quarta-feira, dezembro 21, 2022

Filme 'France': quando o jornalista vira o protagonista da notícia


“France” (2021, disponível na HBO Max), do cineasta francês Bruno Dumont, foi recebido com um coral de vaias no Festival de Cannes no ano passado. Parece que a plateia formada principalmente pela imprensa especializada não recebeu muito bem a sátira de um cineasta sobre fama e celebridade no jornalismo – jornalistas não costumam receber muito bem críticas de alguém que não pertença ao próprio campo jornalístico. O filme acompanha uma jornalista-celebridade chamada France de Meurs e o fenômeno tautista em que jornalistas deixam de ser testemunhas da história para se transformarem em protagonistas da própria notícia. Regularmente abordada nas ruas para selfies e autógrafos, France parece confortável no interior de uma bolha tautista social/profissional protetora. Até o sentimento de alienação e depressão assombrá-la depois de atropelar um motoboy e começar a colocar em xeque sua profissão. Mas como encontrar a realidade para além do estúdio e da ilha de edição?

A mídia, mais especificamente os jornalistas, são notáveis em seu espírito de corporativismo e autoindulgência. São avessos a qualquer crítica, principalmente quando esta venha de fora do campo profissional da imprensa. Veja por exemplo a violenta reação nos anos 1990 (principalmente na imprensa brasileira) ao pequeno ensaio crítico sobre o campo jornalístico do sociólogo francês Pierre Bourdieu intitulado “Sobre a Televisão” – Zahar, 1997.

O exemplo flagrante mais recente foi o coro de vaias no Festival de Cannes, no ano passado, após a exibição da visão satírica da fama e da celebridade no telejornalismo mostrada pelo filme France (2021), do diretor Bruno Dumont – a plateia formada principalmente pela imprensa especializada não gostou nada do intrometido olhar de um cineasta para o mundo tautista do jornalismo.

France segue a vida de uma jornalista-celebridade chamada France de Meurs (Léa Seydoux), âncora de um talk show e telejornal noturno líder na TV francesa. Além disso, ela faz incursões em zonas de guerra no norte da África e embarca no drama dos botes cheios de refugiados que tentam chegar na costa europeia – tudo sob uma linguagem populista-sensacionalista, em que France não é uma simples correspondente: ela é a protagonista da notícia (fenômeno de enunciação pós-moderna em que os fatos parecem acontecer apenas para que o jornalista possa apresentar) em matérias com massiva edição e direção, sempre finalizando com um close-up em France.

No primeiro ato do filme, acompanhamos uma verdadeira aula didática de como o telejornalismo edita e processa a realidade, aproximando-se cada vez mais da linguagem ficcional cinematográfica: France chega a uma zona de conflagração para entrevistar guerrilheiros que combatem jihadistas. Praticamente ela se transforma em diretora de cena, dirigindo câmera, boom operator e os próprios entrevistados: ela está mais interessada em captar imagens e menos em entrevistar – as perguntas são curtas, vagas. Seu interesse está mais na ilha de edição do que no conteúdo da entrevista. O resultado, exibido no telejornal, é emocionante, sempre fechando no rosto de France no final. 

O diretor Bruno Dumont quer pedagogicamente comparar o antes e o pós-edição – linguagem audiovisual é, antes de mais nada, corte, seleção e montagem – o fato é apenas um pretexto para o protagonismo do jornalista ser exercido.



Mas France quer mais do que desconstruir os bastidores da produção telejornalística. Dumont também quer narrar a lenta desconstrução interior de France, principalmente após uma entrevista no estúdio: um político acusa France de ser “útil”, mas é apenas bonita.

Regularmente abordada nas ruas para selfies e autógrafos, France parece confortável no interior de uma bolha tautista (tautologia + autismo midiático) e social/profissional protetora. Como ocorre no fenômeno do tautismo (cobre o conceito clique aqui), aquilo que acontece no mundo exterior à bolha é traduzido a partir da autodescrição que o sistema fechado faz de si mesmo. 

Por isso, o filme vai descrever como dois episódios reais vão invadir a sua bolha (dois homens que, aparentemente, não são atraídos pela sua fama), desestabilizando sua bolha protetora. Colocando em xeque a sua autoimagem como jornalista.



O problema é que France precisa da mídia como um peixe precisa da água – conforme o quadro conceitual do jornalista e pesquisador Mark Duze, ela vive na “media life”: não vivemos mais com as mídias (como era na cultura das celebridades do século XX), mas vivemos nas mídias – nossas relações com as mídias se tornaram onipresentes, universais, quase codificando os nossos genes. “Gostemos ou não, todos os aspectos de nossas vidas têm lugar nos meios de comunicação”, afirma Deuze – leia DUZE, Mark. Media Life, Polity Press, 2012.

O drama (ou a ironia) é que para ela a solução para o mal-estar da má consciência só pode estar dentro da própria bolha midiática que gera sua dor íntima da alienação.

O Filme

A primeira cena do filme começa com uma participação aparentemente autêntica do presidente Emmanuel Macron (alguns truques de montagem podem ter sido envolvidos, mas se for o caso foi muito bem-feito).



É uma grande coletiva de imprensa e France é a maior celebridade jornalística, recebendo a deferência de Macron para ser a primeira a fazer pergunta. Uma pergunta provocativa sobre as insurreições em Paris e a cutucada: “você é descuidado ou impotente?”. Enquanto Macron responde, France e sua impagável produtora Lou (Blanche Gardin) trocam gestos imodestos e vulgares, rindo como fossem crianças na escola passando bilhete uma para outra sem medo de serem punidas – pouco ouvem a resposta de Macron. Estão mais interessadas nas imagens captadas para serem editadas mais tarde.

No trabalho, France foge de entrevistados mais agressivos com a mesma facilidade e velocidade com que dirige e desenvolve segmentos de entrevistas no local para que possam ser cortados e empacotados para seu programa de TV. Em casa, France adora seu pequeno filho Jo (Gaëtan Amiel) e evita seu marido, um sisudo romancista, Fredric (Benjamim Biolay). Esses dois mundos, igualmente sem amor, inevitavelmente colidem em uma série de episódios que apenas revelam o quão delirante é France por ter pensado que é uma pessoa tão especial quanto conhecedora da mídia.

É quando France começa a passar por uma série de crises pessoais e profissionais. A primeira delas - a menos dramática, mas também, para ela, a mais importante - ocorre no meio de um engarrafamento parisiense, quando seu carro bate na scooter de um entregador. Ele é derrubado e desloca a rótula. Mas também algo se solta dentro dela. Desesperada para expiar a culpa (o rapaz é filho de pais imigrantes desempregados), ela dá dinheiro à família do homem (que eles nunca pediram) e compra uma scooter nova para ele assim que se recuperar dos ferimentos e voltar ao trabalho.



Mas não é o suficiente. Entre o entregador atropelado e o drama dos refugiados que ela cobre, France entra num quadro depressivo e decide fazer tratamento psiquiátrico num spa nos Alpes.

Porém, France é um típico espécime da media life: o spa é frequentado apenas por celebridades (até a ex-chanceler alemã Angela Merkel está lá). Mas ela sente-se atraída por um homem deprimido (Emanuele Arioli) que, aparentemente não assiste TV e não sabe quem ela é. 

Na segunda parte do filme, os incidentes dramáticos se acumulam, enquanto a França enfrenta crises no trabalho, traição romântica, escândalo de tabloide e tragédia devastadora.

Um mundo saturado pela mídia – Alerta de Spoilers à frente

France vive num ecossistema midiático fechado e claustrofóbico. Isso porque, apesar do mal-estar psíquico de uma vida inautêntica, as soluções que procura são apenas tautistas: tautológicas e contaminadas pelo autismo midiático.



Talvez os seus dois únicos contatos com a realidade externa sejam o rapaz atropelado e sua família que se ressente da ausência simbólica de France. Por um lado, o dinheiro pago à família do entregador tentou inutilmente curar o estado de alienação. E a tragédia da morte do marido e filho num acidente de carro, involuntariamente ajuda a cortar o último contato com o mundo real, fechando a bolha da media life

Ironicamente, a injeção de realidade numa bolha media life só pode acontecer mediante um acidente técnico através de uma metalinguagem involuntária: enquanto é exibido um vídeo sobre refugiados com a estrela do telejornal, France e a produtora Lou fazem brincadeiras e comentários nada elogiosos sobre uma tragédia humana. Sem saberem, o áudio ficou aberto e foi ouvido pelos telespectadores. O que leva dezenas de telespectadores a protestarem na frente da emissora e o cancelamento de France de Meurs nas redes sociais.

Toda vez que France quase vê um lado potencialmente desagradável de si mesma, entra em ação a produtora Lou para desviar sua consciência e mantê-la no seu mundo solipsista dizendo que ela é um “ícone” e ícones são “feitos de lama”.

Claro que o filme France é uma narrativa ficcional que pinta em tons bem carregados o campo jornalístico. Mas, também o filme revela uma irônica inversão entre ficção e realidade entre cinema e jornalismo. Em muitos momentos France assume um tom documental, principalmente nas didáticas cenas mostrando as técnicas de enunciação da dupla câmera/repórter. Paradoxalmente, o telejornalismo faz o inverso: tenta emular o máximo possível a linguagem ficcional do cinema, para a realidade parecer mais “real”. É o hiper-realismo.

Enquanto os jornalistas solipsistas estão cada vez mais prisioneiros em um campo profissional tautista.


 

Ficha Técnica

 

Título: France

 

Diretor: Bruno Dumont

Roteiro: Bruno Dumont

Elenco:  Léa Sydoux, Blanche Gardin, Benjamin Biolay, Gäetan Amiel

Produção: 3B Productions, Red Baloon Films, Tea Time Film

Distribuição: HBO Max

Ano: 2021

País: França, Alemanha, Itália

 

 

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