quinta-feira, março 09, 2023

'Elvis': mais uma vez Tom Hanks passa pano nos incômodos da mitologia pop americana


Depois de filmes sobre ícone pop como Elton John e Freddie Mercury, agora foi a vez de Elvis Presley. Mas com uma ajuda de peso: Tom Hanks no papel de vilão. “Elvis” (oito indicações ao Oscar, entre eles Filme, Ator e Fotografia) é um musical que pretende mais do que renovar a mitologia do rei do rock para as novas gerações. Mas, principalmente, pasteurizá-la dentro do atual imaginário “woke” dos “Novos Democratas” no poder global. E Tom Hanks é o especialista em resgatar e defender as bases da mitologia pop norte-americana, como em Forrest Gump, Apolo 13, O Náufrago, O Círculo, entre outros. Hanks é tão “all american” quanto uma torta de maçã. O filme transforma a histórica relação simbiótica entre Elvis, o infame agente Coronel Parker e a Guerra Fria em “relação tóxica”. Para passar o pano nos detalhes mais incômodos da trajetória do ícone e transformá-lo na “esperança branca” que buscava uma América racialmente igualitária. Esquecendo de como o mito “Elvis The Pelvis” foi instrumento de guerra cultural e política.

 

Jerry Nolan, ex-baterista da banda glam rock “New York Dolls”, contava uma história de como ver um show de Elvis Presley, aos 10 anos, na década de 1950, foi a experiência decisiva para ele se tornar um roqueiro. 

Sentado muito próximo do palco, viu Elvis com uma jaqueta branca, calças pretas largas com pregas. Estava com sapatos bicolores, brancos em cima e pretos dos lados. “Sapatos de rock and roll!”, observava Jerry Nolan. Numa hora, Elvis se jogou de costas, abriu as pernas, com uma perna apontando para Nolan. Ele pode perceber que o sapato de Elvis estava gasto, com um furo. Será que Elvis era um garoto pobre? Ou simplesmente aqueles sapatos eram os favoritos dele, usando até acabar?

Jerry Nolan afirmava que esse detalhe (esse misto de potência e precariedade) o levou a ser dominado por Elvis, pela música e pelo rock and roll.  

Este episódio um pequeno exemplo do alcance do impacto do ícone Elvis Presley na cultura pop e como influenciou gerações de músicos dos mais diferentes gêneros. 

Porém, o glam e o punk rock da geração de Jerry Nolan ficaram lá para trás, na década de 1970. Estamos no século XXI, a influência da cultura videoclipe da MTV acabou e hoje conhecemos música através de plataformas digitais como o Spotify. Por isso, a necessidade de a indústria de entretenimento renovar a mitologia pop. Filmes como o recente Blonde (2022), sobre o mito Marilyn Monroe, é um desses esforços, ao lado de outras produções como Rocketman (sobre Elton John) e Bohemian Rapsody (sobre Freddie Mercury).

Mas quando se trata das bases da mitologia pop norte-americana, no cinema, o principal nome requisitado é o ator Tom Hanks – ao lado da torta de maçã e da bandeira estrelada dos EUA, não há nada mais norte-americano do que ele.

Depois da fase descompromissada como o all american boyfriend da década de 1980, Tom Hanks passou a fazer filmes mais sérios: Forrest Gump (a filosofia sobre o nada e a nostalgia superestimada dos momentos históricos dos EUA), Apolo 13 (a mitologia da inventividade científica da NASA), O Náufrago (a seriedade dos valores corporativos, no caso da FedEx), O Resgate do Soldado Ryan (guerra e patriotismo), O Círculo (a mitologia do Vale do Silício) etc.

E agora, Tom Hanks dá uma mãozinha patriótica para a mitologia de Elvis Presley, no filme indicado ao Oscar Elvis (2022) – Melhor Filme, Ator, Fotografia, Direção de Arte, Edição, Maquiagem, Figurino e Edição.

Elvis não é nem um filme biográfico, e muito menos uma ficção sobre a vida de Elvis. Mas um musical onírico e hiperbólico sobre o ícone do rock, dirigido por Baz Luhrmann (Moulin Rouge).



Priscilla Presley e Lisa Marie (respectivamente ex-mulher e filha de Elvis) consideraram o filme “perfeito”. O que é um paradoxo, já que todo o filme é narrado pelo ponto de vista do infame Coronel Parker (Tom Hanks), agente e empresário de Elvis, acusado de abuso econômico e de ter destruído a carreira do cantor, além de tê-lo matado de tanto trabalhar – ao contrário dos empresários do showbiz que recebem 10% de comissão, Coronel Parker abocanhava metade de tudo que Elvis ganhava.

 Certamente esse paradoxo tem sentido: a morte trágica e precoce do ídolo é como que purificada pelo protagonismo narrativo do vilão Coronel Parker – a figura que por décadas teria mantido uma relação tóxica com Elvis, sugando o talento do cantor. Mas principalmente (clichês dos clichês hollywoodianos) porque o vilão era um estrangeiro (holandês) de origens obscuras e suspeitas como produtor de circos e parques de diversão (na cinematografia, são as origens privilegiadas de palhaços assassinos e aberrações monstruosas) que profanou a genialidade do puro “sal da terra” – um branco que foi “possuído” pela sensualidade musical da alma negra. 

Dessa maneira Elvis dribla alguns aspectos mais comprometedores e complexos do ícone pop, transformando-o na esperança branca sincera e paternalista que tentou resgatar os "exóticos e sensuais" artistas negros da época – BB King, Big Momma Thornton e Little Richard.

O Filme

Luhrmann nos conta a história de Elvis a partir da perspectiva do empresário corrupto de longa data do cantor, Coronel Tom Parker. Depois de desmaiar em seu escritório cafona e cheio de memorabilia, um Parker quase morto acorda sozinho em um quarto de hospital em Las Vegas. Os jornais o rotularam de bandido, um trapaceiro que se aproveitou de Elvis (Austin Butler), então ele deve esclarecer as coisas para o espectador, narrando a história em primeira pessoa.



Um salto de linguagem estética de Luhrmann toma conta: um gotejamento intravenoso se transforma no horizonte de Las Vegas; em uma camisola de hospital, Parker caminha por um cassino até chegar a uma roleta – Parker teria mantido Elvis prisioneiro no mausoléu de Las Vegas para pagar as dívidas de jogo de Parker, através dos shows exclusivos do cantor no hotel-cassino.  

"Elvis" se move como um conto de fadas de Natal transformado em pesadelo, alimentado pelas garras perniciosas de uma relação empresarial tóxica e do racismo, e a potente mistura que eles criam. 

No início, o filme constrói meticulosamente as influências de Presley. Como o Gospel e o Blues igualmente o arrebataram - numa sequência bem editada, tanto visual quanto sonoramente, os dois gêneros são misturados por meio de uma emocionante performance de "That's Alright Mama". Numa sessão de música godspell, o menino Elvis entra numa espécie de epifania musical e é como possuído pelo espírito negro do Blues – Oliver Stone utiliza esse mesmo recurso retórico em The Doors – O Filme, no qual Jim Morrison (Val Kilmer) teria incorporado um espírito indígena, transformando-o no “Rei Lagarto”.

Reforçando ainda mais o papel da inocência do cantor, Elvis ama o super-herói Shazam e sonha em alcançar a “Rocha da Eternidade”, nesse caso a metáfora para a conquista do estrelato.

Parker está apaixonado por Elvis, porque ele toca e canta música negra de sucesso, mas é branco. E surge o “Elvis The Pelvis”, reciclando a música negra dentro dos clichês que os brancos fazem dos afro-americanos: “sensuais, exóticos e espontâneos”.



Elvis logo desliza para um território biográfico sóbrio. Vemos a ascensão meteórica de Presley, os erros – principalmente por ingenuidade - que ele comete ao longo do caminho e sua descida final em direção à autoparódia vestindo jumpsuits e lantejoulas. Sua mãe (Helen Thomson), está fascinada pela aquisição da mansão de Graceland. Seu pai (Richard Roxburgh) é mostrado como uma figura complacente diante das manipulações do Coronel Parker. E Priscilla (Olivia DeJonge) aparece e assume o papel padrão das esposas de personagens trágicos – calada e com os olhos virando de susto e medo. 

O patriota Tom Hanks e o histrionismo estético de Baz Luhrmann entram em ação para evitar três aspectos delicados que certamente devem ser extirpados da mitologia Elis The Pelvis.

Primeiro, a gentrificação da música negra. A ascensão musical e comercial da música negra virou um incômodo cultural para a hegemonia branca. Na primeira fase, o jazz já havia sido domesticado com as big bands brancas do jazz (Glenn Miller, Benny Goodman) reduzido ao “swing”. Mas o blues, godspell e o jazz bebop se tornaram desafios para os brancos: eram correntes musicais nas quais somente o gênio negro funcionava.



Elvis Presley foi, por assim dizer, a esperança branca para a indústria do entretenimento: o branco que cantava e dançava como um negro – claro, dentro dos estereótipos como os brancos descrevem a “alma negra”.

Depois, Elvis e o serviço militar: no filme, teria sido uma estratégia do Coronel Parker para limpar a barra de Elvis – Elvis parece um negro, mas ele é “all american”, branco, patriota e preocupado em defender o mundo livre.

Na verdade Elvis (assim como muitas bandas brancas de jazz como Dave Brubeck Quartet) foram usando como armas de propaganda política na Guerra Fria – Elvis foi mandado para a Alemanha Ocidental em pleno momento da crise dos tanques soviéticos, ameaçadoramente estacionados próximos à divisa com a Alemanha Ocidental.

E finalmente, como a mitologia Elvis Presley é mantida asséptica ao deixar de lado a politicamente incorreta relação de Elvis com a futura esposa Priscila: a dupla se conheceu na Alemanha quando ela tinha tão somente 14 anos.

Tudo isso sem falar em como Elvis se tornou um fantoche nas mãos do presidente republicano Richard Nixon durante a crise dos conflitos raciais por direitos civis e nos protestos contra a Guerra do Vietnã.

O filme habilmente transforma uma relação no mínimo simbiótica entre Elvis Presley, Governo e o Coronel Parker em “relação tóxica” – como o gênio pueril e inocente foi seduzido e corrompido por um vilão que nem americano era. 

Mais uma vez, Tom Hanks, dessa vez encarnado na pesada maquiagem e próteses do Coronel Parker, expia a má consciência liberal americana: tudo que o empresário queria era um Show de Natal do Elvis cantando “Papai Noel vem aí” para a família americana. Em nome de valores como “família” e “pátria”, Coronel Parker teria reprimido e abreviado a genialidade de Elvis. 

Isso pega bem na atual ideologia politicamente correta dos atuais Novos Democratas wokes que estão no poder. Mas, no final, o filme Elvis apenas ajuda a expiar a culpa do politicamente correto. Porque, no fundo, tanto democratas, quanto republicanos comungam os mesmos ideias: a patriótica mitologia pop “all american”.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Elvis

 

Direção: Baz Luhrmann

Roteiro: Baz Luhrmann, Sam Bromell, Craig Pearce

Elenco:  Tom Hanks, Austin Butler, Olivia DeJonge

Produção: Warner Bros., Bazmark Films, Roadshow Entertainment

Distribuição: HBO Max

Ano: 2022

País: EUA

 

 

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