sexta-feira, março 03, 2023

Nietzsche e o sabor gelado, muito gelado, da vingança no filme 'O Cidadão do Ano'


Nils foi homenageado como “O Cidadão do Ano” numa pequena e gelada comunidade norueguesa próxima do Círculo Polar Ártico. Ele mantém as estradas limpas da neve, o funcionário público modelo que acredita que o interesse público sempre vem primeiro. Até o seu filho ser assassinado e a polícia local encerrar o caso apenas como overdose. Será o início de uma escalada de vingança tragicômica, lembrando filmes como “Fargo” e a estética da violência de Tarantino. “O cidadão do Ano” (Kraftidioten, 2014, disponível no MUBI) acompanha o pacato servidor público que vira um implacável assassino vingando a morte do filho, revelando uma rede de tráfico de drogas. O filme é bem nietzschiano: se a vingança social (Justiça, o Direito) falha, aquilo que está latente, o ressentimento, retorna na vingança pessoal. As religiões salvacionistas tentam sublimar esse perigo, prometendo a verdadeira justiça só depois da morte. Mas o Nils quer a justiça aqui e agora: ele procura nesse mundo a simetria entre potências que somente poderá ser através da vingança.

Nils (Stellan Skarsgård) é um funcionário público taciturno, homenageado por uma pequena comunidade norueguesa coberta de neve como o “Cidadão do Ano” pela sua incansável devoção em manter as estradas limpas das nevascas que caem insistentemente no rigoroso inverno. 

Aparentemente, tanta devoção e regularidade no seu trabalho em prol da comunidade vem pela sua fé de que o interesse público vem sempre em primeiro lugar. Seu mundo é ordenado, rotinizado. E seu filho segue o caminho do pai: é funcionário responsável pelo transporte de malas no pequeno aeroporto próximo daquela vila no meio do nada.

Mas tudo vem abaixo quando seu filho é encontrado morto, aparentemente por overdose. Nils crê na polícia e na Justiça. Afinal, seu filho nunca foi um viciado e ele desconfia de assassinato. Mas a polícia local considera caso encerrado: “jovens morrem drogados a toda hora”, justificam os policiais.

Agora, o “cidadão do ano”, funcionário público modelo, mandará às favas a Justiça e o Estado de Direito: Nils tentará rastrear quem matou seu filho, revelando uma teia de traficantes de drogas. Com sede de vingança, Nils matará quem quer que seja o responsável. Ele se tornará tão implacável quanto a sua máquina de limpar neve.

O Cidadão do Ano (Kraftidioten, 2014, disponível no MUBI) é um filme norueguês dirigido por Hans Petter Moland, que mais tarde seria convidado por Hollywood para fazer um remake americano desse filme (Vingança a Sangue Frio, 2019), com Liam Neeson – para a “estranheza” de um filme escandinavo se tornasse mais familiar ao gosto do público. Além de não ter que ler legendas – uma verdadeira ofensa para o espectador médio norte-americano.

O Cidadão do Ano é um encontro da atmosfera farsesca do filme Fargo dos irmãos Cohen com o pastiche da estética Tarantino em pleno Círculo Polar Ártico.

Como descrito na sinopse acima, o tema central do filme é a justiça através da vingança. E a escolha de um funcionário público modelo como protagonista não é por menos: um personagem que acredita na res publica, de repente perde a fé na “vingança social” da Justiça e do Direito contra os assassinos de seu filho e decide vingar-se por conta e risco próprios.

Não precisa esse humilde blogueiro explicar muito para o leitor perceber que estamos entrando no campo nietzschiano da discussão da justiça. 

Nietzsche ao longo da sua obra foi lapidando um conceito retributivo e contraprestacional de justiça – a justiça se origina entre aqueles cuja potência se assemelha. Para o filósofo, o conceito de justiça não está ligado ao conformismo, mas de imposição de valores. Na modernidade, o medo recíproco entre os indivíduos e os crimes cometidos uns contra os outros exigiria uma instância separada e acima deles para que se possa exercer o direito à vingança, porém, como “vingança social” para que se possa realizar os direitos do homem como cidadão.



Vingança e justiça historicamente se equivaleriam na qual o estado de direito monopolizaria a violência da imposição da justiça como um modo de diminuir o ressentimento. Mas, no final, apenas manteria suas causas. No fundo, tratar-se-ia de uma escravidão disfarçada. Nosso dever é o direito do outro sobre nós, mais fortes e mais cruéis. Há uma relação de poder, e cada um tem tanta justiça quanto vale seu poder. O conflito permanece latente.

Os policiais (ou o Estado) ignoram o crime partindo de um preconceito: jovens drogam-se e morrem o tempo todo. Para quê, então, gastar dinheiro público com uma investigação inútil?

O Cidadão do Ano tematiza esse tema nietzschiano: se a vingança social falha, aquilo que está latente, o ressentimento, retorna. Dessa vez agenciado pelo próprio indivíduo. As religiões salvacionistas tentam sublimar esse perigo, prometendo a verdadeira justiça só depois da morte, transformando ressentimento em fé – dependendo, claro, do seu comportamento moral nessa existência.

Mas o protagonista Nils quer a justiça aqui e agora: ele procura nesse mundo a simetria entre potências que somente poderá ser através da vingança.



O Filme

Nils, um taciturno motorista de limpa-neves de meia idade cujo filho morre nos momentos iniciais do filme. As autoridades consideram a morte uma overdose de drogas, mas Nils não pensa assim, e ele assume como missão descobrir quem é o responsável e administrar a justiça.

Ele então inicia uma sucessão de assassinatos por toda a cadeia de links do tráfico de cocaína de uma gangue, comandada por um senhor do crime chamado Conde (Pål Sverre Hagen), um excêntrico e conscientemente ridículo na tradição dos personagens do submundo interpretados por Gary Oldman na década de 1990 - um sociopata que se mostra perturbado pelas banalidades da vida doméstica cotidiana, como com um divórcio iminente e se deve ou não alimentar seu filho com cereais açucarados no café da manhã.

Logo essa sucessão de mortes é interpretada por Conde como uma guerra da máfia dos sérvios querendo tomar o seu território. Então, os corpos começam a se acumular. Para ajudar o espectador a contar a carnificina, após cada morte surge uma tela com uma espécie de memorial ou lápide da vítima.



Dessa vez será o filho do chefe sérvio da máfia (Papa Popovic), interpretado por Bruno Ganz, que será assassinado por um dos empregados “cabeça quente” de Conde. Agora serão dois em busca de vingança: Nils e o chefão sérvio.

Em O Cidadão do Ano há uma naturalidade distintamente escandinava que resiste à encenação exagerada da maioria dos filmes hollywoodianos de vingadores brancos envelhecidos.  Sentimos empatia pela raiva e tristeza de Nils, pois Conde matou seu filho sem motivo. Moland encena os assassinatos de forma sucinta e fugaz, com elementos admiravelmente desconcertantes. O filme está repleto de cenas com detalhes não convencionais como, por exemplo, quando Nils e um gângster desfrutam de uma risada longa e contextualmente horrível enquanto se deitam lado a lado, cansados após uma luta, sobre a lâmina do limpa-neve do herói, antes de Nils explodir a cabeça do cara com uma espingarda.

O diretor, Hans Petter Moland, traz flashes de Fargo e Quentin Tarantino para a narrativa, com ângulos de câmera desorientadores e personagens enigmáticos que falam pouco e muitas vezes não duram muito.



Nils e o chefão sérvio Papa Popovic representam claramente as duas espécies de vingança previstas por Nietzsche: Nils é a personificação da vingança relacionada à conservação: após o dano imposto (no caso o assassinato do filho) quer conservar a honra como cidadão, igualando uma relação assimétrica, matando Conde; e em Papa Popovic, a clássica vingança que buscar revidar o dano, buscando uma assimetria lógica: assim como ele perdeu seu filho, os sérvios também terão de assassinar o pequeno filho de Conde. Olho por olho, dente por dente.

Nos dois casos está a essência do conceito nietzschiano de justiça: a relação simétrica entre potências.

A desigualdade social e as relações assimétricas de poder criam o ressentimento, o fardo da servidão. O estado de direito e a religião constituem-se nas duas formas em diminuir esse magma psíquico com potencial de criar anomia na sociedade. O primeiro, cria uma vingança por procuração; e a segunda, transfere a vingança num “julgamento” no outro mundo. 

Mas o conflito continua latente. Ele é apenas transferido. Mas não só para o sistema judiciário e as religiões salvacionistas. Também para a indústria do entretenimento (em filmes como O Cidadão do Ano e todos aqueles com vigilantes ou super-heróis amorais) ou para discursos políticos de extrema-direita: quando a Justiça e a Política falham, nada como deixar a vingança social nas mãos de um líder totalitário.  


 

Ficha Técnica

 

Título: O Cidadão do Ano

 

Direção: Hans Petter Moland

Roteiro: Kim Fupz Asekson

Elenco:  Stellan Skarsgård, Bruno Ganz, Pål Sverre Hagen, Birgitte Hjort Sørensen

Produção: Focus Feature, Standard Film Company

Distribuição: Focus Feature

Ano: 2014

País: Noruega

 

 

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