quinta-feira, dezembro 15, 2022

Revendo 'Os Outros': Jung tinha razão sobre mortos e fantasmas


Num evento sincromístico, depois de rever o filme “Os Outros” (The Others, 2001), de Alejandro Almenábar, pouco depois, remexendo antigos exemplares da velha revista “Planeta”, esse humilde blogueiro deparou-se com um pequeno texto de C.G. Jung chamado “A Vida Depois da Morte”. Tanto Almenábar quanto o psicanalista austríaco invertem todo senso-comum que temos sobre o após-morte: acreditamos que, chegando lá, teremos todas as repostas das perguntas que nos atormentam. Porém, tudo o que os espíritos sabem é o que sabiam no momento da morte. E nada mais. Na verdade, eles não nos assombram. Porque tanto em “Os Outros” quanto em Jung, todos, vivos e mortos, são fantasmas em busca de respostas.

Em um pequeno texto chamado “A Vida Depois da Morte”, o psicanalista austríaco Carl Gustav Jung aborda o tema que, apesar dos argumentos racionais contra a certeza nesse campo, Jung considera que a própria existência dos sonhos, inconsciente e as narrativas míticas já nos forneceriam alusões que, no mínimo, nos obrigaria a prestar a atenção ao assunto.

Em primeiro lugar, Jung defendia que para tratar o tema da imortalidade seria necessário renunciar o tema a um problema científico ou intelectual. Sua hipótese era partir das “comunicações com alusões figuradas” dos sonhos: “basta pensar nos fenômenos de sincronicidade, nos sonhos premonitórios e nos pressentimentos”, afirmava.

No texto, Jung relata os sonhos durante a redação dos livros “Metamorfoses e Símbolos da Libido” e “Os Sete Sermões dos Mortos” nos quais ele chegou a uma conclusão paradoxal:

Isso me espantou muito nessa época porque, de acordo com a opinião tradicional, são os mortos que possuem o grande saber; com efeito, devido à doutrina cristã que supõe que no além olharemos as coisas face a face, a opinião acatada é que os mortos sabem mais do que nós: mas, aparentemente, as almas dos mortos só “sabem” o que sabiam no momento da morte e nada mais. Daí seus esforços para penetrar na vida, para participar do saber dos homens. Frequentemente tenho a sensação de que elas se colocam diretamente atrás de nós, na expectativa de perceber que respostas daremos a ela e ao destino. Parece-me que o que lhe importa a todo custo é receber dos vivos – isto é, daqueles que lhes sobreviveram e que permanecem num mundo que continua a se transformar – respostas às suas questões. Os mortos questionam como se não tivessem a possibilidade de saber tudo, como se a onisciência ou a oniconsciência apenas pudesse ser privilégio da alma encarnada num corpo que vive (JUNG, CG. “A Vida Depois da Morte”, In: Planeta n. 8, abril de 1973, p.95).

Lendo essa conclusão de Jung sobre suas reflexões analíticas sobre a imortalidade, foi inevitável para esse humilde blogueiro relembrar do novo clássico Os Outros (The Others, 2001), de Alejandro Almenábar. Um filme do começo desse século com um plot twist típico de um momento em que Hollywood dava uma verdadeira guinada metafísica em direção às narrativas gnósticas. 

No caso de Os Outros, um plot twist tão memorável quanto “I see dead people” em O Sexto Sentido de M. Night Shyamalan. Mas, em última análise, dentro de um contexto geral de filmes que desconstruíam gnosticamente a noção de realidade, seja como um constructo tecnológico (Show de Truman e Matrix), seja como uma ilusão criada pela mente (Vanilla Sky ou A Passagem).

Na época de seu lançamento, Os Outros foi um sucesso financeiro e de crítica, arrecadando quase 210 milhões de dólares em todo o mundo com um orçamento de 17 milhões de dólares com críticos como Peter Travers da Rolling Stone” chamando o filme de "master class".

Os Outros, assim como O Sexto Sentido, ecoam uma extensa bibliografia seja espírita ou esotérica sobre casos em que o espírito ignora o seu estado pós-morte, mantendo-se ainda próximo da antiga residência, parentes e amigos, como no “Caso Dimas” na obra de André Luiz “O Nosso Lar”, especificamente o volume “Obreiros da Vida Eterna”. Simplesmente o espírito não sabe que morreu, pelo fato da sua realidade parecer tão “material” quanto o mundo que sem saber acabou de deixar.



Mas Jung vai mais além. Para ele, acompanhando a psicologia profunda dos relatos míticos e oníricos, os mortos possuem um interesse intelectual pelos vivos. Parece que a suposta “onisciência” ou livramento do peso da matéria que nos impediria de ver a verdade, não produz o suposto efeito que imaginamos: ter as revelações de todos os mistérios que deixamos aqui nesse mundo. Pelo contrário, os espíritos buscarão nos vivos as mesmas respostas que nós buscamos aqui nas conversas com médiuns ou contatos diretos com fantasmas.

O filme Os Outros é magistral ao explorar uma nova abordagem do subgênero “casa mal assombrada”: o único caminho é a coexistência entre os vivos e os mortos, porque nós, os vivos, também podemos ser fantasmas.

O Filme

Os Outros acompanha Grace Stewart (Nicole Kidman) enquanto ela cuida de seu filho e filha, esperando que seu marido (Christopher Eccleston) retorne da Segunda Guerra Mundial. Seus filhos, Nicholas (James Bentley) e Anne (Alakina Mann), têm uma rara doença de pele que os torna sensíveis à luz solar, então Grace envolve a mansão em cortinas e persianas, muitas vezes contando apenas com a luz de velas. Quando seus servos se demitem inesperadamente e deixam a mansão e a propriedade isoladas, três novos trabalhadores aparecem em sua porta. 



Enfiada dentro das paredes da mansão, a família logo experimenta acontecimentos estranhos - um visitante infantil invisível chamado Victor, passos inexplicáveis ​​correndo pelos corredores, vozes desencarnadas ecoando pelos quartos. O que impede Grace de perder todo o senso de sanidade é sua fé fervorosa, muitas vezes segurando um rosário e ensinando seus filhos sobre a Bíblia e os dogmas.

Spoilers à frente

O contraste entre verdade e crença está no centro de Os Outros. Grace acredita que, ao cumprir seu dever como mãe e esposa fiel, ela e sua família encontrarão paz na vida após a morte. Mas a verdade, revelada a Grace e seus filhos no final do filme, é que eles já estão mortos. Apenas os três servos - a Sra. Mills (Fionnula Flanagan), o Sr. Turtle (Eric Sykese Lydia (Elaine Cassidy) - saiba a verdade sobre seu estado fantasmagórico e mantenha esse segredo da família Stewart até que eles descubram por si mesmos. 

Mas enquanto Grace é rápida em dissipar qualquer crença no inexplicável, sua pequena filha Anne é a única entre os Stewarts que está disposta a descobrir a verdade. Ela mantém contato com Victor, a voz do menino desencarnado que discute com ela à noite. E, também, é ela quem descobre os túmulos da Sra. Mills e dos outros criados, descobrindo que são fantasmas.



Ao longo do filme, Anne diz ao irmão Nicholas que a mãe deles “enlouqueceu”. Nicholas se recusa a acreditar nisso. Mas quando Grace luta violentamente com Anne, pensando que sua filha foi possuída por uma mulher mais velha em seu vestido de comunhão infantil - talvez a cena mais impressionante e horrível do filme - sua insanidade é quase confirmada. 

É somente quando Grace e as crianças finalmente confrontam “os outros” (outra família sendo ajudada por uma médium que está realmente viva) que a verdade sombria encontra seu caminho para a luz. Em vida, Grace enlouqueceu, sufocou os filhos com travesseiros e depois deu um tiro em si mesma com uma espingarda. Ao admitir esta verdade e a verdade de sua existência fantasmagórica, Anne e Nicholas podem finalmente brincar à luz do sol. Grace também se humilha, não se apegando mais às suas convicções religiosas. “Não sou mais sábia do que você”, ela diz à filha, “mas sei que amo você”.

Essa é a primeira lição do filme: todos devemos aprender a viver juntos, os vivos e os mortos. Almenábar reverte os tropos tradicionais do subgênero casa mal-assombrada – o clássico clichê das conspirações do Mal contra os vivos que se agarram a convicções religiosas, científicas ou ocultistas que servem de instrumentos na batalha milenar contra presenças malignas que querem nos destruir.



Acompanhando os insights de Jung em Os Outros, tanto os vivos quando os mortos estão perdidos na ignorância. Para Jung, os mortos se esforçam em penetrar na vida (seja pela “assombração” ou pela reencarnação) para participar do saber dos homens. 

Também o espírito dos vivos parece, pelo menos num ponto, avantajar-se ao dos mortos: a aptidão em adquirir conhecimentos nítidos e decisivos. O mundo tridimensional, no tempo e no espaço, parece-me um sistema de coordenadas: o que se decompõe aqui em ordenadas e abscissas, “lá”, fora do tempo e do espaço, pode aparecer talvez como uma imagem original de múltiplos aspectos ou talvez como uma nuvem difusa de conhecimentos em torno de um arquétipo. Mas um sistema de coordenadas é necessário para poder distinguir conteúdos distintos. Tal operação nos parece inconcebível num estado de onisciência difusa ou de uma consciência carente de sujeito, sem determinações espaço-temporais. O conhecimento, como a geração, pressupõe um contraste, um “cá” e um “lá”, um “alto” e um “baixo”, um “antes” e um “depois” (JUNG, C.G. IDEM, p.95).

Portanto, se o leitor dessas mal traçadas linhas acreditar que depois da morte terá as repostas de todos os enigmas da humanidade (Quem matou John Kennedy? Os discos voadores existem? A CIA matou Marilyn Monroe? Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?...), segundo Jung e Alejandro Almenábar esqueça! O melhor é aproveitar a vida aqui na Terra, aumentando a curiosidade intelectual.


 

Ficha Técnica

 

Título: Os Outros

 

Diretor: Alejandro Almenábar

Roteiro: Alejandro Almenábar

Elenco:  Nicole Kidman, Christopher Eccleston, Fionulla Flanagan, Alakina Mann, James Bentley

Produção: Cruise/Wagner Productions, Las Produciones del Escórpion

Distribuição: Imagem Filmes (DVD)

Ano: 2021

País: EUA, Espanha, França

 

 

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