Um jovem casal millennial, viciado em smartphones e que passa mais tempo falando com a IA Alexa do que conversando entre si, decide ser “seres humanos melhores”: ficar uma semana desconectados em uma cabana numa floresta remota, para recuperarem a intimidade perdida. Mas ficam alheios ao início de uma bizarra invasão alienígena que começa a ameaçar os arredores. Como combater aliens sem um aplicativo, tutorial ou a busca do Google? Esse é o hilário argumento da comédia “Salve-se Quem Puder!” (Save Yourselves!, 2020), um crítica bem humorada da geração millennial, a geração mais tecnológica e midiatizada da História.
Lá no já distante ano de 2005, o extinto suplemento do jornal Folha de São Paulo, “Folhateen”, realizou uma interessante experiência no qual três jovens foram postos à prova: foram desafiados pela reportagem a ficar três dias desconectados da Internet e celulares. O primeiro resultado foram atitudes que lembravam uma espécie de síndrome de abstinência, logicamente mais branda do que aquela relacionada à dependência química.
A segunda consequência foi a sensação de solidão: “Eu nem fico conversando com as pessoas o dia inteiro pelo MSN, mas fico tranquila porque sei que elas estão lá e eu posso falar com elas quando quiser. Sem isso, me senti sozinha’, disse Andréa” (LEMOS, Lima. “3 dias fora do ar” In: Folhateen, Folha de São Paulo, 23/05/2005).
Eram os primeiros anos do século XXI. Ainda não havia smartphones e a rede social Orkut ainda dava seus primeiros passos. Mas a dependência psíquica por meios de comunicação (a TV deu início a essa viciosidade psicológica) já dava um novo salto com a primeira geração dos celulares e a Internet acessada pelo desktop.
Quase vinte anos depois, encontramos a geração mais tecnológica da História, os millenials, alcançando a dependência química pelos gatilhos neurológicos de prazer que são manipulados pela chamada “economia da atenção” - especialização da arquitetura da informação que cria formas de gratificações sensoriais e psicológicas para prender a atenção do usuário em sites ou mídias sociais. Ou seja, aquilo que a reportagem da “Folhateen” encontrou em 2005 não se compara ao ecossistema digital de hoje no qual chegamos a conversar com inteligências artificiais como a Alexa, da Amazon. E os nossos dedos deslizam incansavelmente nas telas dos smartphones.
Por isso os jovens hipsters da vanguarda digital millennial são belos, sensíveis, otimistas, com grande fé na conexão global e no empreendedorismo digital, mas, por outro lado, incertos, irresponsáveis e hesitantes em um ambiente tecnológico e profissional fluido, liquefeito e instável. Inseguros num ambiente sem âncoras e grandes conquistas que as tecnologias vendem para os usuários.
De filmes como A Rede (2010), passando por O Futuro (2011) e a série Boneca Russa (2019) até chegarmos aos recentes Jexi, Um Celular Sem Filtro (2020) e Não Olhe Para Cima (2021), já temos uma extensa filmografia sobre as mazelas dessa geração: individualismo, solipsismo, narcisismo etc.
A comédia Salve-se Quem Puder! (Save Yourselves!, 2020) é mais uma produção que se insere nessa lista, dessa vez dentro do subgênero “alt. Sci-fi” – temas de ficção científica são colocados apenas como um pano de fundo para explorar questões existenciais e sobre os relacionamentos humanos.
Em Salve-se Quem Puder! o tema sci-fi é uma invasão alienígena bizarra de pequenos seres semelhantes a pufes que mais parecem porcos-espinhos de pelúcia enrolados fofinhos, cujo instinto natural nosso seria antes pegá-los para um abraço do que fugir para salvar a vida.
Porém, essa estranha invasão alienígena é apenas o pretexto para discutir com muito humor irônico as ansiedades e inseguranças de uma geração totalmente dependente de seus dispositivos móveis. Até certo ponto, lembra o tema de Não Olhe Para Cima. Porém, a diferença é a natureza da ameaça que vem do espaço e a forma como lidamos com isso: no filme de 2021, como o efeito bolha das mídias sociais nos torna tão solipsistas que não conseguimos mais entender a extensão de uma catástrofe; em Salve-se Quem Puder!, como simplesmente ficamos sem ação quando não temos mais em nossas mãos um aplicativo ou a busca do Google.
O Filme
Imagine sobreviver a uma invasão alienígena quando você é um millennial do Brooklyn, anti-arma politicamente correto, sem habilidades de sobrevivência e incapaz de se desconectar de seu smartphone, laptop, assistentes digitais, aplicativos e viciado nos sons dos avisos sonoros de mensagens no celular. Essa é premissa divertida que prepara o palco para esta comédia apocalíptica dos roteiristas e diretores Alex Huston Fischer e Eleanor Wilson.
Sunita Mani e John Reynolds estrelam como Su e Jack, um casal de 30 e poucos anos em um relacionamento digital viciante com a IA Alexa. Capazes de pararem o ato sexual no meio ao ouvir o aviso sonoro de mensagem do smartphone.
São típicos hipsters do Brooklyn – Su é prisioneira de um trabalho à distância precarizado; enquanto Jack se entrega a atividades New Age como agarrar-se a um pedaço de cristal para dar sorte. Após um encontro com amigos em um bar descolado, entretidos em organizar uma festa com baixo impacto de carbono, alguém oferece uma cabana no campo para Su e Jack passarem alguns dias nos quais possam desfrutar de horas preguiçosas em um barco a remo, para aprender a dividir troncos com um machado (Jack é hilariamente ruim nisso) e tempo para realmente se conectar um com o outro e seus sentimentos mais profundos.
Ambos chegam à conclusão de que precisam se tornar “pessoas melhores”: estar mais presentes um com o outro, pensar mais em suas próprias vidas e almejar metas mais analógicas: ter uma casa, uma hipoteca, filhos, fundar ou criar algo, poupar... Su fala que Jack só tem 31 mil dólares... em bitcoins.
Ambos tomam a decisão radical de passar uma semana ficar naquela cabana no campo, totalmente desconectados em uma espécie de quarentena digital. Para redescobrirem a intimidade perdida.
Lá encontram uma floresta idílica e uma cabana repleta de relíquias antigas: um convite para o casal encontrar âncoras mais concretas para suas vidas. E passar as noites em torno de uma fogueira olhando as estrelas. Porém, em uma dessas noites testemunham uma chuva de estrelas cadentes incomuns. Para no dia seguinte se depararem com uma espécie de pufe de pelúcia num canto da cabana. Ignoram, achando que é mais uma das velharias que se acumulam naquela cabana. E continuam em sua alegre inconsciência: parece que o casal escolheu o pior momento para se desconectarem do mundo. Algo bizarro está acontecendo em todo planeta, uma estranha invasão de “ratos” em busca de etanol, matando os humanos que encontram pelo caminho, disparando tentáculos vermelhos.
Su e Jack até estranham as garrafas de bebidas alcoólicas da casa estarem secando. Até se darem conta que outros pufes fofinhos e assassinos estão se arrastado pela floresta e cercando a cabana.
A princípio, Salve-se Quem Puder! parece ser uma apologia à necessidade de estar sempre conectado: se estivessem com seus smartphones ligados, saberiam o que estava acontecendo. Porém, a crítica aos millennials vai por um outro caminho. Embora recorram a seus dispositivos móveis na esperança de encontrar de alguma lista de como sobreviver a um ataque alien (e a Internet é viciada em criar listas sobre qualquer coisa), um aplicativo útil para a crise ou a busca do Google, descobrem que a região está fora de alcance do sinal da Internet.
A partir daí todas as piadas e situações envolvem a inacreditável inabilidade do casal para fazer qualquer coisa sem um tutorial na palma da mão. Esse é o ponto de partida para questionarem o que não conseguiram realizar de concreto nas suas próprias vidas: descobrem que não sabem fazer nada, a começar pela natureza dos seus próprios empregos: precarizados, temporários, genéricos, sem a necessidade de uma formação específica, de um saber-fazer profissional ou acadêmico.
Do cristal New Age através do qual Jack segura nas mãos para tentar se proteger a lista e tutoriais dos quais tanto se ressentem, têm saberes e conhecimentos fragmentados, dispersos. Sem planos ou projetos. Bem diferente dos pequenos aliens-pufe: estes parecem ter algum plano em mente mais amplo para a humanidade.
Ficha Técnica |
Título: Salve-se Quem Puder! |
Diretor: Alex Huston Fischer, Eleanor Wilson |
Roteiro: Alex Huston Fischer, Eleanor Wilson |
Elenco: Sunita Mani, John Reynolds, Bem Sinclair |
Produção: Keshet Studios, Last Rodeo Studios |
Distribuição: Amazon Prime Video |
Ano: 2020 |
País: EUA |