quinta-feira, março 16, 2023

Realismo capitalista e hipo-passado no filme '65 - Ameaça Pré-Histórica'


Se no final do século XX falava-se no “fim da História” (o triunfo do liberalismo político e econômico), agora nesse século temos uma ideologia mais expansiva e fluida, na cultura, entretenimento, jornalismo e publicidade: o “realismo capitalista” - uma percepção fluida, desesperançosa e impotente de que a realidade é incontornável. Tão incontornável que o realismo do presente pode ser projetado no passado, mesmo que seja em 65 milhões de anos atrás. Um astronauta cai na Terra, em pleno final do período Cretáceo, no meio de uma cadeia alimentar na qual os dinossauros dominam. Não, não é viagem no tempo. Ele vem de uma avançada civilização extraterrestre. Tão avançada que possui as mesmas mazelas econômicas da nossa Terra atual. É o filme “65 – Ameaça Pré-Histórica” (65, 2023), um thriller enxuto e direto de sobrevivência. Tão direto que as mazelas econômicas do presente estão em todo Universo, na pré-história. O capitalismo tão realista que se tornou interplanetário. Bem-vindo ao hipo-passado.

Em 1989 o filósofo Francis Fukuyama decretava o “fim da História”: com a derrota do fascismo na II Guerra Mundial e a queda do bloco soviético, estaria acabado os grandes eventos da História. Isto é, o fim das grandes disputas ideológicas que marcaram o século XX entre liberalismo, fascismo e comunismo. Com o triunfo do primeiro, tornando-se a economia de mercado e a democracia liberal as ideias-força para a organização da sociedade.

A crise dos tigres asiáticos, o crash de 2008, a mitigação de um novo crash em 2020 com a pandemia e a ascensão global da extrema-direita alt-right no século XXI mostraram que não só a História continua sendo contada, mas também economia e democracia liberal continuam com suas crises cíclicas.

Porém, no lugar do “Fim da História”, a indústria de entretenimento e publicidade criaram uma espécie de atmosfera penetrante que invade a produção cultural, a regulação do trabalho e a educação: o chamado “realismo capitalista”, uma barreira invisível que nos impede de imaginar uma sociedade inteiramente outra. Ou melhor, seria mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

Como descreve o crítico cultural Mark Fisher, mais do que um hype de um filósofo, o realismo capitalista é muito mais expansivo: a construção propagandística de uma percepção fluida, desesperançosa e impotente de que a realidade é incontornável. Uma coisificação da vida como uma ordem natural das coisas – as coisas se sucedem porque essa é sua ordem, seu fluir natural, como se nada tivesse sido feito para as coisas serem assim – leia FISHER, Mark. Realismo Capitalista, Autonomia Literária, 2020.

Essa percepção sempre esteve latente no entretenimento no pós-guerra, mas ainda num contexto de propaganda contra a ameaça do bloco soviético. Por exemplo, para séries de animação como Os Flintstones ou Os Jetsons, o capitalismo e a sociedade de consumo são tão naturais que eram projetados na idade da pedra ou na utopia futurista dos carros voadores e mordomos-robôs.

Mas o filme de ficção científica 65 – Ameaça Pré-Histórica (2023) chega ao paroxismo: o realismo capitalista extrapola os limites terrenos, para se expandir para outros mundos e civilizações. Neoliberalismo interestelar!

Sua produção foi marcada por percalços: rodado há dois anos, perdeu cinco datas de lançamento, mas está chegando esse ano sem muito estardalhaço. Uma bagunça mercadológica. Mas, mesmo assim, um filme curioso porque traz os dinossauros de volta às telas e uma narrativa de luta pela sobrevivência em pleno fim do período Cretáceo – daí, há 65 milhões de anos.

Uma estranha mistura da atmosfera de Jurassic Park com um sabor do clássico Planeta dos Macacos de 1968. Claro, o final do período Cretáceo está muito distante da aparição das primeiras formas humanóides que, desde então, supostamente já aspiravam pela ordem econômica ideal (o Capitalismo) que trouxesse segurança e progresso para a civilização.

Não! Enquanto na Terra tiranossauros rex e velociraptors dominavam a cadeia alimentar, em outros planetas já havia civilizações avançadíssimas e que ignoravam completamente a existência desse pequeno planeta primitivo do sistema solar.



Até uma nave acidentalmente cair nesse planeta selvagem, com um piloto que precisa fazer mais horas extras para conseguir mais dinheiro para custear o tratamento médico da sua pequena filha, entre a vida e a morte. Nem no outro mundo, em civilizações avançadas, a saúde foi universalizada. É uma mercadoria cara oferecida pela iniciativa privada. Quer viver? Pague! Nem que seja ao custo de enfrentar dinossauros, insetos gigantes e gêiseres jorrando ácido.

O Filme

Tudo começa com uma sequência sombria no planeta natal de Mills (Adam Driver), pertencente a uma antiga civilização extraterrestre, suficientemente avançada para criar linha regulares de transporte entre mundos. Mills é um piloto espacial que vê a sua pequena filha Nevine (Chloe Coleman) com uma tosse persistente, sintoma de um grave problema de saúde que está matando-a lentamente. A não ser que faça um tratamento muito caro.

A única maneira dele pagar o tratamento é assumindo uma “missão exploratória de longo prazo”, muito bem paga. Conduzindo famílias inteiras em pods criogênicos, provavelmente para colonizar outros mundos.  

Porém Mills não parece ser um cara de muita sorte: a nave é atingida por um cinturão de asteroides, para se espatifar em uma selva primitiva e mortal do planeta Terra de 65 milhões de anos atrás, a partir do nosso presente. Não é um filme sobre viagem no tempo, como alguns podem achar, acompanhando os ecos do filme Planeta dos Macacos.

Todos os passageiros morrem, exceto uma garota (que inevitavelmente lembrará a sua filha) chamada Koa (Ariana Greenblatt). 

Koa fala em uma outra língua (de forma bastante realista, o planeta de Mills fala mais de um idioma). Portanto, o primeiro problema será de comunicação, além da crescente ameaça de dinossauros, insetos nojentos, jatos de ácido que podem jorrar da crosta a qualquer momento e areias movediças.



Mills descobre que a outra metade da nave caiu no alto de uma montanha próxima. Lá tem uma cápsula de salvamento ainda funcional, que poderá tirá-los daquele planeta infernal. E no caminho até o alto da montanha, estarão à espreita dinossauros que querem fazer valer a supremacia na cadeia alimentar. 

Nosso herói custa para explicar para Koa a difícil missão que terão pela frente – Mills acaba mentindo que ele a levará para sua família que a aguarda.

A luta pela sobrevivência de Mills e da menina Koa é na verdade a luta de um pai para tentar pagar o tratamento médico da filha – o que, pensando bem, 65 é um filme que projeta um destino ainda mais sombrio para o nosso herói: se sobreviver e chegar ao seu mundo, será que ainda receberá o pagamento, depois de quase todos os passageiros colonos, sob sua responsabilidade, morrerem? Ou, pensando dentro do realismo capitalista, certamente será ainda réu de processos e julgamentos por suspeita de imperícia no trabalho.



Ainda mais que Koa pertence a uma família “superior”. Enquanto Mills é um pobre trabalhador precarizado.

Em 65, a existência de elites, privatização de direitos universais (no caso, saúde), necessidade de horas-extras para ganhar mais dinheiro e precarização do trabalho em uma sociedade há 65 milhões de anos atrás, apontam para o sentido invertido de uma tendência da ficção científica atual: a hipo-utopia.

Se na hipo-utopia o futuro é meramente uma projeção hiperbólica das mazelas que já existem no nosso presente, em 65 teríamos o mesmo modus operandi, só que voltado ao passado: um hipo-passado (no sentido de “passado insuficiente”) – uma sociedade de milhões de anos atrás com o mesmo “realismo” do nosso presente: privatização, mercado, desigualdade etc. Uma sociedade alienígena a qual foi negada a ontologia de ser inteiramente outra. Ela apenas reproduz uma fatalidade que parece ser cósmica: a de reproduzir a linha evolutiva que conduz ao Capitalismo.

Esse passeio de Adam Driver pelo Jurassic Park do Cretáceo é narrado de forma enxuta num thriller básico de luta pela sobrevivência na hostilidade da natureza pré-histórica. Enxuto e com poucas linhas de diálogo (já que na maior parte do tempo os protagonistas estão numa situação de incomunicabilidade), 65- Ameaça Pré-Histórica é um filme com poucas camadas. 

Tão poucas que deixa ainda mais explícita, no argumento do filme, a ideologia do realismo capitalista.



 

Ficha Técnica

 

Título: 65 – Ameaça Pré-Histórica

 

Direção: Scott Beck e Bryan Woods

Roteiro: Scott Beck e Bryan Woods

Elenco:  Adam Driver, Ariana Greenblatt, Chloe Coleman

Produção: Beck Woods, Columbia Pictures, Bron Creative

Distribuição: Sony Pictures Entertainment

Ano: 2023

País: EUA

 

 

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