sexta-feira, outubro 21, 2022

Perdemos a capacidade de enunciar o Mal em 'Speak No Evil'


Discursos sobre a superioridade moral do Bem nos cercam. As ideias de progresso, Democracia, positividade, racionalidade etc. criam uma sociedade asséptica, profilática, no qual a morte e a violência foram embranquecidas. Tornando-nos impotentes e vulneráveis à presença do Mal. O Mal existe porque o permitimos, ao nega-lo, seja no campo do micro-orgânico ao macropolítico. Esse é o subtexto do filme dinamarquês “Speak No Evil” (2022): uma família de classe média alta dinamarquesa, culta, polida e politicamente correta, aceita o convite de uma família holandesa que conheceu nas férias. O que poderia dar errado num idílico final de semana numa casa rural? Tudo! Quanto mais educados tentam ser diante de anfitriões que se tornam cada vez mais desagradáveis e manipuladores, mais o Mal começa a se impor. Revelando como nossa sociedade asséptica gera a própria virulência, impotente diante da presença do Mal.

Em 1989, quando o escritor Salmon Rushdie foi condenado a morte pelo Aitolá Khomeini, autoridade máxima da República islâmica do Irã, por “apostasia” (fomentar o abandono da fé islâmica) ao publicar o livro “Versos Satânicos”, o pensador francês Jean Baudrillard apontou a ironia da situação: o escritor acabou se tornando um refém guardado pelo próprio Ocidente. Escondido em Londres.

Baudrillard viu nesse acontecimento o supremo domínio do Islã de uma poderosa arma imaterial: o princípio do Mal – confirmado logo depois com a escalada do terrorismo, diante do qual o Ocidente democrático e politicamente correto estaria totalmente impotente.

Para o pensador francês, todo o problema do Ocidente se resumiria a uma questão: para onde foi o Mal? Para ele, perdemos a capacidade de enunciar o Mal: 

Numa sociedade em que, à força da profilaxia, de extinção das referências naturais, do embranquecimento da violência, da exterminação dos germes e de todas as partes malditas, de cirurgia estética do negativo, só se quer tratar com a gestão calculada e com o discurso do Bem, numa sociedade em que já não há possibilidade de enunciar o Mal, este metamorfoseou-se em todas as formas virais e terroristas que nos obsessionam – BAUDRILLARD, Jean. “Mas para Onde Foi o Mal?”, In: A Transparência do Mal, Campinas: Papirus, 1990, p.89.

Processo que só aumentou com a digitalização da vida real por meio da Internet e dos dispositivos móveis e redes sociais – uma profilaxia ou assepsia da realidade impulsionada pela indústria do turismo, beneficiada por essa globalização digital que tornou o mundo pequeno, ao alcance de um clique.

Surgiu até um tipo social: o hodófilo, aquele que ama viajar como um fim em si mesmo. Muito diferente do tradicional turista. O hodófilo é aquele que alimenta uma atitude positiva abstrata: conhecer novas pessoas, “experimentar a vida”, influenciado pela positividade asséptica da indústria do turismo influenciadores digitais, reflexo mais particular da sociedade de consumo como um todo.

Quando o Mal irrompe (o disfuncional, o violento, o inoportuno, o perverso, a maquinação do Mal), estamos totalmente vulneráveis, física e psiquicamente. Somos pegos de surpresa restando unicamente a negação e a covardia. E a reação coletiva do terror, do qual o terrorismo se aproveita com finalidades políticas.

O terror psicológico dinamarquês Speak No Evil (2022) é uma perfeita radiografia dessa espécie de tibieza moral diante da manifestação do Mal: nos permitimos a sua existência porque recusamos a sua existência numa sociedade em que a positividade é moralmente boa – os valores ocidentais de progresso, racionalidade, moral política, democracia etc.



O filme parte de uma situação prosaica: uma família de classe média alta dinamarquesa recebe um cartão postal com um inesperado convite de um casal holandês que superficialmente conhecerem na última viagem de verão na Toscana – “venham passar um final de semana conosco em nossa casa de campo no interior da Holanda!”. Um convite inesperadamente estranho, mas... o que de mal pode ocorrer numa viagem ao campo num final de semana?

Nada poderá prepará-los totalmente para os lugares sombrios e assustadores para o qual o convite está os levando. Speak No Evil nos revela como o nosso verniz civilizatório de educação, bons modos e correção moral pode nos conduzir para o cadafalso.

O Filme

Em muitos aspectos, Speak No Evil lembra o argumento do filme holandês Borgman (2013): uma família de classe média que se autodestrói pelas suas fraquezas éticas e morais ao permitir a entrada do Mal, personificado pela figura de um suposto sem teto em busca de apenas um banho – clique aqui.

O enredo é bastante simples. Um casal, Bjørn (Morten Burian) e Louise (Sidsel Siem Koch), e sua filha Agnes (Liva Forsberg) vijamnas férias de verão para Toscana, Itália. Lá conhecem outro casal, Patrick (Fedja van Huêt) e Karin (Karina Smulders), e seus filho Abel (Marius Damslev), que é incapaz de falar devido a uma língua congenitamente curta. Após retornarem para sua residência na Dinamarca, Patrick e Karin convidam Bjørn e Louise para sua casa rural na Holanda. 



Aos poucos começamos a ter um vislumbre dos flancos que se abrm para a presença do Mal: Bjørn, é um homem culto, educado e que acha que negar tal convite pode parecer um pouco indelicado. 

Sua esposa é vegetariana, por considerar que essa atitude ajuda na defesa ambiental do planeta, completando um retrato de um típico casal de classe alta progressista da Dinamarca. 

Bjørn foi criado nessa sociedade culta, asséptica e politicamente correta. Porém, depois de passar a maior parte de sua vida imerso nos deveres e nos papéis de um marido responsável, ele agora sente-se excessivamente contido, claustrofóbico. Por isso, nunca quer perder a chance de escapar das garras da vida da cidade através de constantes viagens. Um perfeito hodofóbico que está silenciosamente em busca de alguma experiência que o expanda da sua autocontenção.

Depois de receber o convite de Patrick, Bjørn garante a si mesmo e sua família que Patrick é médico (assim ele se descreveu na Toscana) e tem sido bastante amigável com eles, então o que poderia dar errado durante uma curta visita à Holanda? Talvez tudo.

Eles chegam à casa de Patrick e Karin, trocam presentes e gentilezas, e começam a se acomodar. No entanto, algumas coisas indicam que as coisas estão prestes a dar errado: a) A suposição de Patrick e Karin de que Agnes ficará confortável dormindo no mesmo quarto com Abel , b) Patrick insistindo para Louise comer carne, etc.) o fato de Abel não ter língua!

Os vilões de Speak No Evil, Patrick e Karin, não têm nenhuma agenda para dominar com o mundo. A única coisa que eles querem fazer é usar a polidez da classe média alta contra eles. E começam a explorar os flancos dessa polidez com micro agressões: Patrick provoca a postura hipócrita de Louise sobre o vegetarianismo. Então ele faz Bjørn pagar pelo jantar. Ele entra no banheiro enquanto Louise está tomando banho lá. Ele assiste Bjørn e Louise fazendo sexo. É só quando Louise descobre Agnes dormindo no quarto de Patrick e Karin, que está deitada nua, que ela decide ir embora.



Seria a oportunidade de terem aprendido uma lição: se você não está confortável com algo, corte-o pela raiz. Não adianta ficar em silêncio e esperar que o ofensivo recue porque nunca o fará. Valentões se alimentam de energia negativa; quanto mais você se curvar a eles, mais hostis eles se tornarão. 

Patrick se encaixa na definição de masculinidade tóxica. E o caminho que ele toma para desarmar Bjørn e Louise é metódico e fascinante. Começa com ele pegando a cadeira da piscina. Então ele infla o ego de Bjørn chamando-o de heroico por recuperar a boneca de Agnes. Ele rebaixa um dinamarquês que conheceu no passado, insinuando que Bjørn não é tão chato, apesar de ser dinamarquês.

Ele faz Bjørn parecer relacionável devido ao desinteresse comum em tecnologia. Mas então ele começa a esvaziar Bjørn mostrando a magnanimidade de sua casa; fazendo Louise comer a carne bem na frente dele; e expressando mais paixão por Karin (a forma como a abraça e beija de forma sensual na frente deles) do que Bjørn provavelmente já demonstrou por Louise. E ele dá o golpe final, metafórico (porque o real no final será terrível), levando-o para uma pedreira isolada. Lá convida Bjørn a gritar o mais forte possível junto com ele, numa espécie de processo terapêutico de libertação e afirmação da supremacia masculina sobre o politicamente correto.

Sentindo-se finalmente desacorrentado das convenções politicamente corretas. Mais viril, Bjørn baixa totalmente a guarda, abrindo a narrativa para o pior desfecho possível. 

“Por que vocês estão fazendo isso?”, implora um impotente Bjørn para os seus algozes no assustador final de Speak No Evil. “Por que vocês permitiram”, enuncia Patrick num tom sombrio.



Essa linha de diálogo é a chave de compreensão de todo o filme. Parece que o sinistro casal Patrick e Karin, abraçando-se de satisfação no final, querem mais do que provar de que não há espaço para a polidez nesse mundo. Parece haver um propósito maior: de que a simples existência deles com sua perversidade viciosa são as provas vivas de que as sociedades liberais e democráticas estão vulneráveis e doentes.

Desde o holocausto do Nazismo, o Ocidente faz repetidamente a pergunta “como foi possível”? 

Talvez a melhor metáfora de como a assepsia da positividade gera o seu contrário é o fenômeno da infecção hospitalar: por que justamente no ambiente mais asséptico e seguro ocorre esse fenômeno? Porque em um ambiente microscopicamente limpo, basta uma bactéria surgir para encontrar um ecossistema totalmente livre de anticorpos, para se reproduzir de forma exponencial.

Assepsia produz a virulência. Privado de suas defesas, o homem torna-se vulnerável ao Mal, seja na esfera micro-orgânica, seja na macropolítica.



 

Ficha Técnica

 

Título: Speak No Evil

 

Diretor: Christian Tafdrup

Roteiro: Christian Tafdrup, Mads Tafdrup

Elenco:  Mortel Burian, Sidsel Siem Koch, Fedja van Huêt, Liva Forsberg, Karina Smulders

Produção: Profile Pictures, OAK Motion Pictures, Danish Film Institute

Distribuição: TrustNordisk

Ano: 2022

País: Dinamarca

 

 

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