sexta-feira, outubro 07, 2022

Primeiro turno: urnas eletrônicas, anomalias e o buzz "tem caroço nesse angu"


Ocorreram nas eleições de domingo, por assim dizer, “anomalias” que foram um verdadeiro jato de água fria na esquerda. Para começar, discrepâncias entre a realidade e os números dos institutos de pesquisa. Meio timidamente (afinal, temem ser confundidos com o discurso da extrema-direita) perfis progressistas nas redes sociais e artigos na mídia alternativa começaram a demonstrar a estranheza diante dos resultados. “Tem caroço nesse angu”, era uma expressão que começou a pipocar aqui e ali. Surpreendentemente, Bolsonaro parecia ter recebido bem as apurações do TSE, agora voltando seu ceticismo contra as pesquisas “mentirosas”. Como se espera da lógica semiótica alt-right, assim que percebeu o “buzz” nas redes progressistas, imediatamente voltou a atacar as apurações, comparando-as às de 2014 que deram vitória a Dilma Rousseff. Antes que a esquerda avançasse o sinal, tratou de voltar a se apropriar da pauta. O que há por trás dessa estratégia semiótica? 

O resultado das urnas eletrônicas do último domingo parecia ter deixado Bolsonaro satisfeito. “Entendo que é uma vontade de mudar por parte da população... temos um segundo tempo pela frente, onde tudo passa a ser igual, o tempo de cada lado passa a ser igual...”, disse o chefe do Executivo. Uauuu! Nenhum arroubo ou bravata contra as urnas eletrônicas?

Cadê a “apuração paralela” que seria feita pelos militares. Onde está o relatório final dessa apuração? Também perece que o Comando do Exército ficou satisfeito com o mapa dos resultados do TSE.

Finalmente a encarnação democrática do Bozo? Não. Apenas uma mudança de foco. Dessa vez, voltou seus canhões semióticos para os institutos de pesquisas: “... nós vencemos a mentira no dia de hoje. Que estava no DataFolha dando 51% a trinta e poucos, então vencemos a mentira”.

É inquestionável que os resultados das urnas foram um verdadeiro jato de água fria jogado na esquerda. Todos aguardavam uma “onda vermelha” no último instante, que acabasse a eleição já no primeiro turno. Afinal, todos estavam confiantes após mais de 700 pesquisas para presidente realizadas esse ano – em mais de 90% delas, Bolsonaro estava com menos de 37%.

E todo um cenário distópico se materializou: o vice general Mourão venceu no Rio Grande do Sul, com viagra e tudo; Pazzuello foi o campeão de votos no Rio mesmo depois de calculadamente, quando ministro da Saúde, sabotar as ações de combate à pandemia; o ex-juiz Moro ganhou cadeira no Senado, mesmo após o escândalo da Vaza Jato e a sua suspeição decidida pelo STF. E mais: um destruidor de florestas (Ricardo Salles) e um astronauta que voltou para a Terra para ajudar a destruir o Sistema Nacional de Tecnologia e Inovação (Marcos Pontes) também foram recompensados pelas urnas. E para fechar o pesadelo, um “poste” do Capitão-Mito superou Haddad em São Paulo.

Em síntese: o resultado foi um paradoxo que tem muito a dizer sobre a natureza da guerra híbrida, baseada na criação de cismogêneses: de um lado, temos um Congresso mais renovado das últimas décadas - mais jovens, mais mulheres, negros, parlamentares conectados a redes sociais e senadores e deputados com maior grau de instrução.

Mas de outro, ganhamos o Congresso mais conservador dos últimos quarenta anos! 

Lentamente começou à esquerda do espectro político uma envergonhada estranheza diante dos resultados das urnas eletrônicas. Uma estranheza ocultada por camadas de tergiversações e malabarismos de argumentação, temerosa de ser confundida com o negacionismo de extrema-direita.



Um exemplo é o cientista político Fernando Horta: “Tem caroço nesse angu”, fecha de forma enigmática o seu artigo “O Que Aconteceu?” – clique aqui.

Horta aponta para os “candidatos fantasma” que se materializam de última hora como vencedores: 

Em 2018, Dilma, Suplicy e mesmo Olívio Dutra eram considerados pelas pesquisas como favoritos ao senado. Abertas as urnas e candidatos que estavam em terceiro ou quarto lugar apareceram como vencedores. Ocorreu novamente. O astronauta Marcos Pontes (em São Paulo), literalmente caiu de paraquedas e Hamilton Mourão – fazendo campanha nos quartéis – é outro exemplo. Apenas candidatos de extrema direita gozam deste “milagre” repentino. 

Também questiona os malabarismos para explicar essa realidade, como “poder do capital”, “controle da grande mídia”, “disparos em massa no zap” etc. Horta dispara: “se você realmente acredita que eles viraram 9 milhões de votos em 48 horas (a diferença real foi de 6,1 milhões) talvez o cenário para o segundo turno seja ainda mais desesperador”.

No Twitter, Horta faz uma interessante observação: “Vocês notaram que todas as pessoas "estranhas" que se elegeram e tiveram um acréscimo de 20% dos seus votos (se comparado com as pesquisas) são do círculo mais íntimo de Bolsonaro? Damares, Tarcísio, o astronauta, Ricardo Salles etc.? Perceberam que figuras periféricas do Bolsonarismo fracassaram? Adrilles, Joyce etc.”.

Esta mesma inquietação começou a circular nas redes sociais progressistas – é bom lembrar que, antes de ser abduzida pela extrema-direita, a pauta sobre dúvidas em relação às urnas eletrônicas estava presente na mídia alternativa em 2014, como pode ser visto aqui aqui.

Coincidentemente, não é que, depois da calma e satisfação demonstrados após os resultados do domingo, Bolsonaro volta ao modus operandi? Nessa quarta-feira, o chefe do Executivo voltou a atacar o sistema eleitoral e questionar a apuração do primeiro turno – ele comparou a apuração do domingo com a das eleições de 2014, quando Dilma Rousseff se reelegeu por uma pequena margem de votos. Bolsonaro afirma que Aécio Neves venceu o pleito – clique aqui.



Conhecendo-se a estratégia alt-right desenvolvida pelo PMiG (o Partido Militar Golpista apropria-se de pautas que, no passado eram da esquerda para criar uma “paralisia estratégica” no inimigo – temerosa de ser confundido com a extrema-direita, a esquerda começa a se deslocar cada vez mais ao “Centro”, tornando-se institucional, parlamentar e jurídica) parece ser sintomática essa guinada ao modus operandi: antes que a esquerda comece avançar o sinal, Bolsonaro tenta reforçar que o tema “urnas eletrônicas” e seu e de mais ninguém!

Este Cinegnose já discorreu sobre esse tema, procurando sair do âmbito das teorias conspiratórias (urnas não auditáveis etc.) para o campo das dúvidas justificáveis: como o processo eleitoral brasileiro pode estar nas mãos de empresas com óbvios problemas de conflitos de interesse (Kryptus, Positivo e Oracle – clique aqui.) criptografe, fabrique e forneça o supercomputador que armazena e faz a contagem dos votos?

Somente a partir desses conflitos, o sistema eleitoral deveria ser colocado sob suspeita. Ou, como coloca o professor especialista em software livre da Universidade Federal do ABC (UFABC), Sérgio Amadeu, que defende o uso de tecnologias nacionais em código aberto, e que a Oracle seja substituída: “isso aumentaria a transparência e a autonomia nacional”, diz.

Se não, por que Bolsonaro mantém uma estranha bipolaridade? De um lado, preocupa-se com medidas “populistas” como o Auxílio Brasil, permitida pela PEC Eleitoral ou “Vale-Tudo”, ao arrepio da legislação eleitoral. E, do outro, corta remédios do Farmácia Popular e das universidades federais em pleno segundo turno. E ofende o eleitor nordestino ao associar o analfabetismo aos votos para Lula na região – justamente no momento, segundo a grande mídia, em que a estratégia da campanha de Bolsonaro passou a ser justamente a de tentar conquistar votos no Nordeste.

Bolsonaro parece não ter a menor preocupação em conquistar novos eleitores, principalmente numa disputa tão acirrada de segundo turno... De onde será que vem esse misto de autoconfiança e displicência em relação a busca de novos eleitores?



A narrativa dos institutos de pesquisa

Diante desse padrão de acréscimo de 20% para os candidatos da extrema-direita no resultado das apurações, rapidamente os Institutos de pesquisa procuraram entabular uma rápida narrativa, que pode ser sintetizada da seguinte maneira: pesquisa não é prognóstico, mas apenas a “fotografia” de um momento; e esqueceram da totalidade dos votos, ficando apenas nos números dos votos válidos.

Como pode Bolsonaro, do dia para noite, dar salto de 30%-35% (com rejeição de 50% do eleitorado) para 43% de votos, num cenário em que 60% dos entrevistados afirmavam já terem decidido seu voto? A explicação passou a ser a possibilidade de voto útil vindo de Ciro e Tebet.

Porém, o cientista político Antônio Lavareda (presidente do Conselho Científico do Ipespe) foi um ponto fora da curva. Para ele, levando em consideração os votos totais (e não os válidos) fica evidente que os votos de Lula foram tragados pela abstenção – principalmente, pelo perfil socioeconômico dos eleitores de Lula: para o perfil, sair para votar é caro... – clique aqui.

No dia deu-se uma abstenção de 20,95% que essa pesquisa e nenhuma outra conseguiria medir. Lula perdeu 9 pontos e os candidatos não competitivos outros 9 pontos. Lula por conta da vulnerabilidade — custo de votar — do seu eleitorado mais pobre. Os demais candidatos certamente por não serem competitivos, escreveu em sua conta no Twitter.

Os milhares de fechamentos de locais de votação e mudanças de zonas eleitorais pelo país, pegando eleitores de surpresa no domingo, pode ter contribuído para essas abstenções que atingiram em cheio os votos de Lula. 

A última pesquisa Ipec estima o voto de Lula em 51% dos votos totais e os de Bolsonaro em 43%. Caso a mesma “distorção” se repita no segundo turno, o petista teria na verdade 40,6% e Bolsonaro 41,5%. Ou seja, empate técnico!

Por que os institutos de pesquisa centraram apenas suas análises nos votos válidos, ignorando a abstenção seletiva constatada nos números totais?

É a classe média, estúpido!

A abstenção muito maior no eleitor de Lula nos leva a uma questão: a da classe média, na qual estão os índices baixíssimos de abstenção. Desde 2013, uma classe engajada e organizada para derrotar Lula e o PT. 

Por que o PT não consegue avançar nesse estrato social?

Historicamente, a classe média sempre foi conservadora, reacionária, e pivô de todos os movimentos contrarrevolucionários da História recente – por exemplo, veja o papel desempenhado por ela no golpe militar brasileiro e chileno.



Porém, a guerra híbrida brasileira, que criou um tipo de ativismo político com milhares de camisetas verde-amarelas seguindo caminhões de som que mais pareciam o flautista de Hamelin, exigindo “intervenção militar constitucional”, o direito de viajar para a Disneylândia e abastecer o carro com gasolina mais barata. 

Os temas de extrema-direita como Família, Pátria e Valores Cristãos, somado à guerra cultural contra tudo que supostamente ameaçaria a integridade dos “valores familiares”, sempre foram pautas conservadoras de classe média. Entretanto, a estratégia de comunicação alt-right promoveu esses temas a uma espécie de “Conservadorismo 2.0”.

Foram renovados, porque lincados com três discursos ideológicos que a grande mídia acabou reforçando silenciosamente no cotidiano, enquanto o cenário político explodia: o imaginário do empreendedorismo, a inflação e a teologia da prosperidade.

Por mais que o jornalismo corporativo tente justificar a crise econômica por fatores externos (pandemia e guerra da Ucrânia), suas causas estão basicamente nos fundamentos neoliberais – veja, por exemplo, o “remédio” dos juros altos que só retroalimenta a inflação e a crise ou todas as reformas trabalhista e previdenciária após o golpe de 2016.

Mas, para a classe média, as dificuldades financeiras são ressignificadas: a carestia paradoxalmente apenas reforça o imaginário do empreendedorismo e a teologia da prosperidade – aqui tomada num sentido mais amplo, não apenas no sentido religioso dado pelas igrejas neopentecostais como os valores morais ligados diretamente como a ascensão social. Mas também no sentido da verdadeira nova teologia, a autoajuda, tão cara à classe média: a força interior (caráter, fé, pensamento positivo, foco, resiliência etc.) como vetor do sucesso. Aqui, teologia e o discurso da autoajuda convergem numa espécie de nova religiosidade secularizada.

E tudo isso materializa-se no imaginário do empreendedorismo: se a classe média não é detentora do capital ou dos meios de produção, então resta apegar-se à ilusão de que pelo menos ela possui “boas ideias”, “criatividade”, “esforço”, “perseverança”, “formação permanente” etc. E, através de um pequeno negócio a uma startup, magicamente a força de trabalho se converterá em capital. Conseguindo, finalmente, entrar no céu da burguesia.

Carestia, inflação ou crise são apenas “desafios” e “oportunidades”, segundo esse imaginário de classe. E a célula familiar, o porto seguro que supostamente daria segurança emocional e estabilidade afetiva – necessária para enfrentar “desafios”.

Por isso, adere muito fácil ao discurso da proteção dos “valores da família” ou dos “valores cristãos”. Sem uma “base sólida” moral e de caráter, seria impossível “vencer na vida”.

Razão pela qual, a classe média simplesmente não consegue entender a racionalidade das instituições coletivas (do condomínio em que mora ao Estado) – sua visão de mundo é individualista, à espera de um líder que a conduza ao sucesso.  

Ódio, racismo, preconceito e intolerância são as formações reativas mobilizadas para a defesa diante de qualquer ameaça a esses valores – e o PT é uma dessas ameaças. 

Basta apenas um significante político que dê significação a esse imaginário de classe. E o candidato manchuriano Bolsonaro, lançado pelo PMiG em 2014 na AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras) foi talhado para cumprir esse papel. 

 

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