quinta-feira, agosto 17, 2023

A simbologia esotérica e política dos gatos em 'Um Dia, um Gato'


Um clássico cult da República Tcheca que consegue convergir crítica política, entretenimento e simbologia esotérica. Graças à presença disruptiva de um gato com óculos escuros. Esse é o filme “Um Dia, um Gato” (Az Pridje Kocour, 1963 aka When the Cat Comes eThe Cassandra Cat), um conto de fantasia satírica e colorida do diretor Vojtech Jasný. Da simbologia crepuscular dos gatos à crítica política de um país sob a dominação soviética, “Um Dia, um Gato” transforma esse felino no veículo através do qual se revela a hipocrisia dos sistemas autoritários. Uma trupe circense chega a uma pequena cidade com um curioso gato usando óculos escuros. Mas, se retirá-los, o seu olhar confrontará os humanos, revelando, através das cores, a verdade, a desordem e o caos.

Muito tempo antes dos gatos dominarem a Internet com seus memes e vídeos engraçados, ou sequer a Internet existir, os gatos já intrigavam a mídia, particularmente o cinema. Rhubarb (1951), The Three Lives of Thomasina (1963), The Incredible Journey (1963) ou That Darn Cat (1965) são apenas alguns títulos clássicos – gatos que viram herdeiros de milionários, gatos que revivem, gatos que se perdem e reencontram o caminho de volta para casa, além de um gato siamês no meio de uma trama de sequestro envolvendo o FBI.

É um evento ao mesmo tempo sincromístico e midiático. Em primeiro lugar, pelo simbolismo arquetípico que os gatos representam: o gato é um arquétipo da mediação com outros mundos. 

Não importa o simbolismo ou a cultura, os gatos parecem guardar segredos de outro mundo eternamente para si mesmos, enquanto olham com malícia para nós. Ou os caçamos como fizeram com bruxas e felinos na Inquisição católica ou os vemos como guardião da casa e um símbolo da bondade doméstica como o fazem os japoneses ou como fizeram na Roma antiga – o gato era sagrado para Diana, a deusa da Lua.

Como guardiões do Outro Mundo no antigo Egito eram também sagrados e representados na cabeça da deusa lunar Bastet – em sua honra eram mumificados e colocados juntos com as múmias de seus donos para acompanhá-los como guias na jornada para o Outro Mundo.

Mas, ao mesmo tempo, um evento midiático. Mais precisamente, um fascínio: diferente dos cães que geralmente reconhecem as câmeras (e mais provavelmente seus donos – afinal, cães são animais gregários), ao contrário, os gatos são mais estoicos, indiferentes e independentes – parecem desprezar a câmera e seu dono que o observa.

Talvez seja essa atitude em relação aos humanos que os tornou um repositório de sentidos arquetípicos: um animal que vive entre dois mundos, um ser crepuscular.

Nessa teia simbólica, o clássico e cult filme tcheco Um Dia, Um Gato (Az Pridje Kocour, 1963 – aka When the Cat Comes e The Cassandra Cat) acrescente mais uma conexão: a política – através da imaginação e a fantasia, desafiar a estética do realismo socialista na Tchecoslováquia, dominante no bloco de países sob o comando da União Soviética. Não para menos, cinco anos depois, entrou numa lista de filmes que deveriam ser banidos do país.

A moralidade satírica e colorida do diretor Vojtech Jasný em Um Dia, Um Gato representou um nascente espírito de época que culminou na exortação da Revolução Estudantil de Maio de 1968 na França: “A imaginação no poder!” – o poder do imaginário, das utopias, da arte e da cultura sobre o Estado totalitário.



Repleto com linhas de diálogo com trocadilhos engenhosos e efeitos espaciais, fotografia e animações caleidoscópicas, o filme foi representativo da chamada “Nova Onda” do cinema tcheco que mesclava entretenimento com oposição política dentro de um sistema cultural opressivo – que levou Jasný e outros cineastas ao exílio, principalmente depois que as tropas soviéticas invadiram o país em 1968.

Toda a ação acontece numa pequena cidade boêmia no interior do país, que recebe a visita de uma trupe circense, comandada por um mágico, uma acrobata chamada Diana que carrega no seu colo um gato com a capacidade de revelar, através das cores, o verdadeiro caráter das pessoas: vermelho para os amantes; amarelo para traidores; roxo, para os mentirosos; e cinza para os ladrões.

Obviamente isso é um potencial problema quando uma pessoa diante de todos assume a cor correspondente. Por isso, o gato deve se manter com óculos escuros, para que ele não confronte ninguém com os olhos e revele o recôndito da alma de cada um.

O Filme

Um Dia, Um Gato começa com um narrador que observa todo o vilarejo do alto de uma torre: “Vou contar uma história com mais verdade do que fantasia”, diz o imigrante grego Kastelán Oliva, o narrador irônico da história que vai revelando todas as hipocrisias e mentiras dos moradores da cidade: o agricultor que finge ter artrite para não trabalhar, a fofoqueira do vilarejo, o policial de trânsito que induz acidentes (“sorte que ninguém o obedece”, diz, numa crítica explícita ao Estado), fiscais de Distrito que chegam à cidade apenas para beber no hotel (mais críticas ao Estado) e assim por diante.

Ele do alto observa a todos com uma pequena luneta, introduzindo o espectador aos personagens e suas peculiaridades que acompanharemos ao longo do filme.



Para depois o filme se concentrar na oposição entre as crianças imaginativas e criativas e o mundo adulto cercado de mentiras e hipocrisias. Para começar, o diretor da escola, Karel (Jiri Sovák) especialista em taxidermia – anda com uma espingarda para acertar animais e empalhá-los. Ele os exibe orgulhosamente na Diretoria. Moralista e defensor da família e instituições autoritárias, assedia secretamente a datilógrafa da secretaria da escola.

Vive pegando no pé e ameaçando de demissão o professor Robert (Vlastimil Bridsky) – libertário, tenta dar uma dinâmica livre às aulas. Inclusive convidando o irônico grego Oliva para contar suas aventuras como pescador. Para o diretor Karel, tudo não passa de uma perigosa anarquia.

Ele conta para o professor Robert e seus pequenos alunos a história de como conheceu uma antiga paixão que possuía um gato com dons especiais. O animal sempre ficava de óculos escuros e, quando este era retirado, tinha a capacidade de colorir as pessoas ao redor de acordo com seus sentimentos e personalidades. 

Tudo é interrompido pelo diretor autoritário. Para ele, imaginação e fantasia não fazem sentido num mundo dominado pela “Ciência” (a metáfora para o Estado totalitário). A Ciência representada pela Taxidermia e os animais empalhados do diretor Karel – um mundo imóvel, sem vida , fazendo contraponto à energia e criatividade das crianças que dançam, desenham e inventam histórias.

Tudo muda quando chega à pequena cidade uma trupe circense liderada por um mágico, um grupo de musicistas de jazz tradicional (o jazz era considerado à época um estilo de música de resistência underground no Leste europeu) e a trapezista Diana (Emília Vásáryová) que carrega nos braços um insólito gato malhado com óculos escuros.



O momento central do filme é o espetáculo que o grupo faz na praça central da cidade. Tudo começa com um inocente show de magia, no qual o mágico manipula no ar objetos e peças de roupa. Aos poucos tudo vira uma metáfora contra o autoritarismo do diretor da escola e a submissão passiva das pessoas. E o ápice é quando Diana tira os óculos escuros do gato: o olhar do felino confronta os espectadores, que começam a adquirir as cores correspondentes aos traços ocultos das suas personalidades: paixão, infidelidade, falsidade, demagogia, imoralidade etc.

É quando Um Dia, Um Gato começa a jogar brilhantemente com o tempo e as cores graças à extraordinária cinematografia de Jaroslav Kučera, que fotografa em widescreen panorâmico de 35 mm em uma paleta de cores em grande parte em tons de cinza. 



Mantendo a maior parte do filme uma aparência intencionalmente maçante sinônimo das inclinações temáticas do filme (liberdade versus autoritarismo), de repente tudo explode em uma fantasmagoria caleidoscópica de sobrecarga sensorial de cores. O contraste gritante entre um olhar quase monocromático da normalidade versus o visual hipercinético e psicodélico desencadeado através da magia é uma experiência de choque.

Um Dia, Um Gato é um raro filme político que evita o panfletarismo ideológico explícito: mantém o equilíbrio entre o entretenimento e a poderosa metáfora política das cores que mostram o quanto aquela pequena cidade é maçante, cinza e conformista.

Mas, principalmente, hipócrita. Graças ao olhar mágico do gato. 

Por isso, o argumento do filme parece estar fortemente enraizado no simbolismo arquetípico heterogêneo do felino que oscila entre tendências benéficas e maléficas – do mau augúrio (como no Japão) à sabedoria superior (o único animal que não chorou com a morte de Buda), o gato seria um animal crepuscular, canal de comunicação entre dois mundos.

O animal perfeito para instaurar o caos naquela ordem mantida pelas aparências: vivendo entre dois mundos, é o único capaz de ver de fora as hipocrisias das relações humanas.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Um Dia, um Gato

Diretor: Vojtech Jasný

Roteiro:  Jirí Brdecka,  Vojtech Jasný, Jan Werich

Elenco:   Jan Werich,  Emília Vásáryová, Vlastimil Brodský

Produção: Filmové Studio Barrandov

Distribuição: Artkino Pictures

Ano: 1963

País: Tchecoslováquia

   

 

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