundo espiritual
manifestar-se nesse mundo seria impossível o fenômeno do oculto. A
descontinuidade do digital no máximo ofereceria um canal de simples comunicação
– a transcrição em zero e um de algum discurso de intenções. Mas o espírito
jamais conseguiria manifestar-se fisicamente ou impor sua vontade entre nós, os
vivos.
Para pesquisadores
como Erik Davis, as tecnologias analógicas baseadas na eletricidade e
eletromagnetismo foram as herdeiras diretas de todas as ciências ocultas de
muitos séculos. Por um cientista como Nikola Tesla (descobridor da corrente
alternada e pioneiro dos equipamentos eletroeletrônicos no início do século XX)
viram na eletricidade uma forma alquímica e livre de lidar com a Natureza,
chegando a ver como ponte de comunicação e manifestação entre outros mundos. O
que fez Tesla terminar seus dias no mais completo esquecimento – sobre isso clique aqui.
Ao contrário, as
tecnologias digitais visam unicamente a rapidez da transmissão pela compactação
dos dados descontínuos. Pela sua própria
natureza fragmentária, impossibilita criar um canal físico com o Outro Mundo.
Paradoxalmente é
nas tecnologias digitais que veremos a manifestação do sobrenatural na sua
forma mais irracional ou non sense. Despachos ou simpatias através de
sites na Internet, filmes de horror onde o Mal se manifesta em ambientes
digitais ou formas secularizadas de magia com consultas de Tarot ou Astrologia
on line. São apenas formas nostálgicas de reviver uma ordem antiga mais
racional e lógica do que a atual.
Postagens Relacionadas |