terça-feira, dezembro 13, 2022

Amor, família e luta de classes no filme 'Um Outro Mundo'


“Bem-vinda ao clube... Isso acontece quando você faz as coisas certas. Talvez esteja chegando a hora da promoção”, dizia Nigel para a esgotada Andy vendo sua vida amorosa ficar arruinada de tanto trabalhar em “O Diabo Veste Prada”. O filme francês “Um Outro Mundo” (Un Autre Monde, 2021) repete essa intuição de Nigel ao mostrar a vida familiar e amorosa de um gerente executivo de uma transnacional irremediavelmente danificada pelas pressões do trabalho. Mas não é apenas “trabalho”, mas a ingerência das cadeias produtivas globais e seus acionistas – a necessidade de o gerente montar um plano de demissões e trair a confiança de seus subordinados do chão de fábrica. Ele tentará lutar contra os CEOs da matriz, revelando como a ética flexível do novo capitalismo (politicamente correto e cheio de eufemismos como “valores”, visão” etc.) é mais um dispositivo para ocultar a velha luta de classes.

   

Sr. Lemesles, o que vejo aqui. É objetivamente um trabalho muito bom. Muito obrigado. E, francamente o que vejo aqui. É exatamente o que espero de meus gerentes, a capacidade de questionar preconceitos e avaliar novas oportunidades para a empresa. Isso é criativo e inteligente. E eu gosto muito... Mas deixe-me acrescentar. Se este documento respondesse ao meu pedido eu o teria compartilhado com todas as nossas filiais e fábricas em todo o mundo. Ele não atende meu pedido. Eu não pedi apenas para reduzir custos, mas para enviar uma mensagem muito clara aos acionistas. A Elsom está pronta para fazer o que precisa para cortar gastos sempre que possível. Então, sobre o conteúdo deste documento, peço desculpas antecipadas para os termos que usarei... Mas para dizer as coisas com clareza, ESTOU POUCO ME FUDENDO! Ninguém realmente se importa com o que está escrito aqui. Nossos acionistas estão interessados em saber se coletivamente temos coragem de tomar as decisões certas para a empresa. Precisamos de tomadores de decisões corajosos... Há apenas uma regra neste jogo e essa regra é a dos mercados.

Essa linha de diálogo é o ponto alto da produção francesa Um Outro Mundo (Un Autre Monde, 2021), do diretor Stéphane Brizé, o filme que fecha a sua Trilogia do Trabalho – O Valor de um Homem, 2015; e En Guerre, 2018.

Essa linha de diálogo serve como perfeita síntese de estudos acadêmicos sobre a ética e a cultura do novo capitalismo, principalmente as pesquisas do norte-americano Richard Sennett em livros como “A Corrosão do Caráter” e “A Cultura do Novo Capitalismo”. 

Num aspecto mais superficial, de um lado vemos a retórica politicamente correta de um executivo global que impõe às filiais francesas do grupo americano Elsom um plano de demissões para corte de custos, agradando os acionistas e mercado; e do outro, um gerente que tenta impedir isso, propondo um plano em que os gerentes e executivos franceses renunciem a bônus e recompensas por um ano num esforço para manter seus “colaboradores”. Ele acha “um trabalho muito bom”, capaz de “questionar preconceitos” etc. Mas “ESTOU POUCO ME FUDENDO!” porque o que realmente importa é “a regra do mercado”.

Mas analisando mais profundamente o drama do veterano gerente humanista francês Philippe Lemesle (Vincent Lindon) em evitar a demissão de seus subordinados do chão de fábrica, Um Outro Mundo faz um brilhante desfecho da Trilogia do Trabalho do diretor: as profundas transformações na cultura e na ética do trabalho no Capitalismo do século XXI.

Nos dois filmes anteriores da Trilogia, Brizé dramatiza a luta da classe trabalhadora na qual o seu sustento e a ética são comprometidos pelas duras e desumanas prioridades dos seus senhores capitalistas, com um efeito cada vez mais destruidor do caráter e da alma.

Em Um Outro Mundo o diretor volta-se dessa vez para o drama do colarinho branco preso entre o dever para com seus superiores corporativos e as obrigações morais com seus funcionários, cada vez mais impotentes diante de um grupo norte-americano de fábricas espalhadas pelo planeta. Mas, principalmente, o drama de um colarinho branco entre a crise no trabalho e a crise doméstica: um gerente tão bem-sucedido no trabalho que nada de espaço ou afeto restou para a família. Depois de anos de ausência, sua esposa quer o divórcio, enquanto seus filhos estão afetivamente distantes.

“Como devo moldar a minha vida?”, questão central para o filósofo italiano humanista do Renascimento Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) que estaria por trás de toda discussão sobre ética, é uma pergunta que seria o clímax de todas as questões na História.



Na velha ética da antiguidade, a resposta seria a autodisciplina estoica; no catolicismo, ser alterado e modelado em Cristo; na ética protestante moldar sua história pessoal em obras ou realizações para que se mostre digno a Deus. E no novo Capitalismo a ética flexível, sem mais autodisciplina de um eu motivado para se mostrar digno, a Deus ou a si mesmo. Apenas um “facilitador” ou “administrador de processos” (como reza o eufemismo corporativo), o homem irônico incapaz de se levar a sério porque sabe que terá que se adequar as mudanças e contingências.

Como na irônica linha de diálogo acima que abriu esse texto.

O Filme

Uma estratégia interessante de Um Outro Mundo, como sempre nos filmes em que se pretende explorar o realismo do mundo capitalista, é misturar atores reais e não-atores. O filme apresenta Lindon e Sabrine Kiberlain (outra atriz com presença recorrente nos filmes de Brizé). O primeiro como o gerente de fábrica Phelippe Lemesle e sua esposa Anne, que abre o filme com um pedido de divórcio – ao lado de um elenco de trabalhadores reais e profissionais corporativos franceses.

Definitivamente, não há final hollywoodiano aqui e, como em seus filmes anteriores da Trilogia, a conclusão de Brizé é que os únicos vencedores em uma economia implacável de livre mercado são os acionistas. 

Um Outro Mundo faz uma minuciosa descrição dos riscos ocupacionais graves das ações ambientadas em escritórios e salas de conferência monótonas e puramente funcionais, onde Philippe tem que enfrentar uma tarefa impossível: satisfazer os trabalhadores furiosos das linhas de montagem de componentes de eletrodomésticos, que está cedendo sob a pressão após uma primeira rodada de demissões alguns anos atrás, e administrar a doutrina corporativa do Grupo Elsonn, cuja executiva-chefe francesa (Marie Drucker) tem intimidado seus gerentes para começar a demitir mais pessoas imediatamente.




As coisas não são mais fáceis em casa. O filme começa com uma discussão prolongada, que logo degenera em uma discussão, entre Philippe, Anne e seus respectivos advogados de divórcio. Um dos advogados lista os bens do casal em voz alta - eles parecem pertencer à classe média alta da França - e então explica quanto Philippe terá que pagar de pensão alimentícia, já que sua esposa não pode mais viver com um homem cujo trabalho o tornou insuportável. Philippe não aceita nada disso, e a cena de abertura é uma prévia da longa batalha que ele travará ao longo do filme contra a alta administração de Elsonn e os funcionários que ele pode ser obrigado a trair.

Uma subtrama bem conduzido envolve o filho adolescente do casal, Lucas (Anthony Bajon), que sofre de um distúrbio comportamental - um diagnóstico claro nunca é dado a nós, embora ele pareça estar em o espectro - que exige que ele viva com cuidados em tempo integral. Isso acrescenta mais uma camada de estresse aos já altos níveis de cortisol de Philippe, mas também pode fornecer a ele uma estratégia de saída. Se ele for capaz de colocar sua família em primeiro lugar, poderá ser capaz de enfrentar o pior.

A certa altura a mitomania de Lucas será a peça irônica para o pesadelo de Philippe: em seu sonho de se tornar um administrador como seu pai, ele acredita que o próprio Mark Zuckerberg o convidou para trabalhar no Facebook; e que, por isso, precisa sair da clínica em que está internado para voltar a estudar os livros de administração – irônico, pelo próprio Philippe está imerso num pesadelo corporativo de um grupo norte-americano.

A narrativa de negócios dá voltas e reviravoltas enquanto Philippe quebra a cabeça para encontrar uma maneira de manter seus funcionários no trabalho, traçando um plano para abrir mão de seu próprio bônus, junto com os outros relutantes gerentes, para que possam cumprir os objetivos orçamentários. 



Isso culmina em uma dolorosa videoconferência (cujo ápice das linhas de diálogo do filme abriu essa postagem), na qual ele apresenta sua ideia ao chefe da Elsonn (um durão magnata americano interpretado pelo consultor de marcas da vida real Jerry Hickey), que declara a terrível verdade: até mesmo um CEO tem influência limitada. Na verdade, quem manda são os investidores preocupados com o preço das ações. Essa é a regra de ouro do jogo corporativo.

Um outro mundo é possível? – Alerta de Spoilers à frente

Se Um Outro Mundo termina oferecendo a seu herói uma maneira de se redimir sem necessariamente salvar um navio que já está afundando, sua visão dos tempos em que vivemos é igualmente pessimista. 

O título faz alusão ao mantra “um outro mundo é possível” dos movimentos antiglobalização. Grande parte deste filme trata de como dentro das cadeias globais de produção há apenas um mundo possível - e esse mundo não tem lugar para calor, compaixão ou qualquer outra coisa que associamos ao ser humano. A melhor solução que Philippe pode encontrar para sua situação é virar as costas para esse mundo para sempre, deixando os outros lidarem com as consequências.

No final, fica a lição sobre a crise ética do Capitalismo: sob as formas flexíveis de produção (conduzidas por sucessivos “downsizes” até inutilizar plantas industrias, para serem transferidas então para outros países onde a mão de obra é mais barata), somente é possível sob uma “ética flexível” (uma contradição em termos): sob a superfície politicamente correta dos “valores”, “respeito”, “diversidade”, “transparência” etc., está o homem irônico: incapaz de se levar a sério, porque sabe que por trás de eufemismos corporativos como “visão”, “valores” e “missão” estão as cruéis entidades sem rosto chamadas de “acionistas” e “mercados”. 

Sem levar-se a sério, torna-se conformado e alienado – o homem certo para o lugar certo nas gerencias corporativas.


 

Ficha Técnica

 

Título: Outro Mundo

 

Diretor: Stéphane Brizé

Roteiro: Stéphane Brizé, Olivier Gorce

Elenco:  Vincent Lindon, Sandrine Kiberlain, Anthony Bajon, Marie Drucker

Produção: France 3 Cinéma, Canal+ 

Distribuição: MUBI

Ano: 2021

País: França

 

 

Postagens Relacionadas

 

Em "Psicopata Americano" a psicopatologia foi normalizada no mundo corporativo

 

 

 

A miséria da estética e da linguagem do trabalhador precarizado

 

 

 

Motivação, alquimia e rebelião: 7 cenas sobre demissão no cinema

 

 

A uberização do ego no filme 'Spree'

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review