sexta-feira, janeiro 07, 2022

Luto e a gnose na experiência quase-morte em 'A Casa Sombria'


Dentro do campo da Cinetanatologia (o estudo das representações da morte no cinema), narrativas sobre as experiências de quase-morte (EQM) são recorrentes no século XXI, principalmente a gnose pós-morte – a conquista da lucidez na situação imersiva em ilusões criadas pela tela mental, demiúrgico ardil para nos manter ainda presos nesse mundo. Mesmo na morte. "A Casa Sombria" ("The Night House", 2020) é um exemplo de uma narrativa que consegue elevar a clássica estória de casa mal-assombrada à discussão da gnose pós-morte. O choque do inexplicável suicídio do marido repercute um antigo episódio de EQM na adolescência da protagonista. Luto e raiva pelo marido ter a abandonado daquela maneira proporciona ao espectador tanto uma narrativa psicológica simbólica (a batalha de não deixar o luto tomar conta de nossa mente), quanto gnóstica: confrontar aquilo que está por trás dos relatos “new age” das EQM - o Nada.

 

“Niilismo não significa ‘acreditar em nada’ porque crer significa acreditar em algo e não em nada (Theodor Adorno)


Experiências de Quase-Morte (ou EQM, conjunto de visões e sensações associadas a situações de morte iminente ou de ser anunciado como clinicamente morto) são descritas pelas pessoas que vivenciaram o fenômeno com visões de seres espirituais, túnel intensamente iluminado no fundo, flutuar sobre o próprio corpo, visão de seres espirituais benignos e sensações como paz interior, tempo passando rápido ou devagar e aguçamento dos sentidos.

São imagens e sensações igualmente descritas na literatura espiritualista, no cinema e audiovisual em muitos filmes, minisséries e documentários. Ficção e não-ficção acabam se coincidindo e confundindo. Coincidência? Ou será que algum airbag emocional criado pela nossa mente no momento do salto para o desconhecido criaria uma tela mental imersiva baseada em todas as nossas memórias pop sobre o além?

Algo assim como no filme Vanilla Sky no qual Tom Cruise está em estado criogênico vivendo um sonho lúcido baseado nos fragmentos das memórias da sua vida passada.

Para o Gnosticismo, essa tela mental está muito além de um fenômeno psicológico ou neurológico: é uma proposital estratégia cósmica nos manter prisioneiros na ilusão desse mundo... pelo menos até a próxima encarnação.

Em outras palavras, ao contrário do imaginário benigno que suscitam os relatos de EQM, poderíamos ter algo muito diferente: nada!



A Casa Sombria (The Night House, 2020), dirigido por David Bruckner (O Ritual, Southbound) aparentemente é acompanha uma antiquada narrativa de casa mal-assombrada, tão já batida pela literatura e cinema. Porém, não apenas pela performance sensacional de Rebecca Hall (quase um monólogo) mas também por mergulhar fundo no terror psicológico do luto e na especulação sobre as consequências de alguém que voltou de uma EQM e apenas encontrou o Nada!

O choque do repentino suicídio do marido se sobrepõe a alguém em que ainda repercute o trauma antigo de um acidente quase fatal em que, por alguns minutos, foi clinicamente declarada como morta.

De certa forma, o filme parece ser uma história de fantasmas bastante antiquada durante seu primeiro ato, mas à medida que mais e mais segredos são revelados, as coisas dão uma guinada acentuada para o oculto e a realidade potencialmente horripilante do que aconteceria após a morte.




O Filme

A Casa Sombria abre com Beth (Rebecca Hall) sendo consolada por sua amiga por alguma tragédia que ainda não sabemos. Logo sabemos que ela está não apenas paralisada, mas também furiosa com o seu marido Owen (Evan Jonigkeit) por ter saído em uma manhã para dar um passeio de barco para se matar com um tiro na cabeça.

Ele supostamente não demonstra sinais de depressão ou tristeza - como ela disse a certa altura, isso era “coisa dela” - e espera-se que Beth continue a se desfazer das coisas do falecido marido na casa em que moravam à beira do lago e cuidando de sua vida diária como professora. 

Ao abrir uma das caixas de Owen, ela descobre alguns pertences incomuns, incluindo alguns livros que parecem ser sobre o ocultismo e as artes das trevas, completos com anotações de próprio punho nas margens. O que levaria um arquiteto (que inclusive projetou a ampla casa à beira do lago) a se interessar repentinamente com práticas ocultistas?

Ao mesmo tempo, Beth continua tendo pesadelos cada vez mais intensos. Eles normalmente acontecem na casa do lago, onde ela agora mora sozinha, e parecem estar levando a outros lugares, inclusive para outra casa semelhante à sua (porém, “espelhada”) do outro lado do lago, e para uma outra inacabada onde Owen guardava seus segredos mais sombrios. Por que ela está vendo essas coisas? 

Hall habilmente transmite uma mistura de raiva, tristeza e confusão que descreve como é ser abandonada pelo suicídio de alguém com quem viveu tantos anos, em que as perguntas nunca podem ter respostas concretas e os entes queridos naturalmente se sentem magoados pela decisão de serem deixados para trás.




Ela faz uma performance notável, desenvolvendo uma ampla gama de emoções, lembrando as atuações de Nicolle Kidman em Os Outros e Toni Collette em Hereditário.

O que Owen estava escondendo de sua esposa e amigos? Mesmo os segredos sombrios de Owen mudam de forma ao longo desta história. A princípio, parece que será uma história simples de uma viúva descobrindo a vida secreta de seu marido, especialmente depois que Beth encontra uma foto de outra mulher (Stacy Martin) em seu telefone. Porém, há muito mais do que isso.

O “Nada” após a morte – alerta de spoilers à frente

A Casa Sombria abandona a familiar estória de casa mal-assombradas com a revelação de que Beth, em sua juventude, passou uma EQM após um grave acidente em que foi dada clinicamente morta por quatro minutos. Ao voltar, o relato de sua experiência foi ambíguo: mais do que não se lembrar de nada, ela simplesmente se confrontou com o Nada no pós-morte – uma experiência nada espiritualmente inspiradora, como nos relatos tradicionais.

Essa é a chave de compreensão dos pedaços da vida que Beth tenta juntar após o suicídio de Owen. Principalmente, para tentar compreender a ambígua carta deixada pelo marido: “Você tinha razão, não há nada depois de você. Está a salvo agora”.

Apenas que esse nada, a que se refere a EQM, é o Nada: algum tipo de figura maligna ou demiúrgica que retorna para levar Beth de volta à morte que a deixou escapar. Nada tentou forçar Owen a assassinar Beth para tê-la de volta, mas ele recusou. 

Aliando ocultismo e seus conhecimentos profissionais de arquitetura, Owen tentou criar armadilhas e emboscadas contra forças das trevas como labirintos e casas invertidas. Chegando ao ápice de levar uma vida dupla, cortejando e assassinando mulheres que se assemelhavam a Beth em uma versão espelhada da casa.

Porém, o ardil deixou de funcionar, levando-o ao suicídio como um tipo de barganha com a morte: que levasse ele no lugar de Beth.

Para aqueles que preferem o final de seus filmes de terror para amarrar as coisas de forma compreensível, certamente deixarão A Casa Sombria desapontados:  Bruckner deixa muitos aspectos ambíguos, ou não totalmente resolvidos. 

Porque Nada deseja tão desesperadamente recuperar Beth depois de conhecê-la tão brevemente décadas antes, na verdade é uma dessas perguntas sem resposta. É possível que a criatura seja a própria Morte, mas parece estranho que a Morte se tornasse obcecada por uma pessoa em particular assim. Nada poderia ser um demônio que pretende levar Beth no final para uma versão escura iluminada em vermelho da casa do lago real. Na verdade, o lugar sombrio de onde Nada vem parece uma espécie de purgatório entre a vida e a vida após a morte.




Essa ideia é apoiada pelo fato de que, quando Beth pergunta ao Nada onde está seu marido - já que a criatura assumiu sua forma. Ele responde que Owen foi para outro lugar. Se isso é o paraíso, o inferno ou algo não vinculado à teologia cristã tradicional, não está claro, mas sua alma não está onde eles estão. Isso torna mais provável que o Nada - assim chamado porque Beth disse que não viu "nada" enquanto estava morta, com Owen colocando em sua nota de suicídio que Beth tinha razão - seja algo que reside neste vazio entre os mundos.

A Casa Sombria propõe o niilismo gnóstico do pós-morte, abordado em filmes como A Passagem, Enter the Void, The Discovery, After Life, O Terceiro Olho, Perdidos na Escuridão entre outros. Se existem imagens benignas que inspirem paz ou “um lugar melhor” no pós-morte, seriam na verdade ilusões criadas por uma tela mental do nosso próprio psiquismo. 

Beth descobriu isso da pior maneira possível, ao chamar a atenção da figura demiúrgica Nada – ele tentar resgatar alguém que conseguiu fugir das ilusões criada pelo “airbag” da tela mental através de algum tipo de gnose involuntária.

O tema da gnose pós-morte volta na sequência final em que Beth finalmente confronta-se com Nada que tenta induzi-la ao suicídio no mesmo barco em que o marido se matou. Mas não exatamente pós-morte: Beth está naquela espécie de interzone entre a vida e a morte, como se repetisse a EQM da adolescência. Só que, dessa vez, alcançando a gnose – consegue sair da imersão inconsciente e escapar, mais uma vez, do demiúrgico Nada.

No plano do simbolismo psíquico, essa sequência final com o Nada funciona como uma metáfora para essa batalha contra deixar o luto tomar conta de sua mente. Nada é a personificação da dor de Beth por seu marido. Ele tenta convencê-la que não há sentido em continuar a viver, e que seria melhor desistir de tudo. No final das contas, apesar de sua dor, Beth decide não se matar, continuar vivendo, e voltar para seus amigos vivos que a procuravam.


 

Ficha Técnica 

Título: A Casa Sombria

Diretor: David Bruckner

Roteiro: Ben Collins e Luke Piotrowski

Elenco: Rebecca Hall, Sarah Goldberg, Vondie Curtis-Hall, Evan Jonigkeit 

Produção: Anton, Phantom Four Films, TSG Entertainments

Distribuição:  Netflix

Ano: 2020

País: EUA

 

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